Metadados do trabalho

Processos De Resistência, Transformação, Encontros Poéticos Com A Ancestralidade E Expressividades De Gênero No Espetáculo Chamem Todas As Marias

Sidney Leandro de Oliveira

Neste artigo são apresentadas discussões sobre questões de gênero em expressividades fluídas, sensíveis e performáticas. Por isso foi analisada a escrita do espetáculo Chamem Todas As Marias (construído no Projeto de extensão e grupo de dança, Aldeia Mangue, no curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Sergipe) e as reflexões de gênero no cruzamento entre o contexto e a própria voz na experiência de criação. Nesse sentido, o objetivo é mediar o debate acerca de tensões existentes sobre perspectivas nas performances de gênero no espetáculo com o grupo e a persona evidenciada na expressão homem-mulher-bicho-elementos da natureza. Um trajeto de resistência e de transformação, num sentido coletivo e aprendizado sobre equidade.

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Como citar este trabalho

OLIVEIRA, Sidney Leandro de. PROCESSOS DE RESISTÊNCIA, TRANSFORMAÇÃO, ENCONTROS POÉTICOS COM A ANCESTRALIDADE E EXPRESSIVIDADES DE GÊNERO NO ESPETÁCULO CHAMEM TODAS AS MARIAS. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/24-processos-de-resist%C3%AAncia-transforma%C3%A7%C3%A3o-encontros-po%C3%A9ticos-com-a-ancestralidade-e-expressividades-de-g%C3%AAnero-no-espet%C3%A1culo-chamem-todas-as-marias. Acesso em: 16 out. 2025.

PROCESSOS DE RESISTÊNCIA, TRANSFORMAÇÃO, ENCONTROS POÉTICOS COM A ANCESTRALIDADE E EXPRESSIVIDADES DE GÊNERO NO ESPETÁCULO CHAMEM TODAS AS MARIAS

“Pooc, pooc, poouc!

(Grito)

Eu sou dor, dor e desejo

Eu trago o desejo por baixo de minhas saias

Sou dor, dor e desejo

(gargalhadas)

Eu trago as Marias por baixo de minhas saias

(Grito) [...]”

(texto incluso no espetáculo Chamem Todas as Marias)

 

 

Aqui estou calmaria-solidão, ali desaguo na ventania-destruição, retorno, avanço, paro e recuo. Grito e rabisco: me dizem aqui, me colocam ali! Quanto desrespeito. No movimento, não cesso aqui, não cesso ali. Me faço, refaço, destruo o avesso. A encruza me convida a gritar, em atos que convocam coletividades, nela me faço eu-nós. Emboladx[1] na trama da vida, me espelho, sinto e reflito. A ancestralidade me toca, me vibra, me move a olhar atravessamentos e pertencimentos. Nela os imaginários são férteis, se reviram, enlaçam gritos por justiça.

Nos segredos e macumbas me refaço, avessx, sem saber, sem reter precisões. Esculhambo na virada a tamanha desumanidade que me enterrou entre as prisões binárias brancocêntricas. Não sou dali, nem daqui, estou passagem. Sou molhadx, escorregadix, sou passagem que afronta e reclama vida. Sou dança que, apertada pela norma, escorre pelas frestas, pelos orifícios. Em pedaços me “desaquendo”, me transformo num vício contínuo, escorro pelas vielas ao descobrir-me na multiplicidade de outros contornos. Prazer, eu-corpo continuarei perturbando, recriando ao reclamar vida, que complexa, seja reverberada e transformada continuamente no prisma da equidade.

Nesses versos e com a epígrafe compartilhada no início desse texto, apresento-me com imersão nos gostos lascivos, vividos por mim no processo artístico que resultou no espetáculo Chamem Todas as Marias (Aldeia Mangue/UFS). Nele estive homem-mulher-bicho-elementos da natureza. Os entrelaçamentos resultantes dessa imersão ainda reverberam sobre meus desejos.

Neste escrito enfoco reflexões advindas dessa imersão e das inquietações que foram me revirando em poéticas com os estudos de gênero. Atravessando perspectivas étnico raciais e expressividades na cena de dança, em extensão, com os fazeres-saberes da vida e dos atravessamentos com as ancestralidades nas culturas Negras, Indígenas e com a comunidade LGBTQIA+.

Na trama que aqui desenvolvi, trago um recorte da dissertação CORPOS DISSIDENTES NA ENCRUZILHADA: O ENCONTRO POÉTICO COM MULHERES TRANS, TRAVESTIS E PROFISSIONAIS DO SEXO (PPGDANÇA UFBA), orientada pelo Prof. Dr. Fernando Ferraz (UFBA). Lidei com um fazer-escrever em arte, um tipo de escrita sensível, que mesmo aparando suas arestas para a inteligibilidade racional evocada na primazia da palavra escrita, continuará escorrendo por entre as lógicas que a tentam normatizar. Uma escrita estruturada entre entrevistas e memórias, juntamente com narrativas de falas do Espetáculo Chamem Todas as Marias. Uma escrita, por vezes, espiralada com esse fazer artístico

Através dela, eu falo com/para todos os orifícios, emergindo estéticas e devaneios com espiraladas expressões. Danço nos meus escritos e não me contenho aos enquadramentos de uma escrita linear, certo de que não a domino, e nem busco a totalidade dessa percepção, estou sempre em aprendizado. Nestas páginas, lanço os vestígios da efemeridade do movimento que em mim floresceu e que, no presente, continua a desabrochar sensibilidades reflexivas, mediante atritos entre memórias que em mim se cruzam nas criações num caráter fluído.

 

Revisitando espaços no tempo, ciscando memórias nas transversias de uma galinha-galo

 

Assim, olhar para a galinha sua é olhar ela enquanto potência cênica, de diferentes possibilidades de criação. Ela permite transitar por diferentes planos. Não paramos para pensar se ela é fêmea ou macho. Ela é ambos, porque ela contém matéria do que ficou supostamente convencionado do que seja feminino e masculino, assim como o macho e a fêmea. [...] Porém, nessa discussão cênica-criativa, é se alimentar de ambas as possibilidades. Então vejo que a galinha transita por essas possibilidades. Ela é livre para poder brincar, ciscar, se dependurar na cerca e ora cantar para um lado, ora cantar para outro lado. (Fala concedida por Bianca Bazzo em 08-01-2020)

 

            Nesta fala, a Professora Mestra Bianca Bazzo2 refletiu sobre a constituição do personagem criado em laboratório, sob a sua direção, resultante de suas mediações nas nossas ações, alavancadas por sua condução e mobilização dos nossos imaginários. A sua fala indicou sobre o lugar existencial dessa experiência na expressão de gênero sem limites definidos; mas que, de certo modo, ou por complexidades espiraladas, revisita lugares de expressão instituídos socialmente pelas condições binárias de gênero. A professora fez referência aos contornos da expressão de gênero sempre em deslocamento desses referenciais, os quais povoam suas performatividades, se alimentando das duas potências.

          É fato que todas as considerações por mim atribuídas localizam-se nesse processo de criação enquanto intérprete. Desse lugar, vejo as relações tecidas no grupo Aldeia Mangue na qual, em vários momentos, se reproduziram falas e atitudes com entendimentos binários, em todos os participantes do grupo. Percebi também a identificação circunscrita do gênero com a genitália e com padrões delimitados sobre a maternidade.

         O texto segue com mais dois relatos referentes às percepções dos aldeanos com a Galinha, com eles atravesso a reflexão com os estudos de gênero. Vejamos:

 

A galinha no meio do bando, entre laboratórios exaustivos e descobertas. Preciso confessar que ela era a que mais chamava minha atenção, com aquele zuadeiro todo, e sons que reproduzia. Por ser um animal de gênero feminino, eu não conseguia rotular. Ela poderia ser quem quisesse ser no meio do bando. Quando a galinha se encontrava numa saia cor de uva longa, conseguia roubar minha atenção toda para ela, com pés aterrados ao chão, dedos que se espalhavam e viravam garras, com unhas cumpridas. Começava a rodopiar, dando vários giros no centro da sala, muitas vezes pareciam ser intermináveis juntamente com seus cacarejos altos e descontrolados. Adorava escutar a Bianca Bazzo gritando "corre, pega a galinha, pega a galinha". Fazendo com que a galinha e todo o bando ficassem ouriçados, correndo para lá e para cá! Saudades eternas terei da galinha. (Fala concedida por Livia Dantas em 09-01-2019)

 

        Com a colocação acima, Livia Dantas propôs pensar sobre as energias constitutivas das expressividades e das identidades pelo ideário feminino, experienciados com os estudos da ancestralidade na cena de dança. Nos proporcionaram um lugar de afloramento dos desejos e percepções, de como estamos e queremos estar. E mesmo com as tensões das condições essencialistas presentes na sociedade e em nós sobre as identidades e expressividades de gênero, esse ideário aponta para mim um lugar de gestação de possibilidades expressivas e de sensibilidades que extrapolam e até mesmo explodem as expectativas das normativas de gênero.

             É cabível pensar que essa condição de gestação de possibilidades fluídas emerge, também, num atrito permanente com as lógicas binárias, em um processo de reprodução e explosão de seus atos na performatividade. Tal pensamento foi empregado na presente construção textual, como a teórica Judith Butler (2013) indica: “[...] é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. E, na medida que, ela adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição.” (BUTLER, 2013, p. 166). Essa definição corrobora com a perspectiva de que os processos imantados pelo desejo também são sugestionados pela repetição da norma nos percursos dos seus fazeres de gênero. 

               Butler (2019) nos adverte também sobre a não existência de uma total autoestilização, ou seja, o desejo operado na subjetividade não é alheio ou independente às normas condicionantes. Nas palavras da autora:

 

Entretanto, trata-se de uma infelicidade gramática ter que dizer que existe um “nós” ou um “eu” que faz seu corpo, como se existisse um agente desincorporado, anterior ao próprio corpo, que o dirigisse. Seria mais apropriado, acredito eu, que tivéssemos um vocabulário em que fosse possível trocar a metafisica essencial da relação sujeito-verbo por uma ontologia de particípios presentes. O “eu”, ao mesmo tempo que é seu próprio corpo, é também, necessariamente, um modo de incorporação – onde aquilo que é incorporado são possibilidades. E novamente a formulação gramática disponível abre espaço para a confusão, porque as possibilidades incorporadas não são fundamentalmente exteriores ou antecedentes ao processo de incorporação em si. Enquanto materialidade intencionalmente organizada, o corpo é sempre uma incorporação de possibilidades, tanto condicionadas quanto circunscritas em convenções históricas. O corpo é uma situação histórica, como afirmou Beauvoir, e é também uma feitura, uma dramatização e uma reprodução de certa situação histórica. (BUTLER, 2019, p. 216).

 

            Com ela compreendo e situo as diferentes intensidades das modelações que o jogo de relações poéticas demanda no estar cotidiano e nos espaços de criação (não vistos como dissociados do primeiro, mas como extensão deste). Esse olhar se debruça sobre implicações entre as normas e as suas possibilidades de transformações e rompimentos. Os caminhos que os desejos vibram em nossas materialidades, numa relação diversa de presenças, estão friccionados no processo de incorporação que, conforme as diferenças históricas dos sujeitos e das relações sociais, “condicionam e limitam suas possibilidades” (BUTLER, 2019, p. 216). Assim “[...] gênero, então, como um estilo corporal, um ‘ato’, que é intencional e performático, em que ‘performático’ tem ao mesmo tempo uma carga ‘dramática’ e outra ‘não referencial’” (IDEM); ou seja, os fazeres de gênero, quando alocados na interação de variáveis presenças e interações, equacionam-se entre processos de repetição e subversão, e podem maximizar determinadas imagens nos sujeitos ou desestabilizar as referências que os códigos dessas normas acarretam. A autora pontua que a repetição dos padrões de gênero se faz como um processo ficcional e perdura nas percepções, mesmo quando extrapola as texturas corporais coercitivas com outros traços que não correspondem a esses lugares fixos.

 

Bom, como eu percebo a construção dessa galinha.  Na verdade, eu perdi os primeiros laboratórios, e quando cheguei eu tive, estou falando de mim, bastante dificuldade de encontrar esse animal que estava em mim, que animal é esse?  E a cada momento eu ficava gretando (sic) dos outros, olhando, como cada um estava sendo um animal. Eu nunca tinha tido essa experiência de pensar em ser um animal. Aí eu fui vendo os animais todo ganhando corpo de fato, e me deparo com essa galinha. Essa galinha do ponto de vista, pensando no animal, o que tem de mais animalesco dentro de você, quebrando todos os clichês, paradigmas, que a gente tem de uma forma equivocada sobre a galinha, como uma coisinha qualquer. Eu vi uma galinha que marcava bastante o território, ciscava marcando o seu território, e de muita força, de muita potência, de muita energia. Que conseguia espantar os animais maiores, inclusive, literalmente pela cadeia alimentar ela seria devorada, mas os outros animais ao se aproximarem dessa galinha se afastavam com medo. Do ponto de vista pejorativo, não vou nem dizer se é de gênero, não tenho propriedade para falar disso, a galinha associada ao papel socialmente construído do feminino, como aquela ousada, atrevida, assanhada, putona. Aí eu fui vendo um Sidney-galinha, de fato galinha, galinhando, ciscando bastante, mas que isso, é coisa do feminino e masculino, é um misto tão grande, que as vezes eu ficava na dúvida se era um galo. Mas na hora que ela era provocada, e abria aquela saia e rodava, ela dizia para que veio, quem mandava naquele galinheiro era ela, quem mandava naquele terreiro era ela. Então em relação aos estudos de gênero, eu acho que é um afronte, uma ousadia, em se pensar num animal que é associado a forma negativa feminina, e você com toda a sua virilidade masculina traz esse arquétipo fêmea para dentro de você, como muita propriedade artística. Que inclusive a galinha rouba a cena de todo mundo, nós ficamos pequenos perto de você, e o público dá esse feedback, o quanto que é forte essa galinha, forte mesmo de potência e de marcar território. Então que a gente respeite, mas as galinhas que estão aí nas ruas, nas encruzilhadas. (Fala concedida por Professora Jussara Tavares em 12-01-2020)

 

            Com a narrativa da Professora Jussara Tavares percebo que, como extensão da vida, num potencial de enraizamentos, esses caminhos criativos tensionaram-se como a própria vida, sendo ela mesma nos laboratórios, sem estabelecimento de compreensões cínicas/binárias na cena. E, ainda que lugares binários povoassem nossas compreensões de gênero, até sobre nossas singularidades, tivemos um estado de experiências complexas e, de certo modo, contraditórias ao que pensamos e reproduzimos de pensamento sobre as expressões de gênero. É perceptível que não estivemos como um ente/personagem distante do que estivemos no cotidiano, permanecemos nessa artem numa identidade poética de relações complexas entre impasses e alegrias, com as nossas próprias jornadas diárias.

 

Encruzas e saberes poéticos no Aldeia Mangue

 

          Durante todos esses anos que ocorreu a imersão, inquietações não faltaram, e hoje se traduzem nos seguintes questionamentos: como as poéticas se desenrolavam? Como as poéticas se cruzavam e encantavam no decorrer dos processos? Ao perceber que provavelmente não tivemos um foco para o produto, definido desde o início (se é que é possível localizar), tenho a sensação de que estávamos engajados em múltiplos processos nos laboratórios, afetando nos deslocamentos, os quais nos desestabilizavam a cada encontro e mediação.

            Nos aprofundamentos desses processos, nos quais também pude amadurecer, tive a oportunidade de colocar “em xeque” crenças e saberes preconcebidos. Me deparei comigo mesmo, com todos os medos, os meus desconhecidos, expressando muitos deles também. Alguns se arrastaram para as cenas, mas outros ficaram nas memórias, sabores e dores destes laboratórios. Não consigo identificar se foram sanadas, mas atravessaram as bordas da expressão de minha pele como potencial de cura e poesia.

                Lembro-me como se tivesse sido ontem, estava eu com os demais componentes do Aldeia Mangue numa das salas do Departamento de Dança da UFS em 20163, era uma terça-feira, dia de práticas laboratoriais com a Professora Bianca Bazzo, e estive a experimentar movimentações e sensações em cima de um galho, com o qual já tinha trocado afetos e poéticas em outras criações. Eu o tratava conscientemente como um ente, ele estava como uma imagem simbólica do orixá Omolu. Eu e o galho estávamos localizados em um dos cantos diagonais da sala. Em deslocamentos sobre o galho, ocorriam as transformações em galinha, no qual me encontrava entre aspectos sensíveis entre imaginários humanos e animais.  Eu, de cima do galho, comecei a gritar e chorar por Maria “– Mariaaaa, Mariaaaaa...”, ao mesmo tempo que minhas mãos não paravam de torcer a bermuda na região da cintura, como se fosse ficar sem ela em cima do galho. A sensação que tenho na memória é de um grito desesperado por alguém que se foi, que foi levada a óbito.

              Neste mesmo dia, tenho lembranças de sensações e movimentações que passavam por um estado de sensualidade, eu soltei os cabelos, ao passo que me encontrava nas caminhadas, cada vez mais sinuoso. Com a língua saltando de dentro da boca, a contornar os lábios, eu estava me deliciando, parecia um ápice de gozo.

            Ao estudar o método do Bailarino-Pesquisador-Intérprete, de um ponto de vista teórico, pois não fui aluno de sua idealizadora Graziela Rodrigues, mas estive com Professores que viveram os caminhos de suas metodologias. Durante as mediações da Professora Bianca Bazzo, fui informado que os princípios desse método atravessam a nossas experiências, eles estão como bases reflexivas e mecanismo para as ações e falas de mediações nos processos de aula e experimentos. O método:

 

apresenta em seu eixo de ação uma visão do que seja a pessoa, na condição de bailarino, como pesquisadora de si mesma no confronto com determinadas realidades, que propiciam-lhe viver os papeis que emergem destes contatos. (RODRIGUES, 1997, p. 147)

                       

            Ao estudá-lo foquei sobre a compreensão integrada do sujeito, enraizado nas suas histórias e ancestralidade, e que tem a si como primeira referência para as escritas e expressividades. Processo que nos arrasta a um enraizamento estrutural de nossas ações e nossas particularidades existenciais, ao contexto de nossas famílias, antepassados e demais percursos envolvidos com as manifestações populares de danças.

            Nos laboratórios destes períodos, houve o entrelaçamento de diferentes referenciais simbólicos, remetidos às histórias dos participantes e as relações com às pessoas interlocutoras, criadas entre estes no “coabitar com a fonte” (RODRIGUES, 1997). Graziela diz que a “sua essência reside na inter-relação dos registros emocionais que emergem da vivência na pesquisa de campo com a memória afetiva do próprio intérprete” (Idem, p. 147). As experiências de relação com o campo não foram extensas, porém as relações que tive com o contexto de tradições e culturas ancestrais perduram como facetas intensas de interlocução ressoando na jornada que travei até o mestrado.

               Nesses espaços de criar, lembro que tivemos as primeiras práticas focadas na questão sobre quem éramos. Assim, atravessamos os laboratórios e as histórias pessoais, os imaginários dos bichos e paisagens das experiências de campo. Entre os anos de 2016 e 2017, percebi meu imaginário impactado com as relações que se constituíram nas vivências estabelecidas entre pessoas dos terreiros de candomblés, e com a comunidade indígena Fulni-ô, em Águas Belas – Pernambuco. Segui nessa trama, envolvido no coletivo Aldeia Mangue, aprendendo como nos frisa Dodi Leal (2018)

[...] que um dos principais recursos étnico-raciais dos povos branco sobre os povos indígenas e afrodescendentes no Brasil refere-se à higienização. É sintomático do processo embranquecedor que fundou este país, e que continua com vigor nos tempos atuais, que a condição de limpeza fosse sinal de pertencimento social. Sobretudo quando, desde o século XIX, as vilas começaram a aumentar e se urbanizar. A condição de ser negra/o ou ser índio/a neste país foi historicamente associada a sujeira. Ora não nomear-se étnico-racialmente a partir das matrizes negras e indígenas foi estratégia de sobrevivência de muitos grupos populacionais que viram como único recurso de luta para inserção profissional a adesão aos padrões de civilidade hegemônicos. Ser civilizado/a é categoricamente uma maneira de negar-se enquanto bárbaro/a, e por sua vez, à animalidade subjacente à barbaridade. (LEAL, 2018, p. 148)

 

            Seguimos desmontando em nós esse projeto colonial de embranquecimento/higienização a partir de mergulhos poéticos na própria ancestralidade, a qual constitui as histórias de nossas famílias e ao que pulsava nos entrelaçamentos de nossas peles. O desejo de reconhecer de perto essas raízes e recriá-las nos sabores que foram excitados em nós.

 

 IMAGEM 1 - Aldeia Mangue e Aldeia Fulni-ô – Xixiakla. Arquivo do Aldeia Mangue, agosto de 2017.

               No registro fotográfico acima: Sidney Oliveira, Rohana Fonseca, Brenda Maia, Sheila Karine, Jussara Castro, Kely, Janailza Elizabete, Prof.ª Bianca Bazzo, Janailza Elizabete, e membros da Aldeia Fulniô – Xixiakla. Dos demais Aldeanos que atravessaram os processos de Criação do Chamem Todas as Marias temos: Joélio Moura, as professoras Jussara Tavares, Aline Serzedello e Lívia Dantas. Nomes importantes nesses processos, por isso não quis deixar de registrar.

            Em retrospectiva, hoje entendo que os referenciais bibliográficos que abordam sobre as ancestralidades negras e indígenas, as vivências e visualidades com as mulheres trans no centro de Aracaju – SE, tiveram um lugar especial no percurso das minhas percepções criativas nesses laboratórios.

             Também considero impactante outra prática metodológica concebida pela Professora Lara Machado Rodrigues, a mestra de capoeira da Professora Bianca que, em muitos momentos, em sala de aula, referiu sobre a Metodologia intitulada por: A dança no Jogo da construção poética, na qual ressalta o aspecto de inclusão, aprendido com muito atrito em nossas experiências, e que Machado (2017) torna evidente e com foco visa:

 

estimular os corpos a se reencontrarem nas pesquisas sobre a vida e a criar laços de humanidade, mediante o encontro com o outro e consigo para, finalmente, criar poesia. Enfim, na conquista de si ou no partilhar com o mundo, construir formas de resistência. (MACHADO, 2017, p. 28)

           

             Assim, ela traz características que fazem sentido com as descobertas que tive, desenvolvidas a partir do encontro e do reconhecimento das diferenças e modos performativos com as danças em todos que estiveram ao redor de cada um de nós “bando Aldeiano”. Como no percurso de Lara Rodrigues, de sua metodologia, sinto que nossos trajetos dos afetos se aproximaram, nas realizações poéticas que se construíram a partir dos fazeres mobilizados com as memórias das experiências, tivemos (e temos) a possibilidade da equidade entre as diferenças e respeito aos ambientes ecológicos, transbordando sensibilidade com eles. Nos entranhamos de carinho, mas muito nos arranhamos; contudo, sempre aprendemos sobre a simplicidade do viver e olhar as novidades por diferentes ângulos, de acreditar no impossível e de visualizar o belo nos espaços e modos subjetivos que a muito foram e são rejeitados socialmente.

            Entendo, com o estudo da metodologia proposto por Machado (2017), que as nossas identidades são atravessadas por valores pertencentes às culturas tradicionais afro-brasileiras e procedimentos artísticos imergidos dos modos performativos cotidianos, que se fizeram presentes nas tramas dos movimentos dançantes (MACHADO, 2017, p. 28). Caminhos nos quais aprendemos a desenvolver uma consciência.

          A autora também argumenta que os mitos servem de percurso e atravessam as danças e os imaginários criativos nas experiências dos intérpretes. Durante as pesquisas, esses mitos4 são elementos importantes para as elaborações poéticas e têm valor primordial no cruzamento com os movimentos simbólicos dos contextos. A Professora Bianca Bazzo falava muito sobre isso, de trazer para as cenas as crendices que já havíamos apreendido desde a infância. Consequentemente, nos processos dos laboratórios e dos campos lidávamos com a presença de mistérios e encantamentos, bem como criávamos uma ritualidade própria que nos ajudava acessar a presença das personas que nos acompanhavam e faziam parte de quem somos.

            A metodologia do processo descrito acima teve foco nas relações entre os evolvidos e seus “diálogos corporais”, como uma complexa teia de sensibilidades e movimentos que vão emergindo através da curiosidade.

            Realizamo-nos artisticamente por meio do jogo, em que suas referências também vieram do contexto da capoeira que:

                                                                                                      

é arte/jogo de defesa pessoal afro-brasileira, constituída por complexa e diversa linguagem técnica, conteúdos históricos, coreográficos, teatrais, musicais e poéticos, que vem se renovando na dinâmica de nossa sociedade. Acima de tudo é uma expressão corporal de significativa representação sociocultural da Bahia, que se expandiu pelos cinco continentes. (CONRADO, 2015, p. 206)

 

            Essa manifestação cultural de resistência e continuidade foi uma prática que me mobilizou a experimentações e recriações, com desdobramentos metafóricos, em minhas ações na dança, por meio da improvisação.  A capoeira esteve como espaço para estudos e treinamentos corporais desde as pequenas práticas no período de formação do ensino fundamental, no Colégio Estadual Professor João Antônio Cesar em Tobias Barreto - SE, de lá me encantou, a partir das aulas do componente de Educação Física, ministrado pelo professor José Wildsom. 

            Na Universidade, os estudos corporais continuaram inicialmente com o componente optativo – Elementos artísticos da capoeira aplicados à dança, ministrado pelas Professoras Mestras Edeise Gomes e Bianca Bazzo, em períodos diferentes. No Subprojeto de iniciação à Docência (PIBID/Dança/UFS), sob a coordenação da Professora Mestra Jussara Tavares, tive a oportunidade de viver um processo de criação no qual os elementos da capoeira fizeram parte do espetáculo Água de Cabaça. A continuidade com o Grupo Molas de Aracaju – Sergipe, na maestria de Mestre Lucas, e do projeto de extensão Capoeira Mulher, coordenado também pela Professora Mestra Bianca Bazzo, se constituíram como espaços para treinamento técnico, durante os períodos de imersão do processo de criação.

            Nas partilhas experimentais do Aldeia, jogamos com nossas diferentes subjetividades, a partir dos nossos diferentes “eus”, nossas multiplicidades, no objetivo de “estimular os corpos para o desconhecido, abdicando temporariamente aquilo que sabem, a fim de criar um espaço disponível dentro desse mesmo corpo, fomentando novas vivências e descobertas” (MACHADO, 2017, p. 69). Tivemos um processo instável, vejo hoje que estranhamos nossas sensações comuns e nos arranhamos com as que foram surgindo. Nos apartamos do que pretensamente achamos que sabíamos, e do que tínhamos de sentido no dançar até aqueles momentos, fomos mobilizados a desacomodar-nos.

            Entendo o processo de criação instaurado como uma dinâmica similar à ginga, cujo jogo de relações, a partir de Lara Machado (2017), é compreendida como ação de ajustamentos dos movimentos nas interações dos corpos, subjetividades, histórias e afetos. Esse jogo se confirma sinuosamente em enfrentamento e resistência às normas que agem como embate aos imaginários, em imposições externas às nossas experiências. A autora Machado (2017) diz que nesse percurso o corpo passa por uma etapa de reconhecimento, com os diferentes modos de estar das materialidades presentes, dizendo existir uma possível paridade com a ideia de “conflito” em que:

 

O corpo se desdobra em partes e se recompõe o tempo todo. Esse corpo mantém-se atento e ao mesmo tempo, descontraído: é capaz de mover-se para todo o espaço, em diferentes direções e níveis, virando de cabeça, recuando, avançando, torcendo-se, procurando espaços vazios, perdendo e recuperando seu eixo, por meio da movimentação da ginga e dos seus desdobramentos. (MACHADO, 2017, p. 68)

 

            E, nesse ponto, os desdobramentos da ginga revelam para mim sobre a multiplicidade de caminhos e formas de resistências que foram sendo afirmados subjetivamente, durante nossos encontros de experimentação e conforme as fricções, causadas através dos estímulos das falas e proposições dos movimentos indicados nas mediações. As experiências também nos carregaram para muitos lugares, focos de percepção do que estávamos fazendo, os caminhos foram multiplicados, os espaços tomaram cheiro e outras cores, à medida que nossas memórias foram aguçadas. Nos cruzamos sensivelmente.

            Muitas das minhas perspectivas de mundo foram se reconfigurando, virando ao avesso. As compreensões de mundo viraram de cabeça para baixo. Existiram momentos de medo, em que recuei, tive cautela, mas desejei conhecer mais de mim, do que me foi negado, apagado das experiências culturais. Sinto que todos avançamos na criação e na vida, mas cada um dos integrantes seguiu desbravando suas próprias percepções. Nesse período, para parte de nós, passamos a nos relacionar com contextos nunca imaginados anteriormente. Desses espaços, várias composições foram se configurando e sendo apresentadas de diferentes modos, até que chegamos ao processo chamado de Chamem Todas as Marias.

 

 

[Imagem local removida]

IMAGEM 2 - Cena da narrativa da bruxa e seus desconhecidos. Apresentação Aldeia Sesc 2018. Aldeia Sesc de Artes, Quadra da praça do Conjunto João Alves/ Socorro. Fotografia: Daniel.

 

        

             Uma dança e uma experiência que acredito ter nascido por meio do traduzir cosmopolitamente os fatos vividos com os contextos afro-ameríndios, e, principalmente, com os contos e danças dos Orixás, na perspectiva da clivagem de diferentes modos de conhecer.  Criamos consciência sobre os saberes e fazeres que nos foram negados e invisibilizados diante dos cárceres das monoculturas legitimadas pelo pensar ocidentalizado, colonizador (CORVALÁN, 2012).

            Tenho refletido que, poeticamente, o processo e composição final desse espetáculo mostra sobre as lidas e vidas, das culturas e subjetividades frente aos abusos sofridos na história de mulheres e homens, assombrados pelo machismo e patriarcalismo. Há um caráter interseccional que envolve questões de raça, gênero e classe econômica. Sinto, toda vez que o dançamos ou ao assistimos, por meio de mídia de vídeo, que trazemos à cena nossas dores, desejos e infelicidades que dizem diretamente sobre os modos falocêntricos de perceber, de estar e sujeitar nos relacionamentos, nos processos de educação elaborados como doutrinação e higienização das diferenças que possuímos.

Dançamos também em formato de círculo, nos posicionando lado a lado, ombro a ombro, com movimentação circular anti-horária, numa marcação dos pés, em pisadas, frente e atrás alternadamente. E, pisando acentuadamente com o pé direito, com mais força no chão, Chamamos Todas as Marias, friccionadas pelos gozos e choros. Chamamos as Virgens, as Dores, Padilha, Eulália, a Maria dadeira, Tomba-homem, Maria de todos os amores e demais que se multiplicam nas encruzilhadas, nos caminhos, nas ancestralidades que nos acompanham. Podendo ser reverenciadas como a corte das Pomba Giras, elas trazem todo o tom de enfrentamento ao patriarcado, rompendo com as lógicas binárias impostas pelas culturas ocidentais (SIMAS e RUFINO, 2018).

Essas Marias, “as doces, as sonsas, as impuras, as desajeitadas”6, descem em estripulias nos segredos e volumes rodopiantes da saia de uma galinha-galo; e seus risos, cacarejos e gritos, estridentes, lascivos e desdenhosos. “Elas vêm por baixo de minha saia, quando venho de lá do alto da serra, da serra da Sepocoia, com meu encante nefasto, encruzilhado e lascivo nos saberes da vida, do amor”.

            Dançamos encruzadxs as percepções friccionadas afetivamente com as nossas subjetividades inerentes às materialidades corporais performativas de animais, ancestralidades, culturas negras e indígenas, e do que socialmente tínhamos de identificação, do masculino/feminino e das leituras de mundo do ser homem e mulher. Apesar de a professora Bianca Bazzo me afirmar estar pouco envolvida nos estudos de gênero, se percebendo “leiga” nesses quesitos, sua direção foi importante no desenvolvimento do processo.

 

Difícil falar sobre gênero quando me sinto bem leiga no assunto. Mas enquanto trabalho que realizo sobre o animal de cada um, sobre o se alimentar simbolicamente de sua força, de suas características, adaptabilidades no ambiente, entendo que há uma força feminina e masculina atuante ao mesmo tempo. Ora um se sobressaindo mais que o outro a depender da situação provocada. Mais ou menos a questão do anima e anime oriental. As duas partes que compõe uma pessoa. (Fala concedida por Bianca Bazzo em 08/01/2020)

 

           Rememoro a sensação que também dançamxs amarradxs a estereótipos nas maneiras de pensar o masculino e feminino, ainda que nossa performatividade na cena mostrasse aspectos relacionados com as performances trans, fluídas, que não são muito reconhecidas, percebidas conscientemente, com possibilidade de própria existência, na experiência e performances de gênero pelo grupo nessa arte vida. Com o tempo, com nossos atritos e análises de gênero sobre o espetáculo, restringidas a poucos participantes, algumas noções foram reconfiguradas. É perceptível o quão precisamos nos rever enquanto bando, enquanto pesquisadores artistas, sobre as maneiras de perceber essas questões nos nossos relacionamentos e do nosso estar, principalmente sobre os percursos das nossas poéticas e estéticas da cena com as danças ainda por virem.

            Foi uma experiência muito importante, a partir da perspectiva da extensão na universidade e do contato contínuo com outros espaços de formação dos nossos saberes, houve uma aprendizagem tácita sobre essas culturas que nos envolvemos, reveladas com o próprio espaço de suas manifestações culturais, diferentemente do ensino resguardado ao espaço da sala de aula na universidade. Frequentemente o ensino formal na Academia se revela na mera transferência dos saberes formais, através de projeções de falas e das amostragens, com reproduções dos conteúdos e, no nosso caso, das danças, a partir do entendimento focado pelo olhar e interpretação cinestésica do professor que media o momento. Em contrapartida, o processo que se abre ao diálogo com a comunidade revela uma transformação, complexa e dinâmica entre símbolos, sentidos e significados, em recepção e fricção com os dogmatismos universalizados no trato aos corpos, gêneros, sexualidades e religiosidades.

            Encontrei-me imerso a questões simbólicas e conceituais do corpo em exu, vislumbrando na criação cada cruzamento de caminhos, de perspectivas sensíveis dos gestos e das ações no mundo como lugar de experiência encruzilhada, que cliva os sentidos no atravessamento dos encontros. Reverencio Exu nessa travessia como “princípio dinâmico fundamental a todo e qualquer ato criativo.” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 9), cujos sentidos percorrem nesta trama estética, em movimentos de continuidades-descontinuidades.

 

IMAGEM 3 - Cena da narrativa da bruxa e seus desconhecidos, parte 2. Apresentação Aldeia Sesc 2018. Aldeia Sesc de Artes, Quadra da praça do Conjunto João Alves/ Socorro. Fotografia: Daniel.

 

           O nosso dançar se transforma, à medida da interação com o tempo e espaço das apresentações, e a criatividade expande-se entre variáveis possíveis de saber, de relações, e de mais interatividades nas suas realizações. Pai Junior7, ao ter prestigiado uma das apresentações desse espetáculo, no Alaroke, em dezembro de 2018, corroborou posteriormente com uma fala sobre a dança, evidenciado sobre o caráter vivo com a percepção no ambiente:

 

Então, é nessa perspectiva o, a performance, o espetáculo que vocês apresentaram aqui, que chama Todas as Marias, isso é fantástico porque lê, dá essas múltiplas possibilidades de você entender esse corpo e principalmente dentro de um espaço físico que vocês têm que dar conta. É, geograficamente e geometricamente que é uma disposição, que faz parte de uma coreografia, espontânea muitas vezes, ajustável, adequável, mas ao mesmo tempo tem algo ensaiado, educado, e mais, ao tempo todo sendo reconstruída, e os outros precisam fazer a leitura de corpo do que estar experimentando e não perder a conexão. E o que estar experimentando também não perder a conexão com o conjunto e a forma que a apresentação no Alaroke foi, um espaço singular como todos os outros que vocês e o espetáculo desenrolou como se tivesse feito ali todo uma vida. (Pai Junior - Saginandji, terreiro Alaroke, entrevista concedida em 25-01-2019)

 

            Com essa fala de Pai Júnior, compreendo que esse espetáculo, em suas diversas edições de apresentação, pode ser analisado com o seguinte princípio de Lara Machado (2017), no qual:

 

A dança elaborada tem o intuito de estar viva, de forma que os trabalhos se apresentam marcados de peculiar originalidade, surpreendendo muitas vezes, o próprio intérprete, que irá reviver em cena sua criação artística, quase sempre de forma diferente e única. (MACHADO, 2017, p. 77)

 

            A cada apresentação, o jogo das interações poéticas é vivido em novos tons e texturas sensíveis, evocando a gestação de possibilidades, a partir das demarcações já construídas nas cenas e nos imaginários que se alastram das experiências nos laboratórios e dos contextos vividos no campo e na vida cotidiana dos intérpretes envolvidos na trama.

            Acredito, pois, (e é algo também expresso nas palavras de professora Bianca Bazzo) que não tivemos a intensão de uma reprodução objetiva, que se corresponde diretamente com as formas dos referenciais simbólicos, os movimentos, as ações e gestos performados pelas pessoas encontradas no campo. Compreendo que esse procedimento não reprodutivo se assemelha com as operações próprias da “observação participante”, como aconselha o Antropólogo Tim Ingold (2016), ao tecer uma crítica à etnografia:

 

Pois os passos da observação participante, como os da própria vida, dependem das circunstâncias, e não avançam rumo a um fim preestabelecido. E envolvem modos de levar a vida e de ser por ela levado, de viver uma vida junto com outros – humanos e não humanos – que reconhecem o passado, atentam para as condições do presente e se abrem especulativamente a possibilidades futuras. (INGOLD, 2016, p. 409)

 

            Aprendi a me perceber no campo, numa relação horizontal e dada às intersubjetividades, e construir-me a partir das interações, reeducando as minhas formas de compreender os contextos. Mais que o fenômeno do dançar, restrito aos produtos artísticos e seus movimentos e performances, sinto que continuamos aprendendo sobre a necessidade de sabermo-nos com o tempo, o diálogo e a equidade.

 

Amarras para as continuidades

 

            Nesses afloramentos, das palavras, nas quais me debrucei em bordados e conexões, pude contar o desenrolar dessa trama espiralada que foi o Chamem Todas As Marias e o Aldeia Mangue (UFS). A escrita evocou em mim a memória de um passado próximo, e tecida nas reflexões com outros companheiros e companheiras, elas provocaram-me a dedilhar que nossas vidas e performances de gênero, são labirintos de explosões, das quais podemos ter paramentos de consciência, mas não conseguimos controlar as mudanças e desdobramentos que se desenvolvem. Na ginga resistimos, reivindicamos nossa presença. Porém, nesse jeito que o corpo dá, nos transformamos também, esse último verbo conjugado me traz a sensação de um acontecido com lastros, lacunas e frestas no hoje, com gosto de sempre presente.

             Reflito impulsionado por Butler (2019) que os imaginários, em nossos desejos de atuar na dança, são coparticipativos com as tensões sociais e imposições hegemônicas. E, ao passo que com esses bailados recriamos essas gestualidades entremeadas de gostos outros, ainda arrastamos os rastros desses lugares gestuais em compreensões binárias do masculino e feminino, que podem estar visíveis e paralelamente também ocultos em relação as referências expressivas visualizadas com a ancestralidade, que nos afetaram e transformaram-se em nós.

          Acredito que a experiência alavancou um processo de rompimento para com as normativas impostas, ao limitante sentido de que são as únicas e verdadeiras existências dignas.  A todo tempo o conflito fez-se presente, a experiência nos trouxe a sua própria reflexão em carne antes das discussões com as referências e os livros de pensadores/pensadoras de gênero, que foram de suma importância para levantar mais poeira.

             Essa proposta artística empreendeu um convite à coletividade, dialogando com equidade, para aprender a olhar quem está próximo de nós.  E, pelo respeito, na alteridade é que empaticamente identificamos o que nos oprime, ou seja, compartilhando, ouvindo as próprias vozes, e não com ecos narcisistas. Espero que esse trabalho, e seus possíveis desdobramentos, possam contribuir na desconstrução dos modelos fixos de comportamento e compreensão de nossas vidas sobre as identidades, perturbando padrões e alastrando consciência sobre a complexidade na existência com a arte.

          Lanço amarração, no que foi abordado com essas palavras, enquanto meio que pode se multiplicar de sentidos, em tantos outros momentos, que seja lida e questionada. Que a força da ginga manifeste seu movimento, e na resistência provoque mais encantamentos e transformações. Gargalhemos!

[1]No decorrer desse texto o uso do “x” na grafia revela a presença de personas, personagens e entes, os quais não se conformam dentro das leituras e compreensões do gênero no masculino e feminino. Além disso, configura enquanto símbolo gráfico como metáfora da encruzilhada.

[2] Professora efetiva da Universidade Federal de Sergipe, mediadora dos componentes:  Danças Brasileiras, Danças Sergipana, Estágio e Pedagogia da Dança etc.

[3]  Neste momento, o departamento estava localizado em um prédio alugado pela Universidade Federal de Sergipe. Esse espaço era uma academia de dança, a Studiun Danças, uma instituição que foi dirigida pela falecida Professora, bailarina e coreografa Lu Spinelli.

[4] Considero relevante indicar que o entendimento sobre os mitos neste trabalho é bem amplo e não se limitam aos repertórios das liturgias afro-brasileiras, uma vez que inclui lendas, crendices, e contos da tradição oral popular.

[5] Parte do texto da galinha no espetáculo Chamem Todas as Marias.

[6] Idem.

[7] Babalorixá do Ile Asé Alaroke, localizado na rodovia João Bebe Água, 1020 – São Cristóvão – Ser. Foi um dos interlocutores do processo de pesquisa da dissertação de mestrado elencada neste artigo.

 

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: Sobre os limites discursivo do “sexo”. IN: LOURO, Guaiacira Lopes (org.). Corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução dos artigos: Tomaz Tadeu da Silva – 3. Ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. p. 151-174.

 

BUTTLE, Judith. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. IN: HOLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamentos feministas conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019. p. 213-229.

 

CONRADO, Amélia. Maria Meia Noite: Pesquisa Cênica Afro-brasileira e desafios do processo criativo em Dança. Repertório, Salvador, nº 24, 2015, p. 201-217.

 

INGOLD, Tim. Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia. Rev. Educação. Porto Alegre, v. 39, n. 3, 2016, p. 404-411.

 

LEAL, Dodi. Performatividade transgênera: equações poéticas de reconhecimento recíproco na recepção teatral. Tese (Doutorado em Psicologia Social). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018. 534 p.

 

MACHADO, Lara Rodrigues (org.). Dança no Jogo da construção poética.  Santa Maria de Andrade – Natal: Jovens Escribas, 2017.

 

MARTINS, Leda Maria. Performances do Tempo Espiralar. IN: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002, p. 69-91.

 

RODRIGUES, Graziela. Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de formação. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.

 

ROSA, André. Corpxs sem pregas: performance, pedagogia e dissidências sexuais anticoloniais. Tese (Doutoramento em Estudos Artísticos) – Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017.

 

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato, a Ciência Encantada das Macumbas. 1. Ed. Rio de Janeiro: Móruloa, 2018.

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