- Introdução
Este artigo discute os processos formativos envolvidos na prática do coco de roda, dança da tradição popular de Alagoas. O estudo problematiza três contextos diferenciados da prática dessa dança: os processos de tapagens de casa de pau-a-pique, a escola e o trabalho desenvolvido pelo Professor Pedro Teixeira de Vasconcelos e os grupos juvenis de coco de roda, mais especificamente o grupo Xique-Xique, atuante no bairro do Jacintinho em Maceió, Alagoas.
As referências à presença do coco por ocasião dos mutirões comunitários para a construção de casas de pau-a-pique no meio rural alagoano nos foram trazidas pelos relatos dos mestres populares com que tivemos oportunidade de conviver durante nossa pesquisa de mestrado, mais especificamente o mestre Verdelinho e a Mestra Hilda Maria da Silva, dois dos principais guardiões da tradição do coco alagoano, ambos falecidos. Seus relatos embasaram o texto de nossa dissertação de mestrado, uma das bibliografias utilizadas para o estudo em tela.
O Professor Pedro Teixeira de Vasconcelos foi responsável por desenvolver importante projeto educativo entre as décadas de 1960 e 1990 do século passado em Maceió e em Viçosa, respectivamente capital e cidade do interior de Alagoas. Ele levou mestres populares para as escolas, públicas e privadas, para montar grupos de danças e folguedos[1] alagoanos com os estudantes. Seu trabalho reverberou até os dias atuais na criação de grupos juvenis de coco de roda no estado, como veremos adiante. Para compreendermos o trabalho desenvolvido por esse professor, tomamos por referência os relatos das entrevistas realizadas com alguns de seus ex-alunos, assim como a obra do próprio professor, o livro Andanças pelo Folclore.
Em relação ao grupo Xique-Xique, a observação participante (OLIVEIRA, 1996) em ensaios e apresentações, realizada por dois anos, foi a ferramenta de base a partir da qual foram gradativamente se evidenciando os procedimentos mais adequados às especificidades do contexto pesquisado. De início considerei o grande número de componentes do grupo Xique-Xique, cerca de noventa jovens, procurando, assim, encontrar meios de obter a escuta do maior número de vozes possíveis. O método dos grupos de discussão me pareceu assertivo uma vez que nele as perguntas do pesquisador são lançadas como provocações a um grupo de pessoas que as discutem conjuntamente. Tomando como referência o trabalho desenvolvido por Wivian Weller (2006), adaptei o aspecto comparativo entre diferentes grupos, que caracteriza esse método, equalizando à comparação entre dois subgrupos de um mesmo grupo, isto é, do Xique-Xique. O recorte dos subgrupos tomou como referencial o tempo de pertencimento ao grupo com relação à vivência ou não do processo de aprendizado dos trupés (sapateado) tradicionais do coco alagoano, ocorrido entre 2010 e 2011.
Com Nilton Rodrigues, criador e coordenador do Xique-Xique, realizamos entrevistas compreensivas (KAUFMAN, 2013). A proposta metodológica de Kaufman norteou a realização de todas as entrevistas feitas nesta pesquisa. Apoiamos-nos nas prerrogativas desse autor para a abordagem dos sujeitos pesquisados, considerando que para que o processo compreensivo se estabeleça é necessário compreender as pessoas como “depositárias de um saber importante que deve ser assumido do interior, através do sistema de valores dos indivíduos”. Ao quebrar as hierarquias de saberes entre entrevistador e entrevistado e estabelecer-se um processo de compartilhamento de conhecimentos, “o informante se surpreende por ser ouvido profundamente e se sente elevado, […]a um papel central. Ele não é vagamente interrogado a respeito de sua opinião, mas por aquilo que possui, um saber precioso que o entrevistador não tem” (KAUFMAN, 2013, p. 80).
Seguindo essa perspectiva metodológica, realizamos também entrevistas com atores sociais que vêm protagonizando a continuidade dessa tradição, como Jurandir Bozo, músico alagoano responsável pela mediação entre os conhecimentos dos velhos mestres e os grupos juvenis de coco de roda, e Feliciano Júior, criador do pioneiro grupo Pau de Arara e do primeiro concurso estadual de grupos de coco de roda.
Em Alagoas, encontramos um panorama de realização da dança do coco marcado por dois campos distintos: de um lado, grupos juvenis organizados em vários bairros periféricos, sobretudo na capital, Maceió, que vêm crescendo a cada ano em número de adeptos; de outro lado, grupos geridos por mestres guardiões da tradição – constituídos, em sua maioria, por pessoas idosas – que vêm sendo desativados na medida em que seus líderes falecem. Entre esses vários grupos juvenis, elegemos o grupo Xique-Xique para estudo, por ter sido um grupo pioneiro na busca por acessar os conhecimentos dos velhos mestres guardiões da tradição do coco alagoano.
Ao adentrarmos esse contexto, localizamos uma zona de tensão entre os grupos juvenis de coco de roda e folcloristas alagoanos vinculados à Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (Asfopal), entidade criada em 1985 tendo como objetivo “a preservação, manutenção, valorização e divulgação da cultura popular de Alagoas” (NOVAES, 2011, p.19). Segundo Nilton Rodrigues, essa instituição confere severas críticas ao trabalho desenvolvido pelos grupos juvenis de coco de roda, deslegitimando-os como continuadores da tradição do coco alagoano. Desse modo, realizamos entrevistas também com alguns desses folcloristas buscando o entendimento mais profícuo da questão em que a tradição aparece como categoria-chave.
A tradição prescinde da passagem do conhecimento de uma geração a outra, tendo nessa relação sua condição de existência. Refletir sobre as condições de tal relação nos dias atuais foi requisito fundamental neste estudo para problematizar os processos formativos da dança do coco. Nesse sentido, as contribuições de Giddens (1997, 2003) foram fundamentais. Sua abordagem sobre tal conceito, frente às emergências da modernidade, permitiu problematizar a discussão em torno da dialética entre permanência e mudança que perpassa a relação com a tradição, vivida nos contextos abordados.
Giddens (1997) disseca ontologicamente o conceito de tradição questionando as possibilidades da manutenção de suas bases estruturais frente aos redirecionamentos das ordens de relação espaço-temporais nas sociedades modernas globalizadas. Para o autor, “a tradição é o verdadeiro medium da ‘realidade’ do passado” e a repetição sua condição de existência (Ibid, p.116). Ademais, o referido pensador chama atenção ao fato de ser nas instâncias que se repetem que reside o caráter identitário ou legitimador da tradição e não no seu tempo de existência. Embora seja necessário admitir que as tradições estão sempre mudando, é preciso também assumir que existe um grau de integridade que resiste “ao contratempo da mudança”, que é sua “verdade formular” (Ibid, p.81). Seriam então os velhos mestres do coco alagoano os guardiões da “verdade formular” dessa tradição dançante e foi atrás desse conhecimento dos mais velhos que os jovens do Xique-Xique se direcionaram, como veremos a seguir.
Observar os trânsitos entre permanência e mudança para a manutenção da tradição do coco alagoano, verificando as diferentes relações de sentido na prática dessa dança, presentes nos seus processos formativos em cada contexto histórico e sócio-cultural específico de realização é o foco deste estudo. Desse modo, seguimos na estruturação deste artigo apresentando os diversos contextos de realização do coco recortados nesta pesquisa.
[1] Por folguedo, define-se a manifestação folclórica que reúne maior diversidade de linguagens: música, dança, poesia cantada, plasticidade visual e representação teatral, além da presença conjunta de elementos profanos e sagrados (VILHENA, 1997).
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- Coco é mutirão - a dança no processo de construção de casas de pau-a-pique
O coco alagoano é uma dança da tradição popular, predominantemente dançada em roda, aos pares, tendo como característica principal o sapateado, cuja intenção percussiva dos dançarinos e das dançarinas faz deles produtores da sonoridade de sua dança. A dança do coco costumava ser dançada por ocasião das tapagens de casa de pau-a-pique no meio rural. Nesse contexto, que reunia trabalho e festa, o sapateado da dança, denominado “trupé”, servia para nivelar o chão da casa que era de barro. Como etapa final do processo de construção da casa, o dono da empreitada oferecia aos vizinhos e colaboradores uma festa, finalizando assim a obra com o nivelamento do piso da casa por meio da dança (CAVALCANTI, 1997).
Nessas festas, saber sapatear bem e por bastante tempo era sinônimo de resistência e de vitalidade. Essa situação fomentava a improvisação rítmica configurando grande inventividade de novos repertórios do sapateado. Os jovens tinham grande interesse em aprender os diferentes tipos de trupé e, nesse sentido, as festas eram as grandes “escolas”.
Em meio à festa e às ações de trabalho em mutirões comunitários, o aprendizado se dava de modo direto na relação entre diferentes gerações, mestres e aprendizes. Relação que, muito comumente, se estendia para a ordem da convivência cotidiana comunitária. Nesse processo, o aprendizado do repertório de movimento não se dava de forma descolada dos aspectos históricos e sócio-culturais em que estava imerso, seja pelo acesso à memória da manifestação conferido nas narrativas dos mais velhos, seja pela própria vivência da dança que se dava nos seus contextos geradores de sentido, neste caso, as festas de tapagem de casas-de-pau-a-pique.
Nesse ambiente encontrava-se imbricado o sentido lúdico-festivo com a função pragmática da ação corporal de nivelar e alisar o piso da casa. Nesse encontro comunitário para festar e trabalhar, técnicas especificas eram desenvolvidas, experimentadas e repassadas de uma geração a outra por meio da observação e da imitação. Nessa ação dançante comunitária, o jogo improvisacional se faz presente e interage com um repertório aprovado pela tradição. O valor do singular inventivo emerge na relação com o tradicional coletivo, atiçado pelo jogo de desafios entre brincantes em meio a jogos competitivos, envolvendo o domínio do repertório da tradição.
O tempo para a apreensão desse repertório é individual e se dá ao longo da vida, tendo a festa como lugar da experiência coletiva e o cotidiano como esteio para o amadurecimento dos sentidos. Demonstrar o domínio dos elementos da dança e ter o reconhecimento do grupo é sem dúvida algo importante nesse contexto. A partir dessas demonstrações, surgem os brincantes que se tornam referência à observação e ao aprendizado dos mais inexperientes, e, assim, cada um, no seu tempo particular, vai construindo seu processo de aprendizado da dança e encontrando seu lugar na roda.
Nesse contexto rural, o desenvolvimento do domínio técnico específico da dança do coco se dá, de modo mais contundente, em meio à realização de uma ação coletiva, comunitária, para se construir um bem individual em que o sistema de trocas[1] conduz tanto à efetivação da moradia quanto ao conhecimento da dança. A função demonstrativa do dar-a-ver-se, apesar de fazer parte do sentido de realização da dança, não constitui seu fim prioritário. Outrossim, a relação entre aquele que apresenta e aquele que aprecia se dá de modo muito próximo, imbuída de um grau de ludicidade que torna executante e apreciador pares de uma mesma brincadeira, uma condição bem diferenciada da que acontece entre palco e plateia nos moldes dos palcos italianos por nós herdados e usados até hoje.
Na medida em que as casas de pau-a-pique foram sendo substituídas pelas de alvenaria, a dança do coco foi se desvinculando do contexto festivo, passando então a ser realizada por meio de grupos criados por mestres da tradição, muitos deles migrantes do interior de Alagoas para a capital, que se organizavam em torno da realização de ensaios para apresentações em eventos, principalmente voltados para o público de turistas. Os integrantes desses grupos eram, em sua maioria, adultos e idosos, a maior parte deles já falecidos e seus grupos desativados.
3. Pedro Teixeira de Vasconcelos e a trajetória do coco alagoano na escola
Filho de fazendeiros, Pedro Teixeira de Vasconcelos, mais conhecido como Professor Pedro Teixeira, nasceu no dia 12 de outubro de 1916 em uma região em que hoje se situa o município de Chã Preta, mas que, à época de seu nascimento, integrava o município de Viçosa. Vivenciou em sua infância uma proximidade muito grande com as manifestações das tradições populares de Alagoas. Sua família era muito afeita a essas manifestações, levando sempre para dentro da casa grande da fazenda Medina, onde morava, folguedos como o guerreiro, o reisado, o pastoril. Sobretudo sua mãe era uma grande entusiasta, o que a levava a organizar danças e brincadeiras envolvendo os familiares, chegando até mesmo a criar um reisado da família, o Reisado da Medina (VASCONCELOS, 1998).
A relação de Pedro Teixeira com os folguedos e danças de Alagoas dá-se, assim, não apenas no plano da leitura e da apreciação, mas também da vivência, da experiência corpórea com os cantos, o movimento e as relações entre corpos que essas manifestações proporcionam. Sobre essa base proceder-se-á toda a sua trajetória como educador e folclorista, notadamente reconhecida pelos alagoanos. Será edificado também um artista criador de coreografias, faceta essa sublimada pelos folcloristas alagoanos, mas que pretendo explicitar no decorrer deste trabalho.
Sua trajetória profissional será longa e intensa. Como gestor, assumiu o cargo de Chefe do Serviço de Orientação Educacional da Secretaria da Educação de Maceió (1960-1963), Coordenador Regional de Ensino da 1ª Região – SED Maceió, Técnico de Educação da Secretaria da Educação de Alagoas (1965-1982), Assessor da equipe de Métodos, Currículos e Programas da SED-Alagoas (1974-1975), chefe de atividades Extra-Curriculares da SED; Coordenador dos Conjuntos Folclóricos de Departamento de Assuntos Culturais da SED (1962-1982), Chefe da Equipe Alagoana de Folclore junto ao Jogos Estudantis Brasileiros (1972-1978), conselheiro do Conselho Estadual de Cultura – SECULT-AL (1973-2000), membro e Presidente da Comissão Alagoana de Folclore.
Sua atuação como educador foi marcada pelo desenvolvimento de um projeto importantíssimo para todo um contingente de estudantes alagoanos, entre as décadas de 1960 e 1990, sobretudo para aqueles residentes em Chã Preta e em Maceió na época. Foi ele responsável por levar mestres populares às escolas e lá criar grupos de folguedos[2]. Esses grupos realizavam inúmeras apresentações tanto em Alagoas quanto fora do estado, em festivais folclóricos e eventos afins[3]. Sua atuação como professor se deu, em Maceió, na rede pública de ensino, nas escolas Correia das Neves, Crispiniano Portal, Pio X, Nossa Senhora das Graças e Élio Lemos. Também atuou com a criação de grupos de folguedos na escola da rede privada Sagrada Família e, na cidade de Chã Preta, atuou na Escola Cenecista, a qual foi por ele fundada (VASCONCELOS, 1998).
Era uma premissa fundante de seu projeto pedagógico a presença dos mestres da tradição para passar os ensinamentos aos estudantes. Nas apresentações realizadas por esses grupos de estudantes, ele fazia o possível para levar esses mestres representantes da tradição popular de Alagoas. Apenas com relação ao presépio, ao pastoril e ao coco, ele abria uma ressalva e atuava, ele mesmo, como coreógrafo e/ou ensaiador, como gostava de se intitular, fato que o levava a não admitir que seus grupos fossem identificados como parafolclóricos[4] e sim como “grupos autênticos”:
Em 1960 cheguei aqui em Maceió e de pleno acordo com o emérito mestre Théo Brandão, o maior folclorista de Alagoas, comecei a organizar grupos folclóricos em escolas estaduais e particulares da capital entretanto esses folguedos eram ensaiados e montados por mestres autênticos, legítimos (Ibid., p.88).
Todo e qualquer folguedo que não é ensaiado e montado por um homem folk é considerado parafolclórico. Quanto aos que eu incentivo e monto, concebo-os como autênticos. São ensaiados por mestres legítimos, verdadeiros homens folks. Coordenando estes folguedos durante os últimos dezoito anos, nunca os apresentei sob minha responsabilidade a não ser o Presépio, o Pastoril e o Coco. Os demais são preparados por mestres conhecidos e consagrados (Ibid., p. 137).
Segundo sua sobrinha e também aluna, Graça Vasconcelos, que atuou em seus grupos continuamente por 20 anos, desde os nove anos de idade, o Professor Pedro criava coreografias sobre as músicas do coco. Essa era uma atividade sobre a qual ele expressava muito entusiasmo, prazer e satisfação, demonstrando um alto grau de exigência com relação a uma boa execução por parte dos dançarinos e dançarinas frente à coreografia proposta para o conjunto.
Com seus grupos, ele realizou cerca de 40 apresentações em vários estados brasileiros[5]. As viagens para dançar fora de Alagoas motivavam bastante os jovens que integravam esses grupos. Promovia a adesão e a manutenção do vínculo com o grupo. Segundo Graça, que vivenciou a grande maioria das apresentações realizadas pelos grupos coordenados pelo Professor Pedro Teixeira, as demandas vindas desses festivais levaram o Professor Pedro a realizar mudanças nas danças e folguedos para uma melhor adequação ao contexto do palco, a exemplo da inclusão no acompanhamento musical do coco de um bumbo e um tarol.
Atuou, assim, o Professor Pedro Teixeira como um criativo coreógrafo que deu uma organização espaço-temporal à dança de modo a adequá-la ao contexto das apresentações e de torná-la mais atrativa para os jovens com os quais trabalhava nas escolas.
Sendo reconhecido em Alagoas como folclorista e um educador muito respeitado, as formas coreográficas e musicais do coco apresentado pelo Professor Pedro Teixeira foram copiadas por vários outros grupos ditos parafolclóricos, como o grupo formado por estudantes da Universidade Federal de Alagoas, dirigido pela Professora Maria José Carrascosa, por exemplo, e o grupo Transart, hoje Balé Folclórico das Alagoas, dirigido pelo Professor Roger Ayres.
Ele foi sem dúvida uma referência marcante em Alagoas enquanto conhecedor dos folguedos populares, a que se acrescenta sua adaptação ao contexto de apresentações. Os formatos por ele apresentados eram inquestionáveis por parte de seus seguidores quanto à representação de formas “tradicionais”, “genuínas” e “autênticas”, categorias utilizadas pelo folclorismo brasileiro em sua perspectiva essencialista sobre as tradições populares.
Embora do discurso oficial ele dissesse que só quem poderia fazer alterações nos folguedos seria o homem folk, ele, de fato, fazia alterações em vários componentes da dança, como o figurino, a sonoridade e o movimento.
Localiza-se, assim, certa dubiedade nos posicionamentos desse professor quando, ao tempo em que faz inúmeras transformações frente aos modelos “autênticos”, os quais conhecia em profundidade, declara:
É verdade que o Folclore não é estático, tendo de sofrer as modificações do meio ambiental entretanto não pode haver mudanças no seu ritual para não afetar a autenticidade e a pureza de sua essência, porém estas modificações somente podem ser feitas pelo homem “Folk” e não por nós outros que somos considerados intelectuais (Ibid., p.30).
Nós não podemos fazer modificação alguma nesses folguedos e nessas danças porém os mestres, o homem “folk” legítimo o pode, uma vez que foi ele o criador, o inventor destas manifestações (Ibid., p. 75).
Tal dubiedade poderia ser entendida como uma estratégica por ele acionada no sentido de fazer valer seu ideal de folclorista em manter viva as manifestações populares. Para ele, tal condição dependia da adesão da juventude, que, para tanto, precisava manter-se motivada à pratica através das modificações por ele propostas. Por outro lado, para manter os grupos juvenis em atividade, era preciso manter o respaldo de sua respeitabilidade entre os folcloristas e a comunidade em geral, sobretudo a escolar. Também estava nessa sua atuação como coordenador desses grupos juvenis o lugar de realização de seus anseios de criatividade artística. Situo, assim, o Professor Pedro Teixeira como um professor criador, um artista educador, talvez à frente de seu tempo, que teve na dança do coco seu meio privilegiado de desenvolvimento de sua criatividade e de prover herdeiros de seu legado.
Chamo a atenção ainda, para um dado a se considerar que é o fato de, no movimento folclórico brasileiro, priorizar-se o enfoque dos estudos, pesquisas e ações de salvaguarda sobre os folguedos (VILHENA, 1997). Assim sendo, o coco, por ser considerado pelos folcloristas alagoanos como uma dança e não como um folguedo (ROCHA, 1984), poderia estar, talvez, mais livre de “autuações” ou críticas de colegas folcloristas quanto às interferências realizadas pelo Professor Pedro.
Como dito antes, dentre as manifestações dançadas pelos grupos de estudantes organizados pelo Professor Pedro, era no coco que se permitia maior liberdade criativa e não exigia a presença de um mestre da tradição para o ensino e a apresentação da dança. Desse modo, e talvez por isso, foi o coco a dança mais disseminada pelos estudantes que passaram pelos grupos do Professor Pedro. Outra questão é que a indumentária era bastante simples se comparada aos folguedos e o acompanhamento musical não exigia nenhum instrumento melódico ou harmônico, apenas percussão.
Foi o Professor Pedro Teixeira responsável pela formação de vários agentes multiplicadores de suas ideias e pensamentos/dança, pessoas que deram prosseguimento ao seu trabalho, formando grupos em escolas públicas e particulares, tanto em Maceió quanto em Chã Preta. Posso citar aqui alguns exemplos dentre os vários existentes, como é o caso de sua sobrinha e ex-aluna Graça Vasconcelos, que se mantém até hoje à frente do grupo criado pelo Professor Pedro em Chã Preta; de Izaildo da Silva, de Fátima Brasileiro, que coordena o Grupo Folguedos e Danças Professor Pedro Teixeira, no bairro de Cruz das Almas em Maceió; do Professor José Carlos que criou um grupo de coco na Escola Rosalvo Ribeiro, pertencente à rede privada de ensino e situada no bairro do Jacintinho em Maceió. Este último teve como aluno, nessa escola, Nilton Rodrigues, fundador do grupo de coco Xique-Xique.
Muitos dos ex-alunos do Professor Pedro foram convidados por escolas públicas e privadas para montar apresentações de coco por ocasião das festas juninas e/ou do mês do folclore. A vivência nesses projetos pontuais com a dança do coco nas escolas deixou marcas consistentes em alguns estudantes, gerando a necessidade de dar prosseguimento à experiência, levando esses alunos à iniciativa de criar seus próprios grupos. Exemplo disso é o que ocorreu na Escola Princesa Izabel, uma escola do ensino médio que integra o Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas (Cepa), em Maceió, no final da década de 1990 do século passado. Nessa escola, a então professora da disciplina de Educação Artística, Rosa Peixoto, desenvolveu atividades de montagem e apresentação de coco com os alunos. Desse processo participou o então aluno da referida escola Meizon Peixoto Galvão, com 15 anos na época. Foi esse aluno, conjuntamente com o colega Ivanaldo Feliciano Junior, responsável por formar um grupo de coco nessa escola, dando continuidade ao trabalho iniciado pela anteriormente citada professora.
A ação protagonizada por esses alunos teve consequências marcantes nos rumos que tomaria o coco alagoano nos anos seguintes, como veremos no próximo tópico. Desse modo, evidencia-se a relevância do trabalho desenvolvido pelo Professor Pedro Teixeira e suas reverberações sobre o coco realizado hoje.
4. Da escola aos concursos - os grupos juvenis de coco de roda
Os concursos de grupos de coco de roda em Alagoas, começaram em 2001 por iniciativa de Ivanaldo Feliciano Júnior, mais conhecido como JR Silva. Como dito, JR iniciou sua trajetória criando um grupo de coco na escola Princesa Izabel, onde era aluno. Com a procura dos alunos de outras unidades de ensino do Cepa querendo integrar o grupo e o veto da direção da escola Princesa Izabel à participação de alunos de outras escolas, JR resolveu então desvincular o grupo de coco da escola, levando-o para a Federação dos Grêmios Escolares (Fregeal), tornando-o, assim, aberto à participação dos alunos de todas as escolas do Cepa. É desse modo, então, a partir do desvinculamento da escola Princesa Izabel que se funda, em 1998, o Grupo de Coco de roda Pau de Arara, existente até hoje no bairro do Clima Bom, em Maceió.
Em virtude da extinção da Fregeal, JR procura então a União dos Estudantes Secundaristas de Alagoas (Uesa) para abrigar seu projeto. Sendo ele coordenador de cultura dessa instituição, a aceitação da proposta foi facilitada.
Passando da coordenação de cultura para a diretoria da Uesa, JR institui, a partir de 2001, os concursos de coco de roda da Uesa, realizando edições durante toda a sua gestão, que se estendeu até 2008. Segundo JR, a iniciativa da criação dos concursos se deu por influência dos concursos das quadrilhas juninas, já existentes na época, nos quais se via uma grande motivação dos jovens em participar. Os concursos, assim, apresentaram-se como estratégia interessante para que a juventude se aproximasse do coco de roda, visando aumentar o número de adeptos a essa dança. Dentre os grupos que participaram dos concursos da Uesa estava o Xique-Xique.
Os fundadores do grupo Xique-Xique, Nilton Rodrigues e Antônio Carlos, assim como JR, aprenderam coco em suas escolas. O primeiro na Escola Rosalvo Ribeiro e o segundo na escola Santa Cecília, ambas situadas no bairro do Jacintinho e pertencentes à rede privada de ensino. Do conhecimento adquirido por esses jovens nessas experiências escolares, viria a possibilidade de coordenar um grupo de coco para fazer apresentações, tendo como foco principal a participação em concursos.
Da primeira edição do concurso da Uesa em 2001 para cá, o número de grupos de coco de roda só tem aumentado, assim como também cresceu o número de integrantes em cada grupo, o Xique-Xique, por exemplo, conta atualmente com um elenco de 90 jovens. A partir de 2006, os grupos se reuniram em torno da Liga dos Grupos de Coco de Roda de Alagoas, que conta atualmente com 20 grupos afiliados.
A partir de 2007 foi instituído, em parceria com a prefeitura de Maceió, o concurso estadual de grupos de coco de roda, realizado anualmente, integrando a programação oficial do São João de Maceió. Essa competição é tida como de grande importância pelos grupos juvenis, pois, além de haver uma premiação em dinheiro, é a que gera certa visibilidade nas mídias. Tal evento ocorre nos bairros Pajuçara e Jaraguá, contemplando também o público de turistas e ampliando o raio de ação e de visibilidade do trabalho desenvolvido pelos grupos de coco para além de suas comunidades. Além desse concurso, alguns grupos realizam competições em seus bairros. Aquele que sedia disputa em seu bairro não concorre, ficando a competição entre os demais grupos convidados. Assim é o caso do concurso realizado pelo grupo Xique-Xique, no Jacintinho, pelo grupo Pau de Arara, no Clima Bom, e pelo grupo Reviver, em Bebedouro.
Esses concursos são, em sua maioria, subsidiados pelo comércio local, por políticos e pelos próprios integrantes que apelam para a venda de comidas e bebidas durante o evento, além de buscarem parcerias com instituições para a concessão do espaço físico para a realização do concurso. Essas disputas têm como principal objetivo manter os grupos em atividade durante o segundo semestre, no período após a realização do concurso estadual. Existem grupos que só dançam por ocasião dos concursos, encerram as atividades após a competição e as retomam no ano seguinte, cerca de três ou quatro meses antes. Esses concursos de bairro, assim, tornam-se uma alternativa à permanência do vínculo entre os integrantes com a atividade.
Um outro aspecto relevante a ser observado nos concursos de bairro é que neles, diferentemente do concurso alagoano que só premia os grupos vencedores (1º, 2º e 3º lugar), são atribuídas classificações em várias categorias, tais como: melhor puxador, melhor dançarino, melhor dançarina, entre outros. Um modo de dar notoriedade ao trabalho individual e coletivo desenvolvido com o coco em cada um desses grupos. Um mecanismo também de suprir uma necessidade de reconhecimento e visibilidade que esses jovens não encontram nos outros espaços de convívio social.
Por outro lado, tenta-se exercitar, nesses concursos de bairro, a relação amigável entre os grupos, incentivando a união em torno de objetivos comuns. No concurso promovido pelo grupo Xique-Xique em 2015, presenciamos o ápice do exercício desse espírito de união entre os grupos “rivais” por meio da realização, após o término da competição e do anúncio dos vencedores, de uma grande roda envolvendo todos os grupos, em que os puxadores de cada grupo se revezaram cantando os cocos que eram respondidos por cerca de 200 vozes. Nesse momento, presenciamos a força de um movimento juvenil de potente beleza! O sentido festivo dominou o espaço da dança, instaurando uma estética na qual não cabem cisões entre tradição e contemporaneidade.
5. O grupo Xique-Xique e seus processos formativos
Como dito, a dança realizada pelo grupo Xique-Xique, desde a sua criação em 2000, toma por base os conhecimentos prévios de seus fundadores, Nilton Rodrigues e Antônio Carlos, em suas experiências escolares com a prática do coco de roda.
Tudo começou quando o padre da paróquia do bairro do Jacintinho, padre Manoel José, sugeriu que os acólitos, dentre eles Nilton e Antônio Carlos, criassem uma outra atividade para animar as festas juninas da paróquia, que já contava com a realização da quadrilha. Foi aí então que os dois amigos resolveram criar um grupo de coco para atender a essa demanda paroquial.
De início, participaram do grupo apenas os jovens vinculados à paróquia e as primeiras apresentações foram na festa junina desta. A estreia aconteceu no dia 13 de junho de 2000, após 13 dias de ensaios.
Contudo, o acesso às formas tradicionais de dançar o coco, tal como realizada pelos mestres guardiões da tradição, só virá a ocorrer em 2010, por meio da mediação do músico alagoano Jurandir Bozo.
Tendo sido discípulo de Mestre Verdilinho, um dos principais mestres da tradição do coco em Alagoas, Bozo, ao se deparar com as diferenças entre os cocos que vivenciou com os mestres e aquele apresentado pelos grupos juvenis, se dispôs a desenvolver oficinas direcionadas a esses grupos, oficinas estas ministradas por ele e pelo filho do mestre Verdilinho, Josenildo de Assis. O objetivo dessas oficinas era ensinar as formas de trupés tradicionais do coco alagoano e contextualizar historicamente a dança.
Apenas os integrantes do grupo Xique-Xique compareceram a essas aulas. Foi desse modo que no concurso de 2011 esse grupo levou para arena do concurso as formas tradicionais dos trupés, ganhando dos jurados, na primeira fase, a nota máxima. Esse fato levou os outros grupos a procurarem os filhos do mestre Verdilinho para aprender as variantes do trupé e, assim, poder entrar na disputa com o grupo Xique-Xique, fato que já ocorreu na segunda fase do concurso nesse mesmo ano. No ano seguinte, todos os grupos que se apresentaram no concurso já executaram os trupés tradicionais. Nesse processo foram resgatadas formas de dançar que já nem mesmo os mestres apresentavam, convalidando um verdadeiro processo de revitalização da tradição do coco alagoano. Além disso, do ponto de vista da produção sonora, foram reintroduzidos instrumentos tradicionalmente usados no coco alagoano como o ganzá e o pandeiro.
Será a partir dessa experiência educativa que os grupos juvenis de coco de roda passam a elaborar suas retóricas identitárias em torno do reconhecimento do trabalho por eles desenvolvido como continuidade da tradição do coco alagoano.
Nessas oficinas, Jurandir Bozo e Josenildo de Assis se ativeram a repassar não somente o repertório de passos, mas também a contextualizá-los na relação com os aspectos históricos e sócio-culturais constituintes dessa tradição dançante. Na condução dessa ação educativa, Bozo estabeleceu escolhas, modos intencionalmente postos de ensinar as formas tradicionais do coco no qual a abordagem lúdica fosse o foco, de modo que, em suas palavras, a aprendizagem fosse “divertida”.
Na consideração ao que viria a ser divertido, Bozo lançou mão do recurso da poesia cantada, como músico e compositor que é, para veicular as ideias e ideais que intentava compartilhar com o grupo. Refiro-me ao compromisso por ele assumido de trabalhar no sentido de manter a tradição do coco alagoano, vendo nessa juventude os agentes dessa continuidade. Manteve-se próximo, aberto e receptivo às mudanças propostas pelos jovens, na mesma medida em que defendia contundentemente a necessidade em se manter os elementos estruturais constitutivos do coco que considera imprescindíveis à manutenção da marca de sua identidade, ao que, segundo Giddens (1997), poderíamos apontar como a verdade formular dessa dança. Nesse caso foi o trupé, o principal elemento constituinte da verdade formular do coco alagoano, ao qual dedicou-se especial atenção nesse processo de ensino e aprendizagem, seguido da poesia cantada, esta usada como estratégia didática.
Em suas poesias cantadas, evidenciou a reverência à tradição tendo na pisada, no trupé, o meio de perpetuá-la. Apresentou a ideia de dançar por amor, tão presente na fala desses jovens. Colocou a alteração do tempo, da velocidade do movimento, um elemento de mudança em relação às formas tradicionais tomadas como referência, como condição para a permanência, como um modo dessa juventude reverenciar a tradição na medida em que busca reconfigurar novos sentidos à pratica do coco, colocando-se como parte dela. Uma verdadeira síntese das narrativas desses jovens para as quais as influências de Bozo não foram poucas.
Seu exemplo reverberou também de modo a fazer surgir compositores no Xique-Xique, criadores de novas músicas, juntamente aos cocos tradicionais, cujas letras remetem (na maioria das vezes) aos cotidianos vividos pelos velhos mestres. Inclusive, eles trouxeram para o repertório do grupo temáticas mais ligadas ao tempo presente desses jovens, a exemplo da música composta por Jonhatan Silva:
Eu quero um coco de primeira, eu quero coco de primeira, um improviso maneiro, prá ninguém marcar bobeira
Chega, chega minha gente, só não entra quem não quer, pode dançar mulé macho, também pode zé mulher
Toca o pandeiro menino, vamos fazer o trupé, aqui nessa tradição, quero ver você dançar
No pagode alagoano que é cultura popular, pois a força do meu corpo, nunca vai se acabar
Isso é coco alagoano, é melhor ficar ligado, se você não sabe a letra, não fique aí parado, bate na palma da mão, prá não perder o gingado
Agora meu cantador não vá cair na rasteira, no quarenta arrebatido que tá fazendo puera, vai metendo essa pisada pra animar a brincadeira
Aqui nessa tradição quero ver você dançar, no pagode alagoano que é cultura popular
É na cultura popular que eu faço o meu trupé, vem que o coco tá pegado, só não dança quem não quer (gravação de ensaio em dez. de 2016).
Observa-se, mediante os trechos propositadamente grifados, o quanto eles veiculam em seus versos a afirmação de um conhecimento adquirido, por intermédio do qual reconhecem o seu fazer do coco como legítimo, enquanto continuação de uma tradição local. O corpo e o trupé aparecem como elementos fundantes dessa legitimação identificada como cultura popular aberta a quem quiser participar, independentemente do pertencimento familiar a uma linhagem de mestres.
Notando-se, assim, a amplitude das reverberações do processo educativo desenvolvido por Jurandir Bozo, observa-se que ele, além de considerar as referências dos contextos originários dessa manifestação da cultura popular, procurando rechear o ambiente de aprendizado de ludicidade, também se mostra atento à precariedade presente na realidade social desses jovens e ao papel da dança do coco em suas vidas. Localiza, no sentido de identificação com essa manifestação da cultura de tradição popular, no fato de ele também ser um praticante e amante do coco o elo de ligação entre ele e os grupos juvenis de coco de roda, o que faz com que sua ação educativa tenha reverberado nesse meio e ele tenha se tornado um referencial.
Para aprofundar a percepção e o conhecimento da realidade social desses jovens praticantes de coco de roda em Maceió, Bozo expandiu sua ação para além das atividades pontuais nas oficinas, investindo na participação em ensaios, concursos de bairro, entre outros ambientes informais de convivência cotidiana.
Sua ação educativa se estendeu e se fez de forma mais contundente na sua convivência com o Xique-Xique durante o ano de 2011, quando integrou o elenco desse grupo para a apresentação no concurso alagoano desse mesmo ano. Esse fato operou impactos significativos nos processos identitários desses jovens na medida em que, a partir do acesso ao conhecimento advindo dessa convivência com Bozo, passaram a se reconhecer como continuadores de uma tradição cultural local. As reverberações dessa experiência educativa puderam ser observadas nos diálogos nos grupos de discussão realizados, pela força argumentativa daqueles integrantes do grupo que passaram por essa experiência, aos quais denominei de veteranos, e aqueles que não passaram, no caso, os novatos (aqueles que ingressaram no grupo a partir de 2012).
Analisando comparativamente os diálogos dos dois grupos de discussão realizados, cada um com seis jovens, vemos que nos veteranos observa-se o uso de argumentações fundamentadas no conhecimento adquirido para convalidarem a legitimação do grupo como continuadores de uma tradição. Já entre os novatos verifica-se uma fala limitada à reprodução de jargões veiculados pelo grupo em defesa da legitimação de sua prática. Jargões estes, por um lado, imbuídos em bradar a “paixão”, o sentimento genuíno de identificação pelo coco; por outro, apoiados nos discursos preservacionistas dos folcloristas. Há, nesse caso dos novatos, uma ausência de argumentações que se apoiem no conhecimento sobre a dança do coco, assim como sobre a trajetória do grupo.
De uma forma geral, os integrantes do Xique-Xique compactuam com o discurso dos folcloristas no sentido de atestarem seu comprometimento com a cultura do coco de roda, de “não a deixar morrer”, de, mesmo inovando, manter sempre sua “essência” – que para eles é o trupé –, comprometendo-se, desse modo, a “valorizá-la e mantê-la viva” graças a sua prática. Dançar por amor à cultura é o grande jargão que circula no discurso da totalidade do grupo. Os veteranos, assim como também Nilton Rodrigues, lançam mão de referências em torno do modo de operar dos mestres, argumentam a respeito dos processos de herança e repasse dos conhecimentos da tradição entre gerações como algo com que eles mantêm-se comprometidos. Um exercício retórico que integra as estratégias identitárias do grupo em meio aos processos de legitimação de sua prática.
6. O coco de roda alagoano e seus trânsitos entre permanência e rupturas
Revendo a trajetória histórica do coco alagoano, pode-se destacar dois momentos relevantes de suas “passagens” pela escola em Alagoas, primeiro por meio da atuação do Professor Pedro Teixeira, a partir de 1960; segundo pela ação na Escola Princesa Izabel, no Cepa, em 1998, o qual pode ser considerado como uma reverberação do primeiro.
A partir da análise dos dados coletados em entrevistas realizadas com alunos e alunas participes desses processos, pode-se destacar que, nos dois momentos acima mencionados, verifica-se que a presença do coco na escola esteve centrada no aspecto do fazer a dança enquanto configuração coreográfica, a despeito de uma série de outros elementos que constituíam a realização dessa dança em seus contextos originários. Quero dizer com isso que o foco do trabalho formativo desenvolvido esteve na formação de grupos de coco para a realização de apresentações. O aprendizado da dança encontrou-se centrado na apreensão de um repertório tradicional que, assimilado por via da imitação do modelo apresentado pelo professor e aperfeiçoado em ensaios, isto é, da repetição, levaria à formatação de uma apresentação da dança aprendida para ser demonstrada a um determinado público.
Afora isso, por vezes, era dado aos alunos acesso às referências históricas do coco, mas que não se articulavam ao fazer dessa dança na escola. Fundamentalmente, o que quero destacar aqui é que as referências sobre o conhecimento histórico do coco não eram levadas para a experiência da dança, para a elaboração de seus processos de ensino e aprendizagem. Por exemplo, os alunos poderiam receber a informação de que na realização da dança do coco – nas festas por ocasião de tapagens de casas de pau-a-pique – os dançarinos se desafiavam para ver quem conseguia ficar mais tempo sapateando ou que, nesse ambiente, eles inventavam novos modos de sapatear, novas células rítmicas a partir da improvisação sobre o ritmo básico do coco. Porém, essa experiência lúdica não era proposta aos alunos em meio ao processo de aprendizado do coco. O aprendizado da dança estava centrado na apreensão de um repertório tradicional que deveria ser assimilado por meio da imitação e da repetição, em um tempo previamente estipulado em função da realização de apresentações, muitas vezes já previstas no calendário escolar, como o dia do folclore ou a festa junina, por exemplo[6].
Esta abordagem da dança na escola, focada na realização de apresentações em que o foco no produto (coreografia) se sobrepõe ao processo de ensino e aprendizagem, não é privilégio das danças tradicionais e populares, mas da dança de modo geral. Como afirma Marques (2010) e Strazzacappa (2001), apesar da LDB nº 9394/96 e da publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) em 1997, que propõem a consideração da dança e demais linguagens artísticas como área de conhecimento cujo processo de ensino e aprendizagem deve considerar não apenas o aspecto do fazer, mas também do apreciar e contextualizar criticamente a dança em sua relação com a sociedade[7], a dança, quando presente na escola, ainda se encontra, na maioria das vezes, limitada ao âmbito do fazer. Restrita a produções e reproduções de repertórios pré-existentes, a serviço da realização de apresentações para enfeitar eventos e festas em datas pontuais do calendário escolar. No caso das danças populares ou folclóricas, enfatizam-se as apresentações no mês do folclore e nas festas juninas.
É desse modo de relação com a dança do coco, tal como vivenciada na escola, limitado ao aprendizado de um modelo coreográfico, previamente elaborado por um professor em referência ao modelo da tradição, que são herdeiros os jovens que hoje a praticam nos bairros periféricos de Maceió. Ao se desvincularem da escola e assumirem o protagonismo da realização da dança do coco como grupos independentes, esses jovens levam consigo esse referencial no modo de relação com o fazer do coco, isto é, montar coreografias, ensaiar e apresentar. Quando os jovens da escola Princesa Izabel quiseram dar continuidade à experiência pontual com o coco, proposta pela Professora de Arte, o que mais poderiam desejar se não ensaiar e realizar apresentações, se foi essa a relação que eles estabeleceram com essa dança no processo vivido na escola? Ainda assim, expandiram suas ações, protagonizaram não só a criação de grupo de apresentação, mas também a abertura de outros espaços de atuação e da configuração de outros sentidos à pratica da dança para além da participação nas festas juninas escolares. Fomentaram a relação entre estudantes de diferentes escolas que compunham um mesmo complexo educacional, retomando, de algum modo e em certa medida, a característica relacional da arte/dança de tradição popular (LAGROU, 2013) e buscaram alternativas para gerar a adesão cada vez maior de jovens à dança do coco, propondo novos sentidos sobre o fazer dessa dança através da criação dos concursos entre grupos de coco.
A criação dos concursos de grupos de coco de roda, assim como as formas apresentadas pelos grupos juvenis é contestada por folcloristas alagoanos que atribuem à competitividade fator de grandes transformações no coco alagoano, desfavorecendo a continuidade dessa tradição. Para alguns desses folcloristas entrevistados, o que esses jovens apresentam atualmente nem deveria ser considerado coco, como pode ser visto na fala transcrita a seguir:
Eu acho terrível! Se quer fazer transformações, faça, mas não diga que é coco! Tem que botar outro nome. Veio do coco mas é outra coisa. – Aquela dança veio do coco mas tem que botar outro nome e não empurrar que aquilo é coco. É como o caso da quadrilha... quer acabar com uma dança, crie um concurso, porque as invenções vêm da vontade de ganhar o prêmio. No folclore não existe o melhor (em entrevista concedida à autora em 29 de fevereiro de 2016).
Diante disso, questionamos se não seriam os concursos, em sua natureza desafiadora à constante inventividade, também um meio de resgatar sentidos que integraram os contextos originários de ocorrência dessa dança tradicional recontextualizando-os? Poderiam assim ser encarados? A reflexão a ser considerada neste momento é que, quando os folcloristas alagoanos acusam esses jovens de macularem a tradição do coco alagoano e apontam os concursos como a principal causa dessa mácula, toda a trajetória de relação da instituição escolar com essa dança, que precedeu a existência desses grupos juvenis e de onde eles emergiram e herdaram muitas de suas referências, é esquecida. Nenhuma vinculação é estabeleci
Considerações finais
Na realidade atual do coco alagoano, vemos que é no contexto das apresentações que se dá sua existência, seja por parte dos grupos geridos por mestres da tradição, seja pelos grupos de jovens. Para esse último conjunto, ressalta-se a especificidade da intenção competitiva das apresentações em decorrência da participação em concursos de grupos de coco. Enquanto observa-se um movimento de decaída dos grupos geridos por mestres da tradição nos últimos anos, na medida em que estes falecem, estes grupos juvenis, impulsionados pelos concursos, cada vez ganham mais adeptos, tanto daqueles que dançam quanto da comunidade que frequenta as arenas dos concursos, torcendo fervorosamente pelos grupos de seu bairro. Diante dessa realidade, a quem caberia prover a continuidade dessa tradição se não a esses jovens?
Estariam os folcloristas e a Asfopal, por intermédio dessa negativa à legitimação desses grupos juvenis, realizando seu objetivo institucional de preservar e manter essa tradição popular? Não caberia ao escopo desse artigo discutir a atuação dessa instituição, o que nos interessa aqui é destacar a necessidade de considerarmos as relações de sentido implicadas na prática de uma dada dança tradicional – neste caso, o coco de roda alagoano – quando pensamos nos processos de manutenção da tradição. Se os sentidos de fazer a dança mudam, a dança também mudará, sejam suas configurações estéticas, sejam seus contextos de realização ou os modos de agenciar seus processos de transmissão entre gerações.
É fato que a manutenção da tradição depende da passagem do conhecimento de uma geração a outra. Do mesmo modo, as formas como se agenciam esses processos de transmissão estão imbrincados às dinâmicas culturais próprias de cada tempo e lugar. Nesse sentido, está sujeita a tradição ao constante jogo entre permanência e ruptura como condição de sua existência.
A natureza informal do processo de repasse dos conhecimentos da tradição popular, tal como se dava com o coco alagoano em meio às festas de tapagens de casa de pau-a-pique, esteve presente no ideário dos folcloristas como um dos aspectos identificadores do fato folclórico – a aprendizagem que se dá de pessoa à pessoa por tradição oral, na convivência cotidiana, em ambientes lúdicos e festivos (BRANDÃO, 1983).
O modo de operar do sistema de repasse de conhecimento da tradição popular, tal como convalidado pelos folcloristas, prescinde de um modus vivendis condizente com um tempo-espaço não mais possível de ser operado na ordem cosmopolita contemporânea em que se encontram inseridos os grupos juvenis de coco de roda em atividade em Maceió, e mesmo os mestres da tradição, até bem pouco tempo atuantes nesta capital. Nesse sentido, o folclorista e professor alagoano Pedro Teixeira de Vasconcelos procurou agenciar novos modos de operar a transmissão dos conhecimentos da tradição entre gerações, inserindo a instituição escolar como mediadora nesse processo. Do mesmo modo, o músico alagoano Jurandir Bozo, investiu na mediação entre os conhecimentos dos mestres da tradição e os grupos juvenis de coco de roda agenciando a realização de oficinas e da participação ativa como integrante do grupo Xique-Xique.
À revelia dos julgamentos dos folcloristas alagoanos, os grupos juvenis de coco de roda, a exemplo do grupo Xique-Xique, seguem em sua prática da dança do coco elaborando estratégias de vinculação à tradição e, por meio disso, de legitimação de sua prática. Entendendo a tradição como potência de inventividade, encontram no desafio entre preservar os elementos identificadores dessa tradição dançante e ao mesmo tempo inovar, a grande motivação para manterem-se nessa prática. É a partir dessa ação desafiadora que o Xique-Xique se lança na elaboração de seu espetáculo anual. O processo de montagem desse espetáculo é vivido pelo grupo no decorrer de praticamente um ano, imbricado aos seus cotidianos, numa ação que envolve não só os integrantes do grupo, mas também a comunidade em que está inserido, tendo como ápice a apresentação na arena do concurso estadual realizado no período dos festejos juninos.
É nessa conexão com a experiência da vida cotidiana que “a seiva da tradição se mantém” e, nesse sentido, os modos como se dão os processos de herança entre gerações perdem a relevância. Mais importam as trocas culturais implicadas nesses novos processos de transmissões da tradição, emergentes nas sociedades contemporâneas que insistem em mantê-las na busca por encontrar modos de dar forma à vida social. Nessas novas dinâmicas culturais em prol da sobrevivência da tradição, procede-se um constante jogo entre cosmopolitismo e fundamentalismo, gerador de interferências na configuração das identidades desses sujeitos (GIDDENS, 2003, p.54).
Diante do exposto, depreende-se que cada tempo-espaço implica dinâmicas culturais próprias capazes de prover processos de transmissão da tradição na medida em que ela mantém-se conectada com a experiência da vida cotidiana.
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Autora: Telma Cesar Cavalcanti