Metadados do trabalho

Entre A Formatação Docente E A Formação De Si – Perspectivas De (Des)Empoderamento Em Uma Formação Inicial Em Ciências Biológicas

Rafael Matias de Moura

Este artigo pretende discorrer sobre as dificuldades de formação inicial de professores de Biologia à luz das racionalidades contemporâneas baseadas na técnica e/ou na prática. À luz da teorização subjacente, realizamos uma análise do projeto pedagógico de curso (PPC) de uma universidade do nordeste brasileiro. Nossa análise propõe uma racionalidade alternativa à racionalidade técnica e instrumental: a racionalidade crítica e dialética imanente à Formação de Si. No contexto do século XXI, os sistemas nacionais de educação superior estão fortemente marcados pela lógica das competências. E a formação está quase estritamente voltada às demandas empresariais. Postulamos a possibilidade de existir um outro tipo de formação comprometida com a dimensão ética-estética-política-humana. Esta formação humana dentro de um projeto de formação de si, pode ser um caminho para a formação de intelectuais autônomos e transformadores e voltada à criação de valores humanos. Em perspectiva, denominamos formatação docente a perspectiva padrão de formação de professores de Biologia no Brasil, que busca essencialmente produzir técnicos executores de habilidades e competências, definidas por documentos normativos elaborados sob a influência dos reformadores empresariais da educação.

Palavras‑chave:  |  DOI:

Como citar este trabalho

MOURA, Rafael Matias de. Entre a Formatação Docente e a Formação de Si – perspectivas de (des)empoderamento em uma formação inicial em Ciências Biológicas. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/257-entre-a-formata%C3%A7%C3%A3o-docente-e-a-forma%C3%A7%C3%A3o-de-si-perspectivas-de-des-empoderamento-em-uma-forma%C3%A7%C3%A3o-inicial-em-ci%C3%AAncias-biol%C3%B3gicas. Acesso em: 16 out. 2025.

Entre a Formatação Docente e a Formação de Si – perspectivas de (des)empoderamento em uma formação inicial em Ciências Biológicas

Pensar um currículo de formação de professores é muito mais do que reunir um coletivo de professores e redigir um projeto pedagógico de curso (PPC), visto que precisamos também pensar em processos formativos que se ocupem de questões que se localizam para além dos livros didáticos, salas de aula e laboratórios de experimentos. Tratamos assim de questões cujos “padrões e objetivos a serem alcançados sejam determinados em conformidade com metas de visão crítica e de ampliação das capacidades humanas e possibilidades sociais”. (GIROUX; SIMON, 2011, p. 113)

Correlacionada a esta questão norteadora, há um conjunto de questões que nos ajudaram a conformar nossa objeto e problema de pesquisa. Questões que nos acompanha da dissertação à tese que se encontra em fase de elaboração. Por exemplo: Quais são as possibilidades de empoderar os discentes, isto é, contribuir para que eles conquistem, por eles mesmo, a autonomia intelectual? Nossa hipótese de trabalho partiu do pressuposto que uma Formação de Si, referenciada na formação humana, empodera-os e contribui, com tal empoderamento, para que se conquiste a autonomia intelectual e o governo de si.

Porém, na realidade contemporânea, comprometida exclusivamente com a formação profissional de forma imanente à racionalidade técnica e instrumental, esta formação desempodera ao sujeitar os discentes e docentes ao governo dos outros, ou seja, à governamentalidade do capitalismo neoliberal. Portanto, constatamos que a formação profissional das racionalidades contemporâneas[1], desempodera. Em contraponto, a formação humana empodera porque fortalece o governo de si das pessoas, possibilitando autonomia, emancipação e transformação social. A formação mercantil desempodera porque fortalece o governo dos outros, das classes dominantes[2]. (BEZERRA[3], 2019b, 2019c)

A reflexão mais aprofundada dos aspectos formativos, isto é, dos limites e potencialidades da Formação de Si, fez emergir a problematização do objeto de estudo, qual seja: Quais as percepções dos professores-biólogos em relação à formação inicial e quais as possíveis contribuições para o processo de empoderamento face à subjetivação docente[4]?

Constituímos assim um projeto de pesquisa para analisar as percepções dos professores-biólogos como também tensionar aspectos limítrofes da formação inicial, a partir das racionalidades formativas vigentes. Para tanto, a nossa análise permeou um trabalho qualitativo que se ocupou de entrevistas semiestruturadas e da análise documental do projeto pedagógico do curso (PPC), à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da Metodologia Interativa (OLIVEIRA, 2020). Todavia, para além da análise, desenvolvemos uma possibilidade alternativa às racionalidades instituídas e uma contribuição inovadora: a Formação de Si (FSi), organizando as práticas de empoderamento e sua dinâmica de funcionamento no âmbito da licenciatura em Ciências Biológicas.

Em outra via, questionamos os meios e práticas com que esses sujeitos em formação fogem do assujeitamento operacionalizado pelo sistema de ensino, pelo currículo formativo e as políticas de poder na universidade. Portanto, a FSi é uma contra-esfera formativa voltada à formação de intelectuais transformadores, contra-hegemônicos, autônomos e criativos, parafraseando a pedagogia radical de Giroux (1983; 1997; 2000; 2011).  Na contra-esfera, os sujeitos em formação[5] constroem seu caminho para o empoderamento nos entremeios de uma racionalidade formativa: de um lado, técnica e instrumental que envolve a pesquisa na Biologia Aplicada e suas práticas de laboratório; por outro, temos uma epistemologia da prática que supervaloriza a prática em detrimento dos saberes teóricos[6].

Dessa forma, fomos construindo o argumento central da tese: A partir de diferentes experiências com estudo e pesquisa, existe uma racionalidade alternativa: aquela que envolve a práxis, que envolve empoderamento. Esta se desenvolve a partir das práticas de leitura imanente, permeando os temas do currículo explícito, bem como os aspectos de currículo oculto que envolvem os interesses de pesquisa e estudo dos referidos sujeitos em formação. Em outras palavras, a FSi baseia-se na leitura imanente através do currículo acadêmico e uma vivência transdisciplinar (MORIN, 2011; 2013) e dialógica (FREIRE, 1967; 1987) dos saberes apropriados na formação.

Para coletar dados e implementar uma versão preliminar da Formação de Si (FSi) para a licenciatura em Ciências Biológicas, escolhemos o curso de Ciências Biológicas de uma universidade do nordeste brasileiro como campo de pesquisa. Neste espaço, estamos desenvolvendo um projeto-piloto acerca do trabalho pedagógico de estudo e pesquisa através do método da leitura imanente (BEZERRA, 2019b). Assim, nossas preocupações com a formação de professores envolveram a tarefa de “escrever através do currículo” (CARLINO, 2017, p. 28).

Entretanto, o desenvolvimento de um projeto-piloto fez-nos perceber que a FSi também permitia o espaço para o desenvolvimento de ideias criativas que pudessem ser aplicadas para além dos estudos universitários. Assim, concordamos com Bezerra (2019c) que afirma o estudo como uma maneira de viver, porém, tornou-se necessário adicionar um componente: a criatividade. Adotamos os referenciais de Makiguchi (2002) e Freire (2019) para envolver a FSi nas dimensões ontológica, epistemológica e axiológica superando os aspectos sociais e pedagógicos elencados por Bezerra. Assim, neste momento da pesquisa, estamos elaborando o arcabouço de um Método da Leitura Criativa, incorporando referenciais makiguchianos e freirianos à proposta sistematizada por Bezerra (2019b; 2019c).

Após realizar as entrevistas e passar pelo exame de qualificação, as respostas às questões das entrevistas continham anseios por uma alternativa de formação que valorizasse outra racionalidade: mais preocupada com as pessoas e sua formação humana em contraponto ao ensino propedêutico de disciplinas e da exclusão social promovida pelos grupos de pesquisa em funcionamento no campus pesquisado. Por outro lado, nossa análise crítica do PPC evidenciou um curso totalmente voltado às racionalidades da atual era de reforma empresarial da educação. Assim, a lógica das competências e habilidades travestia-se de um curso em que as atividades de ensino tradicional se destacavam de todas as outras atividades acadêmicas.

O referido curso, na formatação apresentada em seu PPC, não pretende formar um profissional biólogo em excelência, pois não apresenta os componentes do conhecimento biológico com a suficiente profundidade de um bacharelado. Por outro lado, a formação docente acontecia por meio de componentes curriculares dispersos no currículo e uma prática pedagógica de concepção e execução confusas. Assim, os licenciandos entrevistados não se consideravam suficiente formados para os desafios do mercado e para uma carreira atrelada a um projeto pessoal de vida. Nas entrevistas, ressaltaram a importância do convívio em grupo e das relações interpessoais construídas na formação. Em outras palavras, as falas dos sujeitos em formação demandavam uma nova relação com o saber e o aprender na formação inicial (Charlot, 2000; 2013; 2020) como também de uma apropriação de conhecimentos mais colaborativa e com maior atividade intelectual, prazer e sentido.

Assim, a FSi tenciona ser uma práxis formativa que se remete à conquista da autonomia intelectual de maneira efetiva e humanística, baseada na criação de valores da subjetividade. Por sua natureza ontológica, epistemológica e axiológica, constitui uma práxis envolvendo o cuidado ético e um exercício de si da reflexividade que forja um habitus e um ethos (Bezerra, 2019a; 2019b) no contexto de uma educação libertadora (FREIRE, 1967; 1987)

A partir deste entendimento, a FSi implica diretamente no governo de si[7], que corrobora o empoderamento como processo imanente a um tipo de pesquisa que se realiza para além dos muros da universidade, em uma perspectiva de autoformação intelectual, a partir do trabalho de si consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

Foge-nos ao escopo deste artigo apresentar e discutir os pressupostos teórico-metodológicos da FSi, entretanto, decidimos apresentar sumariamente as suas bases, com autores e conceitos:

  1. Base Filosófica – Parafraseando Hadot (2016) em sua “Filosofia como maneira de viver” e os Cuidados de Si foucaultianos, a FSi baseia-se no princípio de “Estudo como modo de Vida” (BEZERRA, 2019a);
  2. Base Sociológica – Atrelada à anterior, a FSi é concebida a partir do Método da Leitura Imanente nas acepções de Bezerra (2019a; 2019b; 2019c) e nos trabalhos de Lahire acerca do estilo de vida de professores estudiosos a partir de suas disposições, cujas quais não são “todas equivalentes do ponto de vista da precocidade, da duração, da sistematicidade e da intensidade de sua incorporação (LAHIRE, 2008, p. 28) Assim, a FSi constitui um estilo de vida dado pelo conjunto de disposições que forjam um habitus docente e um ethos comprometido com a “ética das virtudes e a estética da existência” (BEZERRA, 2019c, p. 46) 
  3. Base Pedagógica – A partir da categoria palavra-mundo de Freire (1987) e da sua concepção de autonomia (FREIRE, 1996), conceber os sujeitos em formação enquanto estudiosos ou pesquisadores constitui uma prerrogativa de compreender a formação enquanto processo de desenvolvimento da autonomia intelectual por meio de ações de empoderamento. Em tempo, acreditamos que a FSi também mediatiza uma Relação com o Saber permeada de atividade, prazer e sentido. (CHARLOT, 2000; 2013; 2020)

Na condição de fios condutores entre as bases acima citadas, destacamos dois elementos teórico-metodológicos que interligam os autores acima citados e suas teorias:

  1. Transdisciplinaridade/ Complexidade e Educação para o futuro da humanidade de Morin (2011; 2013; 2015): Na tentativa de evitar a segmentação e fragmentação de conhecimentos, a transdisciplinaridade contribui para a união de saberes por meio da complexidade e pela aplicação de conhecimentos em situações da vida real. É um caminho para se extrapolar também os limites da racionalidade técnica, valorizando aspectos emocionais e intuitivos na resposta às questões que articulam diversos componentes do currículo;
  2. Educação para a Vida Criativa de Makiguchi: Nossa grande preocupação com a FSi reside para além da tensão entre as racionalidades formativas. Entre a teoria e a prática, defendemos que a FSi deve ser focada no educando, nos caminhos de uma subjetividade descentrada, em que os pontos de partida e de chegada são aquisições subjetivas, tais como a felicidade (MAKIGUCHI, 2002), a tranquilidade da alma (SÊNECA, 2021) e um “comprometimento com a ética das virtudes e com a estética da existência” (BEZERRA, 2019c, p. 54) 

Por fim, na tabela abaixo, sintetizamos o que foi descrito e encaminha-nos à fase de desenvolvimento do trabalho metodológico, análises e considerações:

Formação de Si – Bases

Autores

Conceitos

Filosófica

Hadot (2014; 2016)

Foucault (2017); Dias (2019)

Filosofia como maneira de viver

Cuidado e Escritas de Si

Sociológica

Bezerra (2019a; 2019b)

Lahire (2008)

Método da Leitura Imanente

Estilo de vida e suas disposições

Pedagógica

Charlot (2000; 2013; 2020)

Freire (1987; 1996)

 

Relação com o Saber

Dialogicidade e Autonomia

Tabela 1 – Quadro de autores e conceitos das bases da Formação de Si. Fonte: Moura (2021).

Em nossa análise do PPC, pretendemos justamente elucidar tais processos como também as suas redes de saberes e poderes no contexto da formação inicial em Ciências Biológicas. Para tanto, apresentamos adiante nossas percepções acerca de um bloco de temas e objetivos do PPC em que a nossa pesquisa de doutorado foi realizada.

 

[1]     Referimo-nos tanto à racionalidade técnica e instrumental como à racionalidade prática do profissional “reflexivo”.

[2]     Nossa discussão teórica acerca do empoderamento e da subjetivação tensionará os limites desta concepção dialética entre dominantes e dominados, no contexto marxista. Entretanto, em nível de problematização, é preciso indicar a questão de forma clara para sustentar a defesa de uma linha da governamentalidade (governo das ações mentais e/ou intelectuais), pois haverá o momento em que a fundamentação teórica investirá nas possibilidades sociais em que o sujeito de si foucaultiano possa cuidar de si, dos outros e do mundo, por meio de atividades que libertam o sujeito da sujeição ao governo dos outros.

[3] Em tempo, não poderíamos deixar de mencionar a nossa homenagem e agradecimentos ao Professor Bezerra, por sua leitura crítica e formativa deste trabalho. Para além da densidade de sua obra, Bezerra é um exemplo vivo de que uma formação humana não se dá por meio de orientações feitas em gabinetes para a sua implementação no chão da escola pelos professores e estudantes. Para nós, uma formação ética-estética-política-humana contempla a paideia e askesis gregas, ou seja, um exercício de corpo, mente e espírito na apropriação de conhecimentos envolvidos no cuidado de si consigo mesmo, com os outros e com o mundo. 

[4] O processo de empoderamento ocorre por meio do trabalho pedagógico decorrente do estudo ou “trabalho de si, em si, por si e para si” (BEZERRA, 2019b; 2019c). Isto é, da apropriação das linguagens das ciências e conteúdos curriculares. Para tanto, é necessário que os discentes de Biologia usem de forma regular, sistemática e singular o método de estudo da leitura imanente. A formação de si e seu empoderamento ocorre nos entremeios desse método. Através dos quatro momentos que o constitui (analisaremos este método mais adiante). Em perspectiva, percebemos que há objetividade na subjetividade que se desdobra na formação inicial em Biologia. Dito de outra forma, postulamos que a atividade concreta e objetiva em que se desdobra a subjetividade da formação inicial em Biologia é o estudo. Este pode ser entendido como atividade humana sensível. Admitindo que o estudo é uma técnica de si e está comprometida com a ética das virtudes e a estética da existência, ou seja, quando estudamos cuidamos de nós, e praticamos, segundo Pierre Hadot, uma ascese ou exercício espiritual. Estudo é assim entendido como um modo de viver ou modo de vida.

[5]     No contexto deste trabalho, adotamos a perspectiva de sujeitos em formação como uma tentativa de unificar a referência aos estudantes de licenciatura em questão. Esta opção se deve por dois motivos: primeiro, para filiarmo-nos a um entendimento de sujeito que se coadune com as nossas trilhas de empoderamento investigadas no contexto da FSi; segundo, como uma tentativa de posicionarmo-nos criticamente no diálogo entre diversos autores que, no contexto de suas obras e ideias, defendem o ser humano por nomenclaturas diferenciadas, tais como agente, indivíduo, sujeito etc.

[6]     Dados da pesquisa apresentados no relatório de qualificação. (MOURA, 2020)

[7]     Na caracterização do governo de si concordamos com a perspectiva foucaultiana e rejeitamos a tese marxista de Bezerra, que tensiona um paradoxo entre o governo de si e o governos dos outros. Em Foucault, o governo de si remete a um jogo de liberdade e criatividade na subjetivação do sujeito mediado por microrrelações de poder, transformando sua vida para além da sujeição tornando-se uma forma de arte e um modo de viver: a estética da existência. Assim, este trabalho de si, em si e para si (Hadot, 2014, p. 136) “trata-se sempre de uma conscientização do valor da existência”.

Do ponto de vista metodológico, utilizamo-nos dos aportes teórico-metodológicos da Metodologia Interativa (Oliveira, 2010; 2020). Ao mesmo tempo, buscamos entender os fatos e fenômenos de uma realidade pesquisada à medida em que fazemos uma análise[1] à luz de teorias. (OLIVEIRA, 2010, p. 124)

            Dessa forma, nosso trabalho empírico situou-se na triangulação entre dados obtidos por meio de um agregado de entrevistas, sua categorização, como também a utilização de lentes teóricas e empíricas para a análise documental do projeto pedagógico do curso (PPC). Neste artigo, apresentamos os principais excertos desta segunda etapa do trabalho, com ênfase no que foi coletado e analisado sobre o objetivo educacional do PPC e que tipo de profissional o curso pretende formar.

Assim, no espaço deste artigo, concentramos nossas análises acerca do primeiro bloco do projeto, que se ocupa de questões tais como perfil profissional, habilidades, competências e diretrizes curriculares para o biólogo licenciado[2]. (UNEAL, 2017) Os blocos foram assim denominados a partir do que se dispõe na própria estrutura do projeto, com o intuito de focalizar a discussão, evitar repetições desnecessárias e fazer uma leitura teórica mais objetiva em relação às percepções do pesquisador.

De maneira geral, encontramos um documento repleto de citações diretas extensas e até plágios de outros documentos formativos, demonstrando concepções confusas acerca da intencionalidade formativa e da identidade anfíbia do profissional formado. Ou seja, o documento mescla perspectivas arraigadas tanto na racionalidade técnica, por meio da ênfase no conhecimento biológico, como também da epistemologia da prática, asseverando a importância da formação centrada nas escolas. Não parece entender que existe a forma de ser professor de Biologia e/ ou biólogo licenciado, apresentando diferentes escopos formativos, conforme apresentaremos adiante.

Como ponto de partida de um texto confuso e difícil de analisar, o PPC possui uma extensa introdução que enfatiza as competências e habilidades relacionadas à formação docente. Entendemos desde já que se trata do contexto da formatação docente (MOURA, 2021), pois se traduz numa formação curricular de aplicação da pedagógica das competências mesclada por interesses de uma formação para o mercado de trabalho.

Dessa maneira, constatamos uma grande quantidade de extensas citações diretas de documentos oficiais que buscam referendar a lógica das competências como objetivo educacional da formação de profissionais, tanto biólogos quanto professores de Biologia[3]. A hibridação formativa parece uma impossibilidade num contexto em que os limites entre ser professor e ser biólogo parecem sequer compreendidos.

Em razão do que foi dito anteriormente, não encontramos no perfil do egresso referências diretas à formação profissional de um professor reflexivo comprometido com o desenvolvimento da autonomia intelectual e com o exercício de empoderamento. Acreditamos que a ausência de uma discussão arrazoada na explicação de que tipo de professor profissional o curso deseja formar à luz de uma fundamentação teórica empobrece tanto o texto do PPC como o escopo da formação.

O trecho citado adiante ilustra uma preocupação aparentemente unilateral com a formação voltada ao mundo da escola, com o intuito de formar

Um profissional que esteja apto para atuar preferencialmente na Educação Básica na docência da disciplina: Ciências no Ensino Fundamental ou na disciplina: Biologia do ensino médio e/ou nas atividades de gestão do trabalho educativo (UNEAL, 2017, p. 7)

Assim, um profissional formado nesta licenciatura

deverá apresentar um conhecimento abrangente em sua área de formação, sendo capaz de refletir sobre a sua prática pedagógica e de intervir na realidade regional buscando transformá-la continuamente e contribuir com atividades que sejam um reflexo da prática pedagógica adquirida no decorrer da sua formação. (UNEAL, 2017, p. 23)

Entretanto, no decorrer do texto, a proposta vai se tornando um misto de contradições como também uma bricolagem entre os pressupostos da pedagogia das competências, enaltecimento da racionalidade técnica e da formação por meio da prática centrada nas escolas da região. Para tanto, delineia suas pretensões em formar um profissional com as seguintes destrezas:

1. A orientação e mediação no ensino são práticas que contribuem para o progresso do aluno;

2. O profissional da Educação biológica tem de estar comprometido com o sucesso da aprendizagem dos alunos;

3. Aprender a lidar com a diversidade cultural, de gênero, de raça, e etnia existente entre os alunos;

4. O comprometimento de incentivar atividades que enriqueçam culturalmente os alunos.

5. Entender que as pesquisas são atividades investigativas importantes para o crescimento científico do aluno;

6. Se comprometer em elaborar e executar projetos para o desenvolvimento de novas metodologias com inovações e estratégias que motivem os alunos a trabalhar em equipe;

7. Habilitar profissionais licenciados a construir materiais didático-pedagógicos a partir das atividades de campo;

8. Acompanhar a evolução do pensamento científico na sua área de atuação;

9. Utilizar novas metodologias e tecnologias que favoreçam a mediação no processo de ensino-aprendizagem (UNEAL, 2017, p. 23-24)

            Atendo-se especificamente ao discurso textual, sem incorrer a interpretações outras, percebe-se claramente que as características 1, 6 e 9 parecem carregar intenções similares de propósitos relacionados com a pedagogia das competências e a formação mercantil. Porém, também se percebe um discurso superficial que não dá conta de lidar com a formação humana e os valores da subjetividade e da reflexividade no contexto de uma Formação de Si. Tampouco enxergamos qualquer preocupação com a formação de intelectuais transformadores girouxianos, com a emancipação freiriana ou qualquer outra base teórica que lide com a preocupação de se possuir uma alfabetização acadêmica que supere o horizonte individualista e fragmentado da formação disciplinar.

Em dissonância com a Formação de Si, consideramos também que a enumeração acima descrita encontra-se longe da preocupação com a leitura imanente do mundo tão necessária no contexto da alfabetização acadêmica (CARLINO, 2017). Bezerra e colaboradores (2020) afirmam que “para além da interação social na escola e da socialização dos conteúdos dos componentes curriculares, importa priorizar a análise da produção, socialização e apropriação de conhecimentos pelos atores pedagógicos” (p. 264).

Em tempo, percebemos claramente a intenção do projeto de formar “máquinas de ensino” que são submetidas à lógica da formatação docente. Caracteriza-se um texto na contramão do que entendemos por formação humana, que envolve valores subjetivos e reflexivos por meio de uma “associação metodológica [que] envolve lugares, pessoas, sentimentos, impressões, falas, pensamentos e registros (Bezerra, 2019a, p. 461-462). Dessa maneira, discordamos dos descritores elencados, pois enxergamos uma possibilidade formativa baseada nos valores subjetivos e reflexivos, como também no desenvolvimento da autoria e da autonomia intelectual, atendendo ao “desafio de desenvolver o currículo junto com os alunos e não apenas para eles”. (CARLINO, 2017, p. 210, grifos do original)

Retornando ao documento, o perfil do egresso terá sua redação menos evasiva no final da página 24, quando indicará as possibilidades de trabalho no campo da Biologia aplicada. Todavia, o tom de superficialidade ainda mostra que é um texto que não se preocupa com as especificidades de uma subjetivação anfíbia, localizada no entrelugar de duas profissões: ser professor e biólogo. Segue a redação oficial:

Entende-se que o egresso do Curso de Ciências Biológicas também deverá ser capaz de compreender os processos teórico-metodológicos inerentes à relação ensino e aprendizagem nos níveis fundamental e médio, bem como poderá atuar em laboratórios de ensino e de pesquisa, organizações que desenvolvam atividades ambientais, entidades ecológicas, unidades de conservação e demais inserções que promovam a construção de um modelo sustentável de desenvolvimento, garantindo direitos e o pleno exercício da cidadania. Todas as atribuições de biólogo que contribuam para o entendimento que a Biologia é dinâmica, portanto, deverá conduzir o discente para um estado permanente e crítico, vivenciando situações-problema de sua comunidade, podendo entender o contexto ambiental em que está vivendo. (UNEAL, 2017, p. 24)

            De um lado, o texto evidencia a dificuldade de superar a tensão dialética que surge entre o professor e o biólogo, desprezando que a subjetivação agrega elementos indissociáveis no contexto de uma formação humana. Contudo, parece tendencioso falar de áreas de pesquisa e atuação, tanto para a formação pedagógica como para as atividades ligadas à atuação na Biologia aplicada, sem citar qualquer documento normativo de âmbito nacional. Nesse ponto, sentimos a falta de um maior embasamento nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores, principalmente no que concerne às resoluções mais recentes e aos documentos normativos do Conselho Federal de Biologia.

Por outro lado, não se percebeu qualquer tentativa de entendimento da formação enquanto práxis transformadora que envolva a tensão entre os limites entre os saberes biológicos e pedagógicos, seja na constituição do currículo relacionado à formação específica em Biologia quer seja por meio de uma concepção de professores de Biologia enquanto intelectuais reflexivos e transformadores.

Como se constitui uma tradição na construção de documentos curriculares no Brasil, aparenta ter sido mais um produto elaborado em um círculo de colegas a portas fechadas, sem ouvir o coletivo de estudantes e professores da educação básica que lidam com os licenciandos. A ausência destes atores denuncia a falta de autonomia intelectual na gestão democrática das decisões do currículo formativo, constituindo um currículo elaborado para os estudantes, sem ouvir suas demandas, anseios e desejos.

A carência de fundamentação teórica no texto e a submissão do projeto à ideia de um professor técnico, porém reflexivo, permite-nos denotar que se trata de um documento que parece ter sido escrito por poucas pessoas e que não foi amplamente debatido na comunidade acadêmica. Demonstrando a prevalência de uma racionalidade técnica e instrumental, também evidencia o privilégio de certos domínios de saber relacionados ao conhecimento biológico nos interesses formativos.

Também sentimos falta sobre o posicionamento do projeto sobre o entendimento da prática profissional de formar professores-biólogos à luz de referenciais éticos, estéticos, políticos e humanísticos. Em todos os momentos, a identificação profissional é tratada de forma estanque, enfatizando a formação do professor sem embasamento teórico e a bricolagem de estratégias entre a racionalidades técnica e prática. Dito de outra maneira, o projeto oscila entre uma racionalidade técnica que se funda a partir da supervalorização do conhecimento biológico e uma racionalidade prática que pretende formar um professor acrítico e executor de ações propostas fora do chão da escola.

Dessa maneira, caracterizamos o perfil do egresso em uma paráfrase com a crítica de Arce (2001): “Compre nossa proposta neoliberal para formação acrítica e ganhe um manual com 10 passos para ser um bom professor de Biologia”[4]. Em perspectiva, sem fazer uma discussão de mérito sobre a pedagogia das competências e habilidades na formação inicial, percebemos a pobreza de embasamento teórico, pois, referenciam apenas as orientações “que constam no texto das Habilidades e Competências publicadas pelo Ministério da Educação-MEC[5]” (UNEAL, 2017, p. 26).

De uma forma geral, os relatores realizam uma colagem de habilidades e competências próprias do educador da disciplina Biologia sem apresentar qualquer intenção de formar intelectuais críticos e transformadores ou preocupação com a emancipação e autonomia intelectual, na linha dos autores que discutimos ao longo deste artigo sobre a FSi.

Porém, a exposição dessas habilidades e competências parecem sequer ter uma tradução em estratégias formativas para o desenvolvimento das mesmas. Ou seja, não descreve a formação de grupos de participação colaborativa e solidária para a troca de experiências de formação, como também não se ocupa de uma perspectiva dialógica ou em contextualizar um horizonte teórico-metodológico para o desenvolvimento das competências e habilidades descritas.

Por mais que o contexto da epistemologia da prática possua muitas limitações, tanto no arcabouço teórico quanto na própria desvalorização da teoria em detrimento da prática, o referido PPC ainda se constitui em um referencial mais relevante do que o profissional técnico das licenciaturas estruturadas sob a égide do formato 3 +1[6]. Em outras palavras, o professor reflexivo pode ser um conceito com suas limitações, mas constitui uma proposta de formação de professores que evidencia filiação epistemológica. (PIMENTA; LIMA, 2012; GHEDIN, 2015; PIMENTA; GHEDIN, 2007)

Apesar de ter a aparência de uma análise raivosa e ressentida por não termos participado da elaboração do documento em questão, nosso compromisso maior constitui-se com a comunidade acadêmica, demonstrando posicionamento crítico a partir de lentes teóricas densas e falando de um lugar privilegiado por conhecimento de causa.

Dito de outra forma, nossas análises também são frutos de uma pesquisa de doutorado que se deu em continuidade com o trabalho acadêmico realizado na referida instituição, num espaço de tempo que se soma à nossa experiência profissional de mais de dez anos, incluindo as trilhas de mestrado e doutorado na área de Ensino.

A tensão do projeto remete-nos a este tipo de análise que consolida uma escrita rebelde, não apenas pelo ressentimento gerado pela impossibilidade de participar das discussões[7], mas porque se trata de um texto estruturalmente desorganizado, que nos envergonha de compartilhar dos mesmos ideais e interesses formativos. Mais que uma pesquisa, nossa análise é uma desobediência civil em relação ao desrespeito com a comunidade acadêmica, de não se ouvir todas as instâncias e atores que permeiam o PPC. A consequência disso foi a emissão de um texto burocrático construído com um excesso de citações literais de documentos e cópias de conteúdos de outros projetos, caracterizando um projeto sob a forma de colagens sem a menor preocupação com os atores envolvidos.

Comprovando o exposto, o documento retoma genericamente o perfil do egresso, possivelmente porque esqueceram de elencar as competências e habilidades de profissional biólogo nas instâncias anteriores, referendando o entendimento de uma formação estanque, situada na tensão entre ser biólogo e ser professor. Assim, segundo o referido PPC, o portador do título de biólogo deve ser um profissional:

a) generalista, crítico, ético e cidadão com espírito de solidariedade;

b) detentor de adequada fundamentação teórica, como base para uma ação competente, que inclua o conhecimento profundo da diversidade dos seres vivos, bem como sua organização e funcionamento em diferentes níveis, suas relações filogenéticas e evolutivas, suas respectivas distribuições e relações com o meio em que vivem;

e) consciente de sua responsabilidade como educador, nos vários contextos de atuação profissional;

f) apto e trabalhar multi e interdisciplinarmente, adaptável à dinâmica do mercado de trabalho e às situações de mudança contínua do mesmo; (UNEAL, 2017, p. 29)

Mais uma vez, nota-se a montagem de um texto superficial e de um esvaziamento teórico, desprovido de preocupação contextualizadora com as questões regionais e com a formação humana. Todavia, o que mais nos intrigou se deve ao fato de que o perfil acima relatado é uma colagem do que dispõe o Parecer 1301/ 2001[8]. Entretanto, foram negligenciados e omitidos três outros componentes requeridos na formação do biólogo, que estão citados, explicados e exemplificados no referido parecer. Eis o componente “C”:

Consciente da necessidade de atuar com qualidade e responsabilidade em prol da conservação e manejo da biodiversidade, políticas de saúde, meio ambiente, biotecnologia, bioprospecção, biossegurança, na gestão ambiental, tanto nos aspectos técnicos-científicos, quanto na formulação de políticas, e de se tornar agente transformador da realidade presente, na busca de melhoria da qualidade de vida.

Uma explicação possível sobre a omissão dos três componentes do perfil do biólogo em relação ao documento original deve ter sido o cansaço dos relatores que, após tantas colagens, passaram a diminuir a quantidade de informações diretas, extensas e repetidas. Outra possibilidade gira em torno da possibilidade de que os relatores possam ter considerados desinteressantes os itens suprimidos. Na nossa leitura, todos os três pontos negligenciados, principalmente o “C”, abordam aspectos importantes que se relacionam à aplicabilidade dos saberes específicos.

Por outro lado, o componente “D”, em uma primeira interpretação, parece envolver alguma preocupação com a formação humana, aspecto diuturnamente alijado da proposta pedagógica. Segue o texto:

Comprometido com os resultados de sua atuação, pautando sua conduta profissional por critérios humanísticos, compromisso com a cidadania e rigor científico, bem como por referenciais éticos legais;

Neste caso, a omissão não pode ser mais aceita pela economia de espaço e ideias. Pois, em uma formação que se apresenta alicerçada pela racionalidade técnica com algumas possibilidades práticas, não parece haver espaço para a discussão de um perfil profissional cuja conduta se volte a aspectos humanísticos, éticos e legais. Por isso, reiteramos que o curso pretende formar especialistas técnicos, tanto na área de ensino quanto na Biologia Aplicada. Sobremaneira, permitimo-nos inferir que é uma formação voltada ao desempoderamento no contexto da formatação docente, em que “a elevação do número de horas-aula e a negação efetiva de horas de estudo e pesquisa causam absenteísmo, a perda da autoridade intelectual e a desvalorização do professor”. (BEZERRA, 2019b, p. 194)

Entendemos que este tipo de formação é também desumano, pois, “se a sociedade considerar apenas o proveito que se pode tirar do estudante que se formou, o resultado será desastroso para ambos”. (MAKIGUCHI, 2002, p. 37) Visto que o PPC não se ocupa com a criação de intelectuais de valor para a sociedade contemporânea.

O tópico “G” infere que o egresso deverá ser “preparado para desenvolver ideias inovadoras e ações estratégicas, capazes de ampliar e aperfeiçoar sua área de atuação” (BRASIL, 2001, p. 3). Esse item pode parecer confuso para as pessoas que pensam em uma formação que referenda a racionalidade técnica, pois existe um certo consenso de que “a inovação é concebida como um instrumento de resposta ao mundo complexo, diverso e incerto de hoje”. (DIAS, 2006, p. 55) Por uma elucubração possível, subentendemos que a omissão deste tópico esteja ligada à confusão acima indicada.

O texto continua a discussão de um perfil de profissional-biólogo a partir da estrutura curricular e funcionamento do curso. Porém, foge-nos aos limites deste artigo continuar uma discussão tão crítica e pormenorizada do referido documento.

Em linhas gerais, podemos perceber que o PPC demonstra confusão no que concerne à subjetivação entre a docência para o exercício de competências mercadológicas e um ser-biólogo com a assinatura da racionalidade técnica. Encontramos indícios de uma racionalidade prática de forma espaçada no documento, demonstrando a falta de participação das instâncias envolvidas (principalmente dos formandos) bem como a falta de apropriação teórica das diretrizes curriculares nacionais e dos fundamentos pedagógicos que permeiam sua produção e implementação.

Dizer que o curso é um misto da racionalidade técnica e prática é um triplo prejuízo aos formandos:

            Dessa maneira, a partir deste arrazoado conjunto de análises, permitimo-nos traçar as considerações gerais acima descritas e mais algumas, a serem discutidas no próximo campo, à guisa de (in)conclusões.

 

[1] Para Oliveira (2010), a análise é uma interpretação hermenêutico-dialética da realidade.

[2] O texto em blocos pretende realizar recortes mais específicos do conteúdo, para facilitar a compreensão.

[3] Encontramos a expressão “biólogo-educador” apenas uma vez no documento inteiro.

[4] O título original do trabalho de Arce (2001) é: “Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo”.

[5] O texto original (sobre competências e habilidades) não foi referenciado no documento. O que se pode inferir, no entanto, é que se trata de um texto muito querido pelos formuladores de PPC no estado de Alagoas, pois que o texto é encontrado ipsis litteris em outros PPC de Ciências Biológicas. Estamos nos referindo, por exemplo, ao PPC da licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Alagoas, campus Arapiraca, publicado em 2007 (UFAL, 2007), sendo também relatado no PPC de Ciências Biológicas da UFAL para o campus da cidade de Penedo (UFAL, 2018).

[7] No período entre 2009 e 2013 estivemos colaborando na instituição por meio de contratos precários na condição de professor substituto, assim, impedidos de participar de reuniões para discussão do projeto como também participar da orientação de bolsistas nos programas institucionais. A partir do segundo semestre de 2015 até o período de aprovação do projeto em 2017, foram poucas as reuniões realizadas com pequenos grupos no campus I da referida universidade, quase sempre nas quartas-feiras, dia da semana em que temos compromisso em outra instituição de ensino superior desde agosto de 2012.

[8] Texto oficial que institui as Diretrizes Curriculares para os Cursos de Ciências Biológicas, descrevendo o perfil dos formandos; competências e habilidades; estrutura do curso; conteúdos curriculares; estágios e atividades complementares (BRASIL, 2001).

Escrever sobre a formação de professores em relação às suas políticas normativas não tem sido uma tarefa fácil. Pois, nestes últimos vinte anos de produção de políticas de ensino superior e normatizações, estamos percebendo que a reforma empresarial da educação caminha a passos largos. Nesse contexto, o interesse maior é atender aos ditames neoliberais do capital e produzir corpos dóceis, submissos e eficazes no exercício de uma profissão cada vez mais técnica e menos reflexiva.

            Na contramão da ideologia da formação mercantil, defendemos a possibilidade de uma racionalidade alternativa, contra-hegemônica, baseada na apropriação de conhecimento de forma colaborativa e engajada sob a perspectiva ética-estética-política-humana. Assim, a FSi torna-se uma formação paradoxal no contexto em que predomina a formatação docente: a preparação de técnicos especialistas e executores de currículos cada vez mais enxutos e vinculados ao mínimo necessário ao exercício profissional no mundo do trabalho. Portanto, qual seja a racionalidade predominante no PPC analisado, nossa constatação final é de que

  1. Os aspectos de uma formação humana são quase nulos ou negligenciados sob a égide de formatar por competências e habilidades. Ou seja, atingir as metas e objetivos educacionais do mercado capitalista é um sinônimo de formação cidadã e de autoformação moral e intelectual;
  2. A FSi constitui nosso campo de batalhas na busca de condições de permitir os movimentos da subjetividade dos sujeitos em formação para além de uma identidade profissional. Condições para que os sujeitos sejam eles mesmos, autores de suas histórias e questões de pesquisa em diferentes campos de conhecimento, abordagens e métodos; logo, empoderados na apropriação da cultura envolvida na sua formação inicial por meio dos estudos realizados.

Neste tipo de formação,

deixamos a condição de ator que nos obriga a agir burocraticamente sob prescrição, para agirmos no mundo sob o juízo ético, político e estético da nossa existência; assim, agimos em pesquisa e ganhamos consciência nas ações da responsabilidade de sermos formadores de nós mesmos (BEZERRA, 2019b, p. 127)

            Por outro lado, também defendemos a hipótese girouxiana de que “é necessário desenvolver programas de formação que eduquem os professores como intelectuais críticos, capazes de ratificar e praticar o discurso da liberdade e da democracia” (GIROUX; MCLAREN, 2013, p 143).

Pois, confrontando todos os nossos dados emergentes das análises de uma pesquisa que durou mais de três anos, percebemos que os egressos não aproveitaram ao máximo a apropriação de seus estudos para um efetivo crescimento pessoal e acadêmico. Acreditamos que a possibilidade de uma formação humana pode se constituir em uma alternativa em resposta a este desafio, de forma que

o trabalho deixa de ser uma atividade conscientemente orientada para uma finalidade, para se posicionar ou se situar como um mix de racionalidades múltiplas e, simultaneamente, funcionalidades diversas na unidade e processo da autoconstrução humana. (BEZERRA, 2019a, p. 241, grifos do autor)

Por fim, em todos os casos, foi demonstrado que os sujeitos da pesquisa compreendem e vivem a cisão entre formação pessoal e um projeto de vida profissional, em que este último é orientador de valores predominantes no exercício da docência. Porém, não deixaremos jamais de defender a importância de uma formação mais humana e colaborativa, sempre entendendo que

devo trabalhar a unidade entre meu discurso, minha ação e a utopia que me move. É neste sentido que devo aproveitar toda oportunidade de testemunhar meu compromisso com a realização de um mundo melhor, mais justo, menos feio, mais substantivamente democrático. (FREIRE, 2016, posição 427)

ARCE, A. Compre o kit neoliberal para a educação infantil e ganhe grátis os dez passos para se tornar um professor reflexivo. Educação & Sociedade: Revista do Centro de Estudos Educação e Sociedade, Campinas, v. 22, n. 74, p. 251-283, abr. 2001. Disponível em: Acesso em: 30 jun. 2020.

BEZERRA, C. Estudo e Virtude: Formação de Si no mundo e com os outros e as contradições da educação brasileira. Maceió: Grafmarques, 2019a.

_________. Sociologia do Trabalho Pedagógico e Formação Humana: crítica à economia política do trabalho pedagógico. Maceió: Grafmarques, 2019b.

_________. Professores desacorrentados na cé(lu)la de aula – leitura imanente: um método para resistir e emancipar. Maceió: EDUFAL, 2019c.

_________.; MOURA, R. M.; CARDOSO, F. F.; LIMA, M. P. Leitura Imanente: superação do analfabetismo funcional pela autogestão da Formação de Si. In: SANTOS, J. C. A.; TRAJANO JÚNIOR, S. B. Políticas e Gestão da Educação Brasileira em Cenário Alagoano. Meio eletrônico – Brasília: ANPAE, 2020.

BRASIL, MEC/CNE/CES. Diretrizes Curriculares para os cursos de Ciências Biológicas. CNE. Parecer CNE/CES 1.301/2001, Diário Oficial da União de 7/12/2001, Seção 1, p. 25.

CARLINO, P. Escrever, ler e aprender na universidade: Uma Introdução à Alfabetização Acadêmica. Petrópolis: Vozes, 2017.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.

__________. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013.

__________. O professor na sociedade contemporânea: um trabalhador da contradição. In: D’ÁVILA, C. M. Ser Professor na Contemporaneidade. 2ª ed. Curitiba: CRV, 2020.

DIAS, A. M. I. Ser professor(a) universitário(a): monitoria, política e programas institucionais de formação docente. In: Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 16ª ed., 2012, Campinas. Anais eletrônicos. Campinas, SP: Disponível em < http://www.infoteca.inf.br/endipe/geral/evento/. Acesso em: 10 maio de 2021.

FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

____________. Conscientização: Teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.

____________; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

__________. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

__________. Pedagogia da Autonomia. Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

__________. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 2016.

FREIRE, M. Educador. São Paulo/ Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.

_____________. Professor Reflexivo: construindo uma crítica. In: PIMENTA. S. G.; GHEDIN, E. (orgs.). Professor Reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

GIROUX, H. A.; SIMON, R. Cultura popular e pedagogia crítica: a vida cotidiana como base para o conhecimento curricular. In: MOREIRA, A. F.; TADEU, T. Currículo, Cultura e Sociedade. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2013.

__________.; MCLAREN, P. Formação do professor como uma contra-esfera pública: a pedagogia crítica como uma forma de política cultural. In: MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. Currículo, cultura e sociedade. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2013.

____________. Ensino Superior, para quê? Educar, n. 37, p. 25-38, 2010.

__________. Pedagogia crítica como projeto de profecia exemplar: cultura e política no novo milênio. In: IMBERNÓN, F.(org.). A educação no século XXI: os desafios do futuro imediato. 2 ed. Tradução Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2000.

____________. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.

___________. Poder e resistência na nova sociologia da educação: para além das teorias da reprodução social e cultural. In: GIROUX, H. A. Pedagogia Radical: subsídios. São Paulo: Cortez, 1983, p. 31-56.

HADOT, P. A filosofia como maneira de viver: entrevistas de Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2016.

LAHIRE, B. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2008.

MAKIGUCHI, T. Educação para a vida criativa. Rio de Janeiro: Record, 2002.

MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação no futuro. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.

________. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

________. Ensinar a viver: manifesto para mudar a educação. Porto Alegre: Sulina, 2015.

MOURA, R. M.  O professor reflexivo no ensino de Ciências. In: OLIVEIRA, M. M. (org.). Sequência Didática Interativa na Formação de Professores. Petrópolis: Vozes, 2013.

OLIVEIRA, M. M. Vivências e Ensinamentos: o que aprendi com Paulo Freire. In: OLIVEIRA, M. M. (org.). Formação continuada de professores: dialogando com Paulo Freire. Recife: EDUPE, 2021.

PERRENOUD, P. O trabalho sobre o habitus na formação de professores: análise das práticas e tomada de consciência. In: PAQUAY, L., PERRENOUD, P., ALTET, M.; CHARLIER, E. (Orgs). Formando professores profissionais. Quais estratégias? Quais competências? Tradução de Fátima Murad e Eunice Gruman. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2001.

____________. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.

PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2012.

_____________. Formação de professores: identidade e saberes da docência. In: PIMENTA, S. G. (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SÊNECA, L. A. Sobre a tranquilidade da alma. São Paulo: Montecristo, 2020.

UNEAL. Projeto pedagógico do curso de Ciências Biológicas. Programa de formação de professores: modalidade presencial. Universidade Estadual de Alagoas – Pró-reitoria de Graduação. Arapiraca, 2017.

Encontrou algo a ajustar?

Ajude-nos a melhorar este registro. Você pode enviar uma correção de metadados, errata ou versão atualizada.