O Ensino Médio têm sido amplamente discutido e questionado nos últimos anos. Ponto nodal de uma histórica disputa entre projetos formativos dicotômicos, essa etapa da Educação Básica expressa de forma nítida a dualidade que marca os processos educacionais, reproduzindo elementos da configuração social capitalista: a apropriação privada do capital, a divisão de classes, a exploração do trabalho para a produção de mais valia.
Essas determinações conduzem a uma desigualdade curricular e formativa que se expressa em torno de um currículo propedêutico, voltado para a preparação para o prosseguimento dos estudos, destinado as classes sociais abastadas, e um currículo instrumental, que privilegia a formação para o trabalho, direcionado às classes subalternas (Kuenzer, 2007).
Como resultado do movimento histórico e dialético da totalidade social, a forma escolar moderna emergiu no processo de desenvolvimento das relações sociais capitalistas e suas contradições intrínsecas. As tensões entre a forma curricular hegemônica e as propostas progressistas se materializam nas práticas pedagógicas, configurando elementos de retrocessos e avanços.
Snyders afirma que “a escola é um local de luta, o teatro em que se defrontam forças contraditórias – e isto porque já faz parte da essência do capitalismo ser contraditório, agir contra ele próprio, criar seus próprios coveiros (1981, p. 105).” Enquanto espaço social permeado pela luta de classes, o currículo escolar expressa disputas no sentido da construção de uma perspectiva educacional contra-hegemônica.
Partindo da compreensão do espaço escolar como elemento de reprodução e também de progresso, este artigo aborda o campo das políticas educacionais e curriculares, apresentando uma análise sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas no âmbito do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional.
Estabelece contrapontos entre as práticas curriculares e as categorias que permeiam as políticas e reformas educacionais desenvolvidas ao longo do segundo decênio do século XXI, buscando identificar avanços e recuos no sentido de uma perspectiva educacional contra-hegemônica.
Estrutura-se metodologicamente a partir da análise documental e de levantamento bibliográfico, abordando autores do campo educacional e da ciência política. Parte de uma discussão teórica a respeito do conceito de Estado e de hegemonia em Gramsci (2001; 2007; 2011), posteriormente, aborda as categorias que emergem no processo de reestruturação produtiva do capital no contexto recente de crise, propaladas pelos Organismos Internacionais e agregadas às reformas educacionais desenvolvidas no período analisado.
Retoma elementos históricos e legais que caracterizam o Ensino Médio Integrado à Educação Profissional no país e aspectos que emergem a partir da Reforma do Ensino Médio, proposta pela Lei no 13.415/2017. Em um terceiro movimento, descreve e analisa os elementos e disputas que emergem nas práticas pedagógicas e curriculares adotadas em uma experiência inovadora de integração curricular desenvolvida no Campus Jacarezinhoi do Instituto Federal do Paraná, destacando as divergências e convergências com os discursos e categorias que emergem nas políticas recentes.
Estado, hegemonia e as políticas educacionais
A compreensão do processo de reestruturação do sistema de produção e das disputas de classes e frações de classes no interior do Estado, é fundamental para o debate acerca das políticas educacionais e curriculares, pois tais mudanças refletem em todos os âmbitos da sociabilidade, sobretudo, no campo da educação e do trabalho.
Gramsci (2011) contribui para pensar o Estado assumindo uma perspectiva de Estado ampliado, constituído, na superestrutura, pela sociedade política - ou Estado em sentido estrito - e pela sociedade civil. À sociedade política cabe o exercício do comando por meio do governo jurídico ou da coerção por deter o monopólio legal da violência.
A sociedade civil é constituída pelos Aparelhos Privados de Hegemonia (APH), organizações como as escolas, igrejas, partidos políticos, mídia, etc., que contribuem para a elaboração e a divulgação ideológica de valores e hábitos da classe dominante, com o objetivo de obter o consentimento e o consenso político-ideológico, exercendo a hegemonia sobre o conjunto da sociedade. (Rummert, 2007).
Enquanto a sociedade civil incide predominantemente no plano da dominação ideológica e direção intelectual e moral da sociedade, por meio da produção e reprodução dos valores sociais burgueses, na sociedade política atuam os elementos burocráticos e de coerção.
Gramsci (2011) destaca que ambas as instâncias mantêm entre si uma independência relativa, mas atuam de forma imbricada e colaborativa no seio da superestrutura, constituindo o bloco histórico dominante por meio da direção hegemônica, sobretudo, da ideologia, das formas de conceber e conduzir o mundo. Nesse devir, contribuem dialeticamente com a produção e reprodução dos elementos da infraestrutura e da superestrutura.
O autor aborda a importância a função dos intelectuais orgânicos e do partido como intelectual coletivo na produção da hegemonia. “O intelectual orgânico além de especialista, é dirigente da classe que representa. Ele tem uma inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor permanente’”. (Gramsci, 2001, p. 53).
Polulantzas (2000) destaca o papel fundamental do Estado na configuração das sociedades modernas, compreendendo-o como processo, marcado no âmbito da sociedade política e sociedade civil, pela correlação de forças decorrente da luta de classes e frações de classes.
De acordo com Poulantzas, “o Estado, sua política, suas formas, suas estruturas, traduzem, portanto, os interesses da classe dominante não de modo mecânico, mas através de uma relação de forças que faz dele uma expressão condensada da luta de classes em desenvolvimento.” (2000, p.132).
As transformações, conflitos e movimentações das frações da burguesia e de seus Aparelhos Privados de Hegemonia modificam o tecido social, sobretudo o mundo do trabalho e a educação, assumindo diferentes funções na construção do consenso social, atuando como intelectuais orgânicos coletivos.
O Estado Moderno e seus aparelhos privados de hegemonia podem ser compreendidos como fenômenos concretos inseridos no movimento dialético da totalidade social, configurando a hegemonia dominante.
Desse modo, as instituições da sociedade civil assumem um papel fundamental na produção e reprodução da hegemonia da classe dominante, na construção de consensos, assegurando e direcionando a política do Estado, as políticas públicas e as políticas educacionais.
Partindo do pressuposto de que a escola é terreno de disputa pela hegemonia e de que o Estado ampliado desempenha um papel fundamental na criação e manutenção das relações de produção e na luta entre as classes sociais e suas frações, Gramsci (2007) destaca o caráter educador do Estado, na medida em que este produz e reproduz a visão, os interesses e os valores da classe burguesa e suas frações como sendo de interesse geral da sociedade.
A necessidade da classe trabalhadora de superar a dominação e hegemonia burguesa por meio do desenvolvimento de um bloco intelectual-moral que lhe permita emergir como classe dirigente, consubstanciando uma outra forma de sociabilidade, implica no desenvolvimento de uma contra-hegemonia, que também envolve o consenso, a persuasão, a intenção de direção, opondo-se à classe fundamentalmente hegemônica.
Nesse sentido, a elevação intelectual das massas como pressuposto para a criação de uma nova consciência e sociedade, é fulcral para a construção da hegemonia das classes subalternas. Para Gramsci, o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classe que lhe permita mobilizar os trabalhadores contra o capitalismo e o Estado burguês. Para tanto, faz-se necessário
forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais [...] um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos. (Gramsci, 2001, p. 103).
A escola, enquanto aparelho privado de hegemonia da classe burguesa reproduz valores e conhecimentos, assumindo um papel na formação técnica e subjetiva dos trabalhadores, reproduzindo a divisão de classes na preparação para os diferentes postos de trabalho na hierarquia produtiva.
Para além da mera submissão às determinações capitalistas, a escola também apresenta um importante papel na disputa pela hegemonia. Gramsci (1991) defende a necessidade de desenvolver uma escola única, humanista e de cultura geral, capaz de formar, pelo princípio do trabalho e da cultura, todos os sujeitos para o trabalho e para a direção da vida.
A escola, mediante o que ensina, luta contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma concepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dados pela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde, às quais é preciso adaptar-se para dominá-las, bem como de leis civis e estatais que são produtos de uma atividade humana estabelecida pelo homem e podem ser por ele modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo. (Gramsci, 1991, p. 130).
Assim, compreende-se a escola enquanto aparelho de hegemonia inserido no tecido social, que se manifesta como espaço de tensões latentes, um lócus de imposição de valores, concepções e legitimação da dominação, carregando a potencialidade de se configurar como espaço de resistência diante das contradições inerentes à sociedade capitalista, possibilitando a construção de processos contra-hegemônicos.
O Ensino Médio e a formação profissional: expressão histórica da dualidade educacional
Harvey (2016) destaca que o processo de reestruturação produtiva desencadeado a partir da crise da década de 1970 incidiu em todas as dimensões da vida social, conduzindo a transformação do papel do Estado e ao redirecionamento das políticas sociais. A emergência do regime de acumulação toyotistaii, associado à aplicação intensiva da ciência e da tecnologia nos processos produtivos e à instituição de uma nova sociabilidade, inserida por meio das políticas neoliberaisiii, conduziu a uma reorganização das forças produtivas e da superestrutura.
Com a retração do Estado em suas funções sociais, decorrentes da implementação do ideário neoliberal ampliaram-se as organizações da sociedade civil ligadas a interesses empresariais. Assumindo seu papel como aparelhos privados de hegemonia, os Organismos Internacionais, como o Banco Mundial (BM), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), atuaram na definição de políticas e diretrizes globais (Leher, 1999). Essas agências tiveram importante papel na organização das relações capitalistas, produzindo determinações que influenciaram os processos de elaboração das políticas econômicas e sociais, atuando, sobretudo, nos países periféricos.
A reestruturação produtiva impôs a necessidade de um novo perfil de trabalhador, com capacidade de adaptar-se às novas situações de produção, no âmbito da dimensão técnico-operacional e no âmbito subjetivo. Nesse contexto, as Organizações Internacionais pautaram seus discursos na retórica da Sociedade do Conhecimento, dando ênfase à educação como principal elemento para o desenvolvimento econômico e produtivo social e individual, retomando aspectos da Teoria do Capital Humanoiv.
Na década de 1990, o Brasil implementou a reforma do Estado, adotando os preceitos neoliberais firmados no Consenso de Washington. Como consequência, as políticas sociais foram amplamente privatizadas, por meio de políticas de descentralização, fragmentação e focalização, cabendo ao Estado um papel de intervenção e gerência.
Nesse contexto, a reforma educacional implantada a partir da década de 1990 emergiu como fruto de um processo histórico de disputas hegemônicas, empreendidas no âmbito da sociedade brasileira, envolvendo o Estado, sociedade civil, entidades de profissionais da educação, pesquisadores, Organizações não Governamentais e entidades do movimento popular e sindical (Manfredi, 2002).
A reforma incorporou o discursos dos Organismos Internacionais e de publicações como o Relatório Jacques Delors (Delors, 1998), que define os quatro pilares para a formação do século XXI: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a Enfatizou a ampliação da oferta de educação básica, de caráter geral, focada na formação de competências e habilidades necessárias à adaptação do sujeito ao mundo do trabalho flexível e polivalente.
Com a aprovação da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional em 1996 (Lei nº 9.697/1996), o Ensino Médio passou a apresentar uma única trajetória, articulando conhecimentos e competências para a cidadania e para o trabalho, assumindo uma perspectiva de formação geral, pautada no processo de reestruturação produtiva que requeria um sujeito flexível e polivalente. (Brasil, 1996). O dispositivo também reconceituou a formação técnico-profissional como educação continuada e definiu apenas dois níveis de ensino: a Educação Básica (formada pela educação infantil, pelo ensino fundamental e pelo ensino médio) e a Superior.
Em 1997 foi aprovado o Decreto Federal nº 2.208/1997 (Brasil, 1997) que estabeleceu que a educação profissional de nível técnico teria organização curricular própria e independente do Ensino Médio, podendo ser oferecida de forma concomitante ou sequencial. Neste formato, a Educação Profissional ficou totalmente separada da formação geral, impossibilitando uma perspectiva de integração entre o Ensino Médio e a Educação Profissional.
Contrapondo-se as perspectivas contra-hegemônicas, que defendiam uma proposta de escola unitária, com base nos fundamentos técnicos, científicos e culturais, a reforma da década de 1990 propôs uma educação de caráter pragmático e instrumental para os trabalhadores. Dentre as categorias centrais que permeavam as políticas educacionais para o Ensino Médio e para a Educação Profissional convergiam a formação por competências e habilidades, além da instrumentalização das classes trabalhadoras para o trabalho simples, adequando os processos formativos às demandas produtivas (Neves e Pronko, 2008).
Nos anos 2000, a emergência de um partido político de esquerda ao poder, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, deu fôlego ao campo progressista no que se refere às disputas pela construção de propostas contra-hegemônicas, especialmente no campo educacionalv.
Em termos educacionais, ocorreram reivindicações em torno da revogação do Decreto nº 2.208/1997 por parte dos setores progressistas da sociedade, que defendiam um projeto de integração da formação profissional com o Ensino Médio, pautado no trabalho como princípio educativo, indissociável da formação básica e independente de classe social.
A disputa pela hegemonia em torno do projeto educativo do Ensino Médio culminou na aprovação do Decreto nº 5.154/2004 (Brasil, 2004), que retomou a possibilidade de oferta do Ensino Médio integrado à Educação Profissional, mantendo, paralelamente, as possibilidades de oferta da formação técnica na forma subsequente e concomitante ao Ensino Médio, permitindo a continuidade da desvinculação da formação profissional da Educação Básica.
Somente em 2008 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional incorporou as alterações propostas pelo Decreto e a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e para a Educação Profissional e Técnica se arrastou até 2011 e 2012, respectivamente (Brasil, 2011; Brasil, 2012).
Esses documentos foram permeados por um hibridismo de concepções curriculares. Apesar da convergência em torno de uma proposta educacional politécnicavi e progressista, com base na integração curricular em torno do eixo ciência, cultura, trabalho e tecnologia, e com fundamento no princípio educativo do trabalho, contraditoriamente, os interesses empresariais, direcionados para uma formação instrumental submissa ao atendimento das dinâmicas produtivas, permaneceram nas propostas educacionais, expressas por categorias como diversidade, flexibilização, formação de habilidades técnicas, dentre outras.
As políticas educacionais permaneceram sob forte influência dos Organismos Internacionais. A ampliação do acesso ao ensino secundário, a qualidade e os resultados da aprendizagem também se tornaram recorrentes nos documentos das agências, visando instituir sistemas comuns de aprendizagem, passíveis de serem avaliados e acompanhados.
Importante elemento de avanço na oferta do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional implementada nos mandatos de Lula com continuidade nos de Dilma Rousseff foi a criação dos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia por meio da criação da Rede Federal de Educação Científica e Tecnológica, pela Lei nº 11.892/2008 (Brasil, 2008). A expansão da rede federal de educação profissional e tecnológica, ampliou o número de instituições federais e o acesso aos cursos de educação profissional técnica e tecnológica em todo o país, buscando atender demandas de formação por meio da interiorização dessas instituições.
Enfatiza-se, entretanto, que a proposição de integração entre formação geral e formação para o trabalho no âmbito legal e prescritivo das políticas educacionais não garante a imediata transposição no âmbito da materialidade concreta, em que as práticas formativas efetivamente acontecem, expressando as disputas internas que atravessam as determinações sociais, políticas e econômicas.
A totalidade é marcada por embates e contradições que emergem diante de projetos de sociedade e classes antagônicos. No campo da disputa de interesses contrários, tende-se a conservar a hegemonia da classe dominante, utilizando da educação enquanto instrumento ideológico de consenso e adequação dos trabalhadores às necessidades sociometabólicas do capital.
Apesar dos entraves, a possibilidade de integração entre o Ensino Médio e a Educação Profissional abriu margem para o desenvolvimento de práticas educativas progressistas, com foco no trabalho como princípio educativo e tendo como horizonte uma perspectiva educacional emancipadora para a classe trabalhadora.
Todavia, em 2016, um novo bloco histórico dominante emergiu no Estado, por meio de um turbulento golpe civil, parlamentar, judiciário e midiático que culminou ao impeachment de Dilma Rousseff, resultando em uma ofensiva restauradora da fração da grande burguesia integrada ao capital internacional.
Lamosa (2020) ressalta que o novo bloco no poder associa uma frente ultraliberal e conservadora, exercendo a direção hegemônica com base na ideologia pautada em categorias como empregabilidade, engajamento, educação ao longo da vida, aprender a aprender, transferindo aos sujeitos a responsabilidade pelas condições materiais que se agravam na crise estrutural do capital com a implementação de contrarreformas no âmbito trabalhista, previdenciário, administrativo, social e econômico.
Nessa conjuntura, as disputas em torno do projeto formativo do Ensino Médio foram acirradas e operou-se uma reforma conduzida de forma vertical pelo governo com participação e direção de grupos e movimentos da Sociedade Civil ligados ao empresariado.
A contrarreforma do Ensino Médio, aprovada pela Lei nº 13.415/2017 propôs mudanças no âmbito pedagógico e curricular para adequar essa etapa de ensino às necessidades produtivas que emergiam do agravamento da crise global de 2008, marcada pela queda na taxa de acumulação, ampliação do desemprego estrutural e precarização das condições de trabalho.
Prevê a ampliação da jornada escolar para o Ensino Médio e o aumento gradual da carga horária de 800 para 1.000 horas por ano letivo. Das 3.000 horas totais do Ensino Médio, 1.800 horas são destinadas aos componentes da Base Nacional Curricular Comum e as outras 1.200 horas são flexibilizadas, compondo os conteúdos e as práticas pedagógicas previstas nos itinerários formativos, que deverão ser escolhidos pelos estudantes, de acordo com as possibilidades de oferta do sistema de ensino, dentre os seguintes eixos: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da natureza e suas tecnologias; Ciências humanas e sociais aplicadas e Formação Técnica e Profissional (Brasil, 2017). As únicas disciplinas obrigatórias nos três anos da etapa são a Língua Portuguesa, a Matemática e o Inglês, expressando um compromisso imediato com a melhora do desempenho dos estudantes nos índices de avaliações nacionais e internacionais, que, de acordo com Gonçalves (2017), atrela ao currículo um cunho instrumental, voltado para a aquisição de competências e habilidades adequadas às demandas produtivas.
A reforma insere o itinerário da formação técnica e profissional na Educação Básica, flexibilizando e diversificando as possibilidades de oferta e certificação em cursos modulares, por meio do reconhecimento de saberes, dentre outras possibilidades. Ademais, a oferta do itinerário formativo técnico e profissional possibilita ao poder público recorrer a instituições privadas para oferecer as opções formativas, intensificando as parcerias com o empresariado e a canalização de recursos do fundo educacional para este setor.
Lamosa (2020) ressalta que a presença mais intensa do setor empresarial na Reforma do Ensino Médio, representados por grupos e organizações como o Movimento Todos Pela Educação, Instituto Unibanco e outros, ligados ao capital financeiro, demonstram um reestabelecimento da direção hegemônica com base em intelectuais orgânicos que retomam e aprofundam as propostas e categorias materializadas na década de 1990, adequando o Ensino Médio ao mercado e atendimento às prescrições de Organismos Internacionais.
Nesse sentido, conceitos presentes nos documentos do Banco Mundial e da UNESCO, especialmente aqueles elaborados após a crise de 2008, enfatizando a crise da aprendizagem, a necessidade de reformas curriculares com base na formação de competências para adequar os projetos formativos à Sociedade do Conhecimento e o cortejo à formação de competências técnicas e socioemocionaisvii, permeiam os documentos que estruturam a proposta do Novo Ensino Médio.
Nesse contexto, os sistemas de ensino e governos, em parceria com setor privado e sociedade civil, devem possibilitar oportunidades de formação, estruturando sistemas de aprendizagem com base em currículos com foco em avaliações e resultados, sintonizados com as demandas do setor produtivo, que se transforma continuamente diante do avanço das TICs, permitindo a formação de sujeitos empregáveis para uma sociedade marcada pelo desemprego, a informalidade e a precariedade das relações de trabalho (Antunes, 2020).
O projeto de formação proposto para os países periféricos pauta-se em uma perspectiva adaptativa, que responsabiliza os sujeitos individuais pela superação das mazelas e contradições sociais que se multiplicam no contexto econômico e social (desemprego, fome, violência, exclusão).
Neste sentido, a Reforma fundamenta-se em um projeto formativo regressivo, voltado para a adequação ideológica e técnica da força de trabalho, cada vez mais ajustada às demandas produtivas ultraneoliberais. Caracteriza-se por uma perspectiva produtivista, assumindo os princípios da concorrência, da meritocracia e do individualismo. A partir dessas categorias, inculca na população jovem a ideia de que a individualidade, de criatividade, do projeto de vida pessoal, exigindo do trabalhador capacidades de resiliência, adaptabilidade, empatia, cooperação e um conjunto de competências socioemocionais para abster o Estado de lidar com a crise estrutural do trabalho assalariado. (Lamosa, 2020).
Destaca-se a dificuldade na manutenção da modalidade integrada ao Ensino Médio, diante da ausência de uma proposta formativa coesa e coerente em torno dessa perspectiva, sobretudo com o avanço da implantação do Novo Ensino Médio. A integração nos moldes do Decreto no 5.154/2004 tem sido confrontada por discursos que ressaltam o custo mais elevado para a formação de estudantes nesta modalidade, especialmente no âmbito dos Institutos Federais, que ainda possuem autonomia didático administrativa para manter esse formato.
Integração curricular no Ensino Médio integrado do Instituto Federal do Paraná: avanço ou retrocesso?
A perspectiva de integração entre o Ensino Médio e a formação profissional tem continuidade nas instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, com base em dispositivos legais como o Decreto no 5.154/2004 e da Lei no 11.892/2008, possibilitando a compreensão das dinâmicas de transformação e realinhamento da educação profissional aos atuais processos de reforma educacional.
A criação dos Institutos Federais e a formulação de sua base legal ocorreu em um contexto de ampliação do financiamento para a oferta da educação profissional, ancorado pelo arcabouço teórico/conceitual com base nas teorias progressistas. A efetivação desses preceitos na materialidade concreta é, entretanto, permeada por múltiplos desafios, dentre eles, a falta de estrutura física para o desenvolvimento adequado dos cursos, a falta de formação continuada dos docentes, a ausência de um projeto coletivo assumido em torno dos princípios que consubstanciam a educação profissional de base politécnica, a gestão verticalizada, para não mencionar outros problemas que emergem no contexto institucional.
Buscando analisar os fenômenos educacionais contemporâneos com base na materialidade concreta, aborda-se a proposta de integração curricular desenvolvida desde 2015 no Campus Jacarezinho do Instituto Federal do Paraná, indentificando o modo como as categorias progressistas e burguesas, discutidas a partir da análise das reformas educacionais desenvolvidas ao longo das últimas décadas, são incorporadas nas práticas curriculares, promovendo avanços e recuos na construção de uma contra-hegemonia educacional.
A opção pelo locus de pesquisa se deve ao reconhecimento nacional e internacional da experiência de integração curricular desenvolvida pela instituição, conforme relatam os atores envolvidos no processo de elaboração e execução da propostaviii.
Apesar das convergências com elementos que figuram no Novo Ensino Médio e de a proposta ser apresentada como um modelo de currículo inovador no Documento “Guia para a implementação do Novo Ensino Médio” (Brasil, 2018a), Fiorucci e Corrêa (2018) elaboram críticas à proposta do Novo Ensino Médio, argumentando que a experiência em curso no IFPR difere substancialmente da mesma.
Ao inserir-se no âmbito de uma institucionalidade mais ampla, o Campus Jacarezinho submete-se às normas e orientações do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e à legislação nacional. O Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) do IFPR indica os fundamentos ontológicos e epistemológicos que orientam a instituição, assim como a base legal que determina a oferta dos cursos, ressaltando a Lei nº. 11.892/2008 e a Resolução CNE/CEB nº. 06/2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
Em termos pedagógicos, o documento apropria-se de elementos progressistas, atrelando o planejamento institucional para o desenvolvimento de práticas pedagógicas e curriculares às categorias: trabalho como princípio educativo, integração entre formação técnica e propedêutica, articulação entre ciência, trabalho, cultura e tecnologia. Também fundamenta-se em pedagogias de caráter contra-hegemônicas como a Pedagogia do Trabalho e a Pedagogia Histórico-Crítica, dentre outros (IFPR, 2018).
Todavia, o PDI também fundamenta-se em elementos que indicam racionalidade, eficiência e eficácia na utilização dos recursos e foco em resultados, demonstrando que a missão e os objetivos da instituição estão subsumidos a uma perspectiva educacional economicista, ambígua e contraditória ao que se expõe em termos didático-pedagógicos e curriculares.
Ademais, adota o empreendedorismo como elemento fundamental no desenvolvimento das propostas de formação dos trabalhadores, aderindo à retórica dos Organismos Internacionais e das políticas educacionais delineadas para o Ensino Médio e para a Formação Profissional a partir da década de 1990.
Esse hibridismo reafirma a ambiguidade das políticas e revelam a predominância da hegemonia burguesa. Nessa perspectiva, Kuenzer (2006, p. 881) destaca que “[…] no modo de produção capitalista, todas as formas de inclusão são sempre subordinadas, concedidas, porque atendem as demandas do processo de acumulação”.
Nesse devir, categorias como trabalho enquanto princípio educativo, Ensino Médio Integrado, formação omnilateral e formação politécnica esmaecem diante de processos formativos utilitaristas e demagógicos para a inserção dos trabalhadores nas cadeias produtivas.
A proposta de integração curricular implementada no Campus Jacarezinho do IFPR teve início em 2015 e buscou romper com a organização disciplinar vigente na instituição. Silva (2019) destaca que, dentre os princípios balizadores do novo currículo estão: a organização da matriz curricular em Unidades Curricularesix de caráter inter e transdisciplinar; a autonomia e protagonismo dos estudantes na elaboração do seu itinerário formativo, a partir da escolha das Unidades Curriculares correspondentes às diversas Áreas do Conhecimento do Núcleo Básico (Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Linguagens e Códigos) e do Núcleo Técnicox; o rompimento com a organização seriada e segmentada e a integração entre diferentes cursos e faixas etárias na composição discente de cada unidade curricularxi; a flexibilização dos tempos e espaços de aprendizagem, por meio do protagonismo dos estudantes em definir os conteúdos e horários de estudo conforme suas demandas individuais; o incentivo à inovação, criatividade e pluralidade de práticas pedagógicas.
Evidencia-se que a experiência de integração curricular do Campus Jacarezinho sustenta-se no tripé: flexibilidade; protagonismo e autonomia. De acordo com Silva (2019), no momento da matrícula, a instituição disponibiliza uma “Bússolaxii” aos estudantes. Esse documento contém todas as Unidades Curriculares que serão ofertadas no semestre, seus planos de ensino suas respectivas descrições (ementa, conteúdo programático, forma de avaliação, metodologia, horário de oferta e nível de complexidade).
Para a formulação de sua jornada formativa, os estudantes são questionados a respeito de seus objetivos de vida, em diálogo com servidores e familiares. Nesse processo, surge a figura do tutor, como servidor que medeia e acompanha o processo de definição e o desempenho do estudante ao longo do itinerário formativo escolhido, fazendo ajustes de acordo com as necessidades, sempre em diálogo com a família e o estudante.
De acordo com o Projeto Pedagógico Curricular do Curso Técnico em Alimentos,
A figura do tutor é inspirada no modelo do coaching acadêmico adaptada à realidade do campus. Esse ator é responsável pela orientação de um grupo de estudantes com o objetivo de auxiliá-los em sua jornada acadêmica, problematizando as escolhas dos discentes e as implicações destas, de modo que possam consciente e criticamente optar pelas unidades curriculares que lhe instrumentalizem de modo mais eficaz para o exercício profissional pretendido e o prosseguimento de seus estudos. (IFPR, 2020, p. 34).
Silva (2018) destaca o princípio da pluralidade conceitual e metodológica que permite ao corpo docente definir com total liberdade o caminho metodológico a ser seguido na estrutura curricular proposta. Na concepção do pesquisador,
O direcionamento, para apenas um viés metodológico, é algo, extremamente, complicado de se aplicar em um espaço público, no qual os ingressantes são oriundos de instituições cujas bases filosófico epistemológicas não são, necessariamente, as mesmas (às vezes até antagônicas) propostas pelo projeto pedagógico, ainda mais, em tempos, cuja identidade pós-moderna é “descentrada, múltipla e fragmentada” (Silva, 2018, p. 410).
Para a construção das Unidades Curriculares, o planejamento pedagógico se dá de forma coletiva entre os professores da mesma área ou entre as áreas diferentes. De acordo com Silva, “independentemente de como as unidades curriculares são construídas, elas são, metaforicamente, uma trilha (um assunto ou um tema específico) que representa um conjunto de caminhos (uma área), em uma relação recíproca que remete à concepção de holograma”. (Silva, 2018, p. 412).
Ainda de acordo com Silva (2018; 2019), a proposta curricular pauta-se em uma perspectiva teórica e epistemológica com base na concepção pós-moderna de conhecimento e de sociedade, conduzida pela Teoria do Caos e da Complexidade, fundamentada em autores como Morin (2014) e Morgan (2002). Nessa concepção, o currículo fundamenta-se em uma perspectiva caótica de imprevisibilidade, fluidez e desordem.
Verifica-se que, para além da base teórica pós-moderna, a Proposta Pedagógica Curricular do Curso Técnico em Alimentos também é atravessada por autores progressistas, como Freire (2014), Machado (2010), Ciavatta e Ramos (2012), demonstrando o hibridismo de concepções que configuram a experiência de integração curricular (IFPR, 2020).
Relatos de experiência produzidos a partir das práticas desenvolvidas no Campus vão ao encontro da defesa da politecnia e da perspectiva de integração pautada nos documentos que norteiam a política institucional dos Institutos Federais.
Todavia, em tese que aborda a experiência de integração curricular em tela, Silva (2019) expressa uma crítica ao modelo de integração curricular proposta a partir do fundamento da politecnia. Para ele, “a insistência no conceito de integração curricular do modelo politécnico provoca mais prejuízos que soluções nas instituições, pois parte de um paradoxo que é, grosso modo, fazer educação profissional sem formação profissional”. (Silva, 2019, p. 194).
Assim, a proposta curricular demonstra-se aberta e fluída às diferentes abordagens teórico-metodológicas dos docentes, opondo-se ao que o autor denomina como “dogmatismo politécnico” (Silva, 2019, p. 198), o que expressa as disputas em torno da configuração do projeto formativo e demonstra que não há possibilidade de generalizações no que se refere à experiência em curso.
De acordo com o PPC do Curso Técnico em Alimentos integrado ao Ensino Médio (IFPR, 2020), a definição dos conteúdos das Unidades Curriculares é baseada nos objetivos de aprendizagem da matriz de referência do Exame Nacional do Ensino Médio, na proposta de currículo integrado para o ensino médio elaborado pela UNESCO em 2013xiii, na formação do corpo docente e nas demandas discentes. Nesses termos, a flexibilidade do currículo não impede a padronização curricular por meio da submissão dos conteúdos aos objetivos de aprendizagem definidos externamente a partir da lógica instrumental hegemônica.
Apesar de não ser possível uma análise mais detalhada das experiências, alguns elementos dicotômicos demonstram que se efetiva um processo de fragmentação dos conteúdos em projetos temáticos que potencializam o risco de não se relacionar e não permitir a compreensão da totalidade social pelo estudante, uma vez que a sequência e organização dos conhecimentos se dá de forma aleatória, a partir de uma dinâmica complexa e caótica, como descreve Silva (2019) em sua tese sobre a experiência.
Destaca-se que é necessário coragem para desenvolver uma proposta de inovação curricular ousada como a do Campus Jacarezinho. Entretanto, aponta-se alguns questionamentos em relação ao papel da educação profissional integrada ao Ensino Médio na configuração efetiva de uma proposta educacional contra-hegemônica com base na formação omnilateral e politécnica dos estudantes.
Uma das principais críticas a esta experiência relaciona-se à subjetivação curricular, metodológica, teórica e epistemológica. Sob a suposição de maior liberdade, autonomia e protagonismo, a flexibilização e diversificação curricular se caracteriza pela ausência de um projeto coletivo política e socialmente engajado com a emancipação humana e com a transformação social.
A estrutura curricular flexível que permite aos estudantes e docentes a construção do seu próprio itinerário formativo apresenta-se intimamente relacionada ao movimento pós-moderno que fragmenta os discursos teóricos, políticos e sociais, caracterizando o que Moraes (2001) denomina como o recuo da teoria, submetendo a educação à lógica do capital humano, atribuindo uma perspectiva individual e subjetiva ao processo educacionais.
A materialidade concreta que agudiza as desigualdades sociais não permite a todos os sujeitos as mesmas possibilidades de escolha, desempenho e de inserção na vida produtiva. A negação dessas determinações implica na abstração do ensino enquanto uma categoria desvinculada da realidade social, capaz de promover a transformação social na medida em que se adéque às demandas dos sujeitos e às necessidades produtivas.
Dentre as experiências relatadas na obra, chama a atenção a pluralidade de concepções teórico-metodológicas que configuram as propostas de Unidades Curriculares e práticas educacionais em curso. As Unidades Curriculares são propostas de modo a seduzir os estudantes, com vistas a atingir número adequado de matrículas. Assim, a criatividade na seleção de temas, conteúdos e até do nome da Unidade é um imperativoxiv. Dentre elas, destaca-se a Unidade Curricular “Aprender a aprender”, que se fundamenta em elementos do Relatório Jacques Delors, da UNESCO, para propor uma unidade voltada para o desenvolvimento da consciência metacognitiva e para a compreensão dos processos de aprendizagem (Campos, 2018).
Diante do exposto, pode-se afirmar que o currículo em tela tende a desenvolver uma conotação
As transformações decorrentes do aprofundamento das políticas ultraneoliberais nos planos econômico e político-cultural, têm conduzido a um conjunto de reformas educacionais, econômicas, culturais e trabalhistas de cunho regressivo, elaboradas com intensa participação da Sociedade Civil em torno das disputas pela hegemonia.
Vinculada ao setor privado e ao governo, a direção hegemônica das reformas tem privilegiado os interesses e necessidades do processo produtivo em detrimento às demandas da classe trabalhadora por uma formação pautada na emancipação e transformação social.
Lamosa (2020) ressalta que o bloco histórico no poder no atual contexto histórico e social carrega e dissemina a concepção de mundo burguesa neoliberal direcionando as políticas educacionais à adaptação do projeto formativo às necessidades do capital.
Nessa perspectiva, a educação se ajusta aos ditames do mercado, pautando os processos formativos na separação entre teoria e prática, na supressão de conhecimentos de áreas humanas e sociais, na padronização curricular, na melhoria do desempenho dos estudantes nas avaliações em larga escala, na contenção do acesso à educação superior por meio da profissionalização precoce, atribuindo um caráter prático e instrumental ao projeto formativo das classes trabalhadoras.
Dentre as principais categorias que emergem no contexto das políticas educacionais recentes destacamos a flexibilização do currículo, a presença da inovação e do empreendedorismo, uma perspectiva adaptativa, a subjetivação do processo formativo por meio dos itinerários e do projeto de vida, o currículo fundamentado em objetivos de aprendizagem definidos com base no desenvolvimento de competências e habilidades.
Atende-se uma demanda por um currículo pragmático e vocacional, com conteúdos voltados para a vida profissional, a economia, a administração e relações financeiras, noções de ética e informática. Esse modelo tende a configurar uma ameaça à possibilidade de formação sólida e emancipadora da classe trabalhadora, negando aos estudantes o acesso aos conhecimentos clássicos e a possibilidade de compreender a realidade concreta para atuar na sua transformação.
Ao analisarmos os documentos que orientam as práticas pedagógicas e curriculares do Instituto Federal do Paraná e do Campus Jacarezinho, encontramos elementos que remetem à formação humana dos estudantes, tendo o trabalho como princípio educativo, a integração curricular, a gestão democrática e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão como princípios fundamentais.
Todavia, compreendendo o Ensino Médio Integrado como uma concepção pedagógica, que demanda uma formação ampla e uma opção política ativa e explícita fundada no trabalho como princípio educativo e na integração entre a ciência, a cultura e a tecnologia, visando à formação humana, questiona-se o potencial supostamente contra-hegemônico assumido pela proposta em tela.
Apesar do diálogo constante sobre integração curricular com base em uma perspectiva progressista, os documentos e relatos de experiências analisados são atravessados por conceitos contraditórios, incorporando elementos que configuram a pedagogia hegemônica burguesa como: o apelo à inovação, ao empreendedorismo, a flexibilização e diversificação curricular.
Essas proposições se aproximam da perspectiva do desenvolvimento de competências, do individualismo e da meritocracia, lançando mão de expressões, tais como protagonismo, autonomia, aprender a aprender, projeto de vida, dentre outros. Essas categorias revelam o hibridismo como elemento estruturante da proposta de integração curricular. Nesse contexto, as propostas contra-hegemônicas pautadas na integração do Ensino Médio ao Ensino Técnico, sob uma base unitária de formação geral, na perspectiva de educadores como Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) esvanecem.
A experiência curricular analisada estabelece relações com discursos emanados por intelectuais orgânicos individuais e coletivos do capital no sentido de orientar as políticas educacionais para uma formação heterogênea e diversificada, visando visa atender uma classe trabalhadora igualmente fragmentada, diante da precarização e flexibilização das condições de trabalho e vida.
Essa perspectiva desmobiliza e fragmenta a classe trabalhadora, dificultado ações contra-hegemônicas de caráter efetivo. Tendo em vista que a escola é espaço de disputas e que o currículo expressa um projeto de educação que implica sua força conservadora ou progressista em relação ao projeto de sociedade que se busca, cabe aos sujeitos sociais engendrar ações coletivas e organizadas intelectual e politicamente no sentido de avançar no projeto de construção de uma nova sociabilidade.
iO Campus Jacarezinho do Instituto Federal do Paraná está localizado na cidade de Jacarezinho, na região norte do estado. Oferta desde 2017 quatro opções de cursos de Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio: Técnico em Eletrotécnica, Técnico em Eletromecânica, Técnico em Mecânica, Técnico em Informática e Técnico em Alimentos.
iiModelo de organização do trabalho que surgiu no Japão, na indústria automobilística Toyota, em 1950, e foi amplamente adotado no período de reestruturação produtiva do capitalismo. Apresenta características como a flexibilidade na forma de organização da produção, estoque mínimo e exigência de trabalhadores polivalentes.
iiiO neoliberalismo é uma formulação teórica inspirada no liberalismo econômico clássico, pautada em um conjunto de ideias baseadas na separação entre Estado e sociedade, defende a diminuição da regulação do Estado em relação à economia, permitindo a livre competição e a livre circulação dos capitais. Apresenta como estratégias: a privatização generalizada da economia nacional, a transferência de serviços públicos ao setor privado, a desregulamentação do sistema financeiro, a redução dos encargos e direitos sociais e redução dos gastos governamentais, dentre outras.
ivA Teoria do Capital Humano, elaborada por Theodore W. Schultz (Schultz, 1973) define o conhecimento como forma de capital e a decisão de investir na capacitação do trabalhador como uma deliberação individual ou das partes interessadas em melhorar a produtividade das sociedades e países.
vLonge de romper com a estrutura do Estado neoliberal, o governo Lula fez sutis concessões às classes populares, ampliando as políticas sociais. Na ótica de Frigotto (2018, p.126), o que prevaleceu nas políticas governamentais desse período foi a “ampliação de programas e projetos voltados para a elevação (precária) da escolaridade, vinculada a políticas de emprego e transferência de renda”.
viA politecnia relaciona-se com “domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno” (Saviani, 2003, p. 140). De acordo com essa visão, a educação escolar deveria propiciar aos estudantes a possibilidade de (re)construção dos princípios científicos gerais sobre os quais se fundamentam a multiplicidade de processos e técnicas que dão base aos sistemas de produção em cada momento histórico.
viiAs competências socioemocionais são anunciadas como a preparação psíquica necessária ao “saber ser” da sociedade do século XXI. Nessa perspectiva, enfatiza-se a necessidade de desenvolver a criatividade, a coragem, a curiosidade, a resiliência, mentalidade de crescimento e o espírito empreendedor.
viiiA experiência do IFPR/Jacarezinho foi reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC) em 2015 como uma das 178 Escolas Inovadoras e Criativas do país. Recebeu o selo de Escola Transformadora Mundial da ONG Internacional Ashoka. O Instituto Alana publicou dois livros nos quais o IFPR/Jacarezinho foi destaque. O campus também participou da Conferência Nacional de Alternativas para a Nova Educação (CONANE), em 2017. Foi convidado para o 1º Encontro de Educação Transformadora: Reinventando a Educação na América Latina, que ocorreu em Bogotá em novembro de 2017, ao qual não compareceu por falta de recursos. A proposta curricular do campus foi classificada como uma das cinco experiências exitosas de toda a rede federal durante o REDITEC de 2017, em João Pessoa-PB. Destaca-se também a parceria com a Secretaria de Educação Profissional do Estado da Bahia, que, por intermédio do Instituto Alana, recebe auxílio do campus para repensar o modelo educacional do Estado. (Fiorucci; Corrêa, 2018).
ixAs Unidades Curriculares são planejadas como fractais holográficos, para representar uma parte e um todo, com início e fim em si mesmas, correspondendo a uma especificidade de uma área e podendo dialogar com outras áreas. A carga horária total de cada Unidade Curricular é geralmente de trinta horas. (IFPR, 2020).
xOs estudantes dos cursos de Ensino Médio Integrado à Educação profissional devem cumprir uma carga horária de 3.200 horas organizadas da seguinte forma: 1.200 horas correspondentes ao Núcleo Técnico, delineado de acordo com a área profissional cursada e 690 horas para cada grande área do saber: Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Matemática e Códigos e Linguagens, compondo o Núcleo Básico.
xiAs turmas são multietárias (14 a 18 anos), os agrupamentos não são seriados e se constituem a partir do interesse de estudo. Os estudantes definem quais Unidades Curriculares querem cursar em cada semestre e têm como fator limitador de suas escolhas a carga horária obrigatória do Núcleo Básico e Técnico.
xiiNo momento da matrícula, os estudantes recebem um instrumento denominado bússola, que apresenta a compilação de todas as Unidades Curriculares ofertadas no semestre. Os estudantes analisam a bússola para compor seus horários conforme as opções disponíveis e as atividades obrigatórias de seu itinerário profissional. (IFPR, 2020).
xiiiRegattieri, M.; Castro, J. M. (orgs.). (2013). Currículo integrado para o Ensino Médio: das normas à prática transformadora.Brasília: UNESCO.
xivO título de algumas das Unidades Curriculares descritas nos relatos são: “Vamos à guerra”, relacionada à Física; “Química do cabelo elétrico” e “Bioquímica com mangá”, relacionadas à Química; “Jacarezinho! Avião!”, relacionada a esportes radicais. (Corrêa; Fiorucci; Paixão, 2018).
xvFreitas (2018) ressalta que com o desenvolvimento do neoliberalismo, o tecnicismo é reformulado, mantendo estreitos vínculos com seus elementos fundamentais (racionalidade, eficiência e produtividade).
xviDuarte (2001) identifica no ideário pedagógico contemporâneo, que se expressa tanto no construtivismo quanto na pedagogia dos projetos, na pedagogia das competências e no multiculturalismo, os princípios epistemológicos do pragmatismo que constituiu a base do método escolanovista, atualizado e revitalizado. Como eixos centrais deste ideário, o autor destaca: a defesa de que o conhecimento deve ser construído pelo educando a partir das necessidades, com foco no desenvolvimento da atitude investigadora e o pensamento científico autônomo. Estes princípios engendram uma atitude de oposição ao estabelecimento de um currículo que organize e sequencie o conhecimento de forma lógica e temporal. Como principal consequência, Duarte aponta o deslocamento dos conteúdos clássicos para uma posição secundária e periférica.
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