Metadados do trabalho

A Construção Da Consciência Epistemológica Na Graduação: Uma Análise De Projetos De Pesquisa Elaborados Por Professores Em Formação

Hélio da Guia Alves Junior

Este artigo teve como objetivo a análise de projetos de pesquisa desenvolvidos durante a disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. Elencou-se como pergunta norteadora a seguinte indagação:  no contexto do ensino superior privado, os fundamentos epistemológicos predominantes nas pesquisas desenvolvidas pelos professores em formação desvelam um rompimento com as práticas bancárias de ensino? Para análise do corpus, foram elencadas as seguintes categorias: (i) o paradigma pedagógico dominante; (ii) imbricamento da teoria e da prática; (iii) postura assumida pelos educandos na condução de suas pesquisas. Como resultado, obteve-se a confirmação da hipótese de que os professores em formação inicial não se atêm à coerência epistemológica dos pressupostos que fundamentam e norteiam suas práticas pedagógicas, apenas reproduzem os processos de dominação da educação bancária.

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Como citar este trabalho

ALVES JUNIOR, Hélio da Guia. A construção da consciência epistemológica na graduação: uma análise de projetos de pesquisa elaborados por professores em formação. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/275-a-constru%C3%A7%C3%A3o-da-consci%C3%AAncia-epistemol%C3%B3gica-na-gradua%C3%A7%C3%A3o-uma-an%C3%A1lise-de-projetos-de-pesquisa-elaborados-por-professores-em-forma%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 16 out. 2025.

A construção da consciência epistemológica na graduação: uma análise de projetos de pesquisa elaborados por professores em formação

O presente estudo apresenta uma análise de projetos de pesquisa desenvolvidos no âmbito da disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso, ministrada remotamente em função do isolamento social promovido pela pandemia, em que o professor-pesquisador responsável pelo presente artigo atua como docente orientador dos alunos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas de uma instituição privada de Ensino Superior.

Parte-se da premissa de que o professor orientador deve prezar pela coerência epistemológica das pesquisas realizadas sob sua tutela, visando à emancipação dos alunos enquanto professores-pesquisadores autônomos, críticos e reflexivos, já que a educação, mesmo quando oferecida em instituições particulares, não deve ser compreendida como um serviço a ser ofertado a partir das necessidades mercadológicas, mas como um direito que se constitui na dialogicidade, sob perspectiva histórica, com foco na vivência processual dos sujeitos dentro do tempo necessário para a reflexão e na construção de uma indocilidade reflexiva que se impõe contra o imperativo da lógica do consumo, a qual subverte as expectativas pedagógicas e as reduz a roteiros didáticos desconectados dos sujeitos a que se destinam.     

Com isso, pretendeu-se desenvolver uma resposta satisfatória para a seguinte pergunta norteadora: no contexto do ensino superior privado, os fundamentos epistemológicos predominantes nas pesquisas desenvolvidas pelos professores em formação desvelam um rompimento com as práticas bancárias de ensino?

Foram elencadas como possíveis respostas para essa problematização as seguintes hipóteses:

  • H0. Os professores em formação inicial se atêm à coerência epistemológica dos pressupostos que fundamentam e norteiam suas práticas pedagógicas e seus referenciais contrapõem-se aos processos de dominação da educação bancária.
  • H1. Os professores em formação inicial se atêm à coerência epistemológica dos pressupostos que fundamentam e norteiam suas práticas pedagógicas, mas seus referenciais corroboram os processos de dominação da educação bancária.
  • H2. Os professores em formação inicial não se atêm à coerência epistemológica dos pressupostos que fundamentam e norteiam suas práticas pedagógicas, apenas reproduzem os processos de dominação da educação bancária.

Levando em consideração a pergunta norteadora da pesquisa, o objetivo geral do presente projeto foi identificar os pressupostos teóricos predominantes que subsidiam e orientam as práticas de pesquisa dos educandos dos cursos de Licenciatura. Para isso, foram elencados os seguintes objetivos específicos: (i) compreender a dimensão política da práxis docente; (ii) analisar a fundamentação teórica das pesquisas almejadas pelos educandos; (iii) refletir sobre os desdobramentos ideológicos das intenções de pesquisa encontradas.

O interesse por esta pesquisa advém da observação da necessidade de valorização nas licenciaturas de atividades e posturas coletivas que almejem a superação da lógica da formação fragmentada, que visa ao individualismo e à competitividade, próprias das sociedades capitalistas neoliberais. Desta forma, justifica-se a importância deste estudo com a busca por caminhos de resistência a essa imposição, para a implementação de espaços de reflexão para as dificuldades elencadas, emponderando professores em sua formação inicial, já que urge a necessidade de formarmos docentes que compreendam a dimensão política da Educação, engajando-se no combate às desigualdades sociais que têm sido perpetuadas institucionalmente.

A partir de um levantamento bibliográfico, foi possível encontrar subsídio teórico para o presente estudo, o qual será apresentado de forma mais detalhada na seção seguinte. O corpus deste estudo foi constituído a partir da coleta de projetos de pesquisa em turmas de 7º semestre de cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas, em que foram analisadas as propostas de pesquisa dos educandos com vistas à compreensão de sua concepção epistemológica.

Referencial teórico

De acordo com Buzato (2018), desde a metade do século XX, ocorre uma aceleração dos processos de digitalização do mundo, colocando em curso transformações que afetam as esferas sociais, políticas e culturais da sociedade. Nesse contexto, ao pensar em como as novas tecnologias impactam o mundo contemporâneo e seus paradigmas, Lankshear (2003 apud BUZATO, 2018) destaca três importantes tendências: (i) performatividade: a busca pela máxima eficiência como critério de cientificidade substitui o conhecimento; (ii) dadificação: a disputa entre os modelos de busca da verdade baseados em teorias, o método científico tradicional e o uso de grandes volumes de dados em linha, recursos de aprendizagem de máquina e inteligência artificial; (iii) ampliação da crença de que os “enquadramentos ideológicos” estão chegando ao fim, abrindo espaço para uma “ideologia do conhecimento neutro”. 

Percebe-se, portanto, que essas novas tendências que se impõem a partir da dadificação do mundo reforçam o mito da neutralidade ideológica operada pela tecnologia, o que legitima o avanço da “uberização” da educação e coloca em risco as consciências críticas que se situam na contramão do assujeitamento e da docilização em larga escala promovidos pela lógica do mercado, já que, nesse mundo articulado em torno da inteligência artificial e mascarado pela ideologia neoliberal, não há espaço para “os saberes interrogantes das práticas, os saberes dialogantes das intencionalidades da práxis e os saberes que respondem às indagações reflexivas formuladas por essas práxis” (FRANCO, 2003, p. 85), pois só há interesse sobre os grandes volumes de dados coletados que precisam ser compilados e analisados sob a ótica positivista da ciência de dados e dos interesses das Big Techs e dos grandes conglomerados financistas, que ofuscam cada vez mais as fronteiras entre o público e o privado, principalmente na Educação Superior (SGUISSARDI, 2015 apud PIMENTA, 2017, p. 3).

Além disso, no Brasil, quando olhamos para o cenário da formação de professores no tempo presente, podemos destacar alguns eventos recentes que impactaram fortemente as possibilidades e as perspectivas da atuação docente:

(i) a instalação de forças reacionárias à frente da nação, representando um retorno a um norteamento antagônico  e incompatível com os ideais de justiça social, democracia e liberdade; (ii) o desmonte da ciência promovido pelos incessantes cortes de recursos, vide o recente “apagão digital” dos sistemas do CNPq; (iii) a exacerbação das desigualdades do país com a pandemia do Covid-19, a qual tem se alastrado por quase dois anos; (iv) a cessão das políticas públicas aos interesses dos grandes conglomerados financistas, os quais privatizam o direito à educação de qualidade e massificam a oferta de um ensino impessoal, tecnicista, acrítico e descontextualizado, limitando o professor a um prestador de serviços. 

No ensino superior privado, esses eventos fomentam a subversão pedagógica que substitui a relação professor-aluno-universidade por empresa-cliente, retirando a presença do educador das decisões, dos processos e dos vínculos de interação e de aprendizado que se constituíam no espaço universitário.

Seguindo a lógica neoliberal, travestida como “tendência do mercado”, as novas diretrizes curriculares propostas a partir do cenário exposto apostam em um discurso sobre as competências que há muito tempo já oculta “a tecnização do trabalho dos professores e de sua formação” (PIMENTA, 2006, p. 25) e na substituição do tempo coletivo presencial em sala de aula por espaços de interação virtual, com modelos “híbridos”, o que nos coloca numa nova dinâmica praticista intermediada, desta vez, por ambientes digitais construídos em torno dos conteúdos e do acesso aos arquivos de mídias em que eles se encontram.  

Nessa barbárie promovida pelo avanço das políticas neoliberais no campo da educação (CHARLOT, 2020), professores-pesquisadores se insurgem contra as tentativas de desumanização das relações pedagógicas, evidenciando o significado político da atividade docente por meio de uma perspectiva emancipatória.

Neste contexto, quando a atenção é voltada para a formação de professores, tem-se como ponto de partida a necessidade de compreender que “o objetivo da pedagogia como ciência da educação será o esclarecimento reflexivo e transformador da práxis” (FRANCO, 2003, p. 83), perspectiva que deve ser estendida a todos as áreas dos cursos de Licenciatura.

Em outras palavras, os professores, e mais especificamente o pedagogo, são os agentes cuja preocupação é a reflexão sobre a Educação (não restrita ao ensino), a qual deve estar ancorada em sólidas bases teóricas e metodológicas dentro de uma perspectiva crítica que legitima seu status como ciência da educação. Ou seja, em consonância com Pimenta e Lima (2017, p. 5), “um profissional crítico-reflexivo e pesquisador de sua práxis e da práxis educativa que se realiza na escola na qual atua”.

Desta forma, a reflexão tem sido discutida e compreendida como uma dimensão sine qua non do professor contemporâneo, tornando-se um paradigma consolidado entre os estudiosos da área (PIMENTA, 2002; GHEDIN, 2002; GHEDIN; OLIVEIRA; ALMEIDA, 2015).

No entanto, já há alguns anos, Pimenta (2006) chamava atenção para banalização da ideia que ocorria com a circulação e apropriação indevida do termo em diferentes espaços, sem a devida contextualização e compreensão, fenômeno recorrente desde a última década do século anterior:

 

De fato, desde os inícios dos anos 1990 do século XX, a expressão “professor reflexivo” tomou conta do cenário educacional, confundindo a reflexão enquanto adjetivo, como atributo próprio do ser humano, com um movimento teórico de compreensão do trabalho docente. (PIMENTA, 2006, p. 18).

 

Com isso, a presença do adjetivo nas interlocuções pedagógicas torna-se frequente, mas o engajamento em torno da ação acaba, na maioria dos casos, limitando-se ao discurso, compondo apenas um jargão no léxico pedagógico, junto a outros conceitos que vão sendo dissociados de suas concepções originais, tendo em vista que “essa massificação do termo tem dificultado o engajamento de professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer técnico” (PIMENTA, 2006, p. 23).  

Entre esses termos, além da ideia de professor reflexivo, a práxis é outro conceito que tem sido empregado à exaustão e, por vezes, de forma equivocada, tratado como mero sinônimo de atividade prática. No presente estudo, assume-se práxis como

 

[...] atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais consequente, precisa da teoria; é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática. (KONDER, 1992, p. 115 apud PIMENTA; LIMA, 2017, p. 14).

 

Isto posto, dentro dos cursos privados de licenciatura, há a necessidade de se resgatar esses dois conceitos essenciais para a ação docente historicamente situada, já que “a concepção e a prática ‘bancárias’, ‘imobilistas’, ‘fixistas’, terminam por desconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens” (FREIRE, 1987, p. 47), possibilitando que a futura práxis pedagógica desses educandos esteja “sempre a serviço de um objetivo e não de um cliente de modo a tornar-se militante de uma causa e não serviçal de um projeto imposto” (FRANCO, 2005, p. 494). O que poderá ser concretizado por meio de “atitudes problematizadoras e contextualizadoras das circunstâncias da prática; dentro de uma perspectiva crítica sobre as ideologias presentes na prática, tendo por objetivos a emancipação e a formação dos sujeitos da prática (FRANCO, 2003, p. 88), principalmente quando elas se materializam na educação básica, por meio do espaço escolar da escola pública, em consonância com Freire (2006), o qual considera que “a aproximação da universidade com a escola (pública) permite que a própria universidade se aproprie de um conhecimento da realidade que a fará pensar o seu ensino e a sua pesquisa” (FREIRE, 2006, p. 81-82), evitando, com isso, a reprodução do praticismo, já que

 

O saber docente não é formado apenas da prática, sendo também nutrido pelas teorias da educação. Dessa forma, a teoria tem importância fundamental na formação dos docentes, pois dota os sujeitos de variados pontos de vista para uma ação contextualizada, oferecendo perspectivas de análise para que os professores compreendam os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si próprios como profissionais. (PIMENTA, 2006, p. 24).

 

Por esse motivo, com base no referencial teórico exposto, defende-se neste projeto que as ações desenvolvidas como Trabalho de Conclusão de Curso nas Licenciaturas constituam atividades de pesquisa que possibilitem aos seus autores a transformação da realidade do ensino nos contextos em que eles se situarem em sua futura práxis docente, com vistas à emancipação (FREIRE, 1987; FRANCO; PIMENTA, 2016; 2012; 2004; GHEDIN, OLIVEIRA, ALMEIDA, 2015).

Busca-se, portanto, a valorização nas licenciaturas de atividades e posturas coletivas, com vistas à superação dos paradigmas da formação fragmentada, do individualismo e da competitividade vigentes nas sociedades neoliberais (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2000; SGUISSARDI, 2015) e à “apropriação e produção de teorias como marco para a melhoria das práticas de ensino e dos resultados” (LIBÂNEO, 1998, p. 25).

 

Metodologia

           

O local em que se realizou a pesquisa foi uma faculdade particular de pequeno porte da região da Baixada Santista, litoral de São Paulo. A instituição conta com cerca de 2000 educandos matriculados, divididos entre os períodos matutino e noturno. Neste último, concentra-se a maior parte do corpo discente, já que a maioria dos cursistas, oriunda da classe trabalhadora, realiza suas atividades profissionais durante o dia.

Considerando a sala de aula como lugar privilegiado da formação inicial do professor, da sua prática e da sua pesquisa, desenvolveu-se um estudo com abordagem qualitativa, de natureza básica e com objetivo exploratório, realizado a partir da análise da construção de projetos de pesquisa de alunos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas em que se observou o conteúdo dos seguintes itens: (i) tema da pesquisa; (ii) pergunta norteadora; (iii) objetivos; (iv) metodologia; (v) referencial teórico. Na sequência, os dados coletados desses itens foram agrupados de acordo com a semelhança entre eles a fim de viabilizar as análises deles decorrentes.

O método para a seleção dos projetos de pesquisa participantes do estudo foi o não probabilístico por conveniência, por conta da necessidade de trabalhar com um público específico, para o qual adotou-se como critérios de participação (i) ser aluno da instituição lócus; (ii) ser aluno do curso presencial de Licenciatura em Ciências Biológicas; (iii) ter desenvolvido um projeto de pesquisa para a disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso I. Desta forma, foram obtidas 13 amostras oriundas de duas turmas diferentes, as quais constituem o corpus do presente estudo.

Sob a ótica da Pedagogia Crítica, os projetos de pesquisa dos Trabalhos de Conclusão de Curso foram analisados a partir das seguintes categorias: (i) o paradigma pedagógico dominante; (ii) imbricamento da teoria e da prática; (iii) postura assumida pelos educandos na condução de suas pesquisas.

 

Resultados

 

A partir da análise do corpus, foi possível observar que a escolha dos temas de pesquisa pelos alunos se distribuiu em torno dos seguintes tópicos: dificuldades no ensino remoto de Ciências/Biologia (4); Educação Ambiental (4); Comportamento Animal (2); Educação no Campo (1); Controle de Zoonoses (1); e Jogos no Ensino de Ciências/Biologia (1).

Quando olhamos para as perguntas de pesquisa presentes nos projetos, podemos observar que as palavras-chave mais frequentes entre elas foram, respectivamente, “pandemia”, “dificuldades” e “alunos”, tendo como verbos predominantes “identificar” e “analisar”.  

Os objetivos escolhidos foram encapsulados da seguinte forma: identificar o impacto da pandemia no ensino (4); analisar comportamentos de animais (3); melhorar práticas pedagógicas (2); identificar obstáculos dos alunos de zona rural à escola (1); implementar ações de conscientização ambiental (1).

No que se refere à dimensão metodológica elencada para as pesquisas, considerando que mais de um método foi escolhido para alguns projetos, os resultados encontrados são os seguintes: pesquisa-ação estratégica (6); questionário (6); observação estruturada individual (2); entrevista semiestruturada (1); metanálise (1).

O referencial teórico inicial esteve ausente em 100% dos projetos de pesquisa.

 

Análise e discussão dos resultados

 

Os assuntos de interesse dos educandos que mais receberam atenção foram os que estavam relacionados a tópicos da Educação Ambiental (30,7%) e aqueles oriundos das dificuldades promovidas pelo ensino remoto emergencial (30.7%). Quando olhamos especificamente para os trabalhos que se dedicam a tópicos relacionados à Educação, observamos que 76,9% dos participantes optaram por pensar o espaço escolar e os processos pedagógicos.

Os temas predominantes revelam a preocupação desses futuros professores em pensar a posição da escola nos problemas contemporâneos e como eles afetam os processos pedagógicos, refletindo sobre papel que ela ocupa perante a conscientização das questões ambientais e de como a adaptação ao ensino remoto tem ocorrido. No entanto, pode-se afirmar que ainda não houve um despertar crítico, pois a discussão a respeito dos desdobramentos ideológicos de suas práticas e discursos, da perpetuação de desigualdades e dos efeitos das políticas neoliberais sobre a Educação não foram considerados relevantes o suficiente para serem abordados como objetos de pesquisa.

A respeito da pergunta norteadora, os dados demonstram que, apesar de nem todos as propostas apontarem a pandemia como tema do estudo, ela foi um tópico predominante em todos os projetos. É possível constatar que os professores em formação colocaram os alunos na centralidade da preocupação de suas discussões, revelando uma inclinação para uma perspectiva pedagógica que não está organizada exclusivamente em torno dos conteúdos a serem transmitidos.

Contudo, a escolha pela pesquisa-ação estratégica para a intervenção pedagógica com os alunos revela uma posição que não considera os participantes como sujeitos dotados de individualidade, os quais podem ser incluídos e ouvidos ao longo do processo, revelando uma abordagem hierarquizada e positivista do estudo, já que:

 

[...] a transformação é previamente planejada, sem a participação dos sujeitos, e apenas o pesquisador acompanhará os efeitos e avaliará os resultados de sua aplicação, essa pesquisa perde o qualificativo de pesquisa-ação crítica, podendo ser denominada de pesquisa-ação estratégica. (FRANCO, 2005, p. 486).

 

 A ausência de referencial teórico foi o resultado que mais chamou a atenção durante as análises, já que revela um total descolamento entre as ações que se pretendem tomar e os fundamentos teóricos que poderiam subsidiá-las de forma adequada e epistemologicamente coerente.   

Desta forma, assentando-se nas análises, é possível afirmar que o paradigma pedagógico dominante nos estudos apresenta consonância com a educação bancária, pois não tem por objetivo a promoção de processos pedagógicos que almejem a emancipação dos participantes, tampouco há qualquer interesse pelo despertar para a consciência crítica ou para a reflexão docente.

No que tange ao imbricamento da teoria e da prática, pode-se constatar que não há relação explicitamente estabelecida entre elas, já que nenhum referencial teórico foi elencado para subsidiar o estudo, revelando uma ação docente “mecânica”, de caráter exclusivamente praticista.

A postura assumida pelos educandos na condução de suas pesquisas revela uma perspectiva que se pauta unicamente pela prática por parte dos professores em formação, os quais, ao que tudo indica, não foram convidados a questionar os fundamentos de suas ações enquanto futuros docentes ou a pensar a dimensão política da práxis que por eles será conduzida.

Do ponto de vista ideológico, a desumanização que tem sido engendrada na formação dos professores faz com que os cursos de licenciatura sejam esvaziados de sentido, formando educandos dentro de uma perspectiva acrítica, focada nos conteúdos a serem transmitidos, sem preocupação epistemológica e sem tempo para a reflexão ao longo desse processo, enfraquecendo cada vez mais a dimensão teórica da práxis e concebendo meros “passadores de lição”, sem noção do papel intrinsecamente político de um educador reflexivo, crítico, consciente e, acima de tudo, humano.

Nesse sentido, às luzes do pensamento crítico, muito se tem debatido sobre o perfil de egresso que se pretende formar no ensino superior brasileiro. Todavia, sejam quais forem as especificidades que embasam os ideais que sustentam esse debate em cada espaço, os docentes e pesquisadores costumam concordar com a necessidade de resgatarmos a valorização dos sujeitos e dos processos educativos com valor pedagógico, o que fundamenta a responsabilidade do professor orientador em elucidar os problemas oriundos da ausência de coerência epistemológica e a necessidade de se buscar a implementação de espaços de reflexão e resgate de uma práxis consciente.

A partir do que foi exposto nas análises, ao recuperarmos a pergunta norteadora do presente estudo, podemos considerar que a hipótese que encontrou sustentação nos resultados é a resposta que traz a seguinte afirmação: os professores em formação inicial não se atêm à coerência epistemológica dos pressupostos que fundamentam e norteiam suas práticas pedagógicas, apenas reproduzem os processos de dominação da educação bancária.

A confirmação dessa hipótese se deu, principalmente, pela ausência de referencial teórico nos projetos de pesquisa, demonstrando que os fundamentos por trás da ação docente não ocupam a preocupação dos professores em formação, o que revela um paradigma pedagógico tecnicista, a inexistência de imbricamento entre teoria e prática e uma postura totalmente incompatível com uma proposta de educação emancipatória.

Essa constatação abre espaço para se investigar até que ponto essas questões foram abordadas ao longo da formação desses alunos, o que poderá revelar uma formação esvaziada de compromisso com a criticidade, já que é papel da Licenciatura conceder-lhes uma formação que possibilite o despertar para uma consciência crítica a respeito da práxis docente.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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