Metadados do trabalho

Em Tempos De Guerra Santa: As Formações Imaginárias E Os Efeitos De Sentido De Um Discurso Religioso Profético Em Sergipe Dos Oitocentos

Glêyse Santos Santana

Este trabalho tem como fundamento o estudo da linguagem discursiva lastreada pelo paradigma da Análise do Discurso (AD) do filósofo Michel Pêcheux, cuja teoria destaca a relação que se estabelece entre língua, história e ideologia. Mais especificamente, busca-se analisar a partir de epístolas escritas no século XIX pelo padre sergipano Felismino da Costa Fontes, líder do movimento “os caipiras”, as projeções imaginárias do sujeito discursivo e os efeitos de sentido delas decorrentes. Como método pautou-se na construção do dispositivo analítico próprio a AD, que intercala descrição, mobilização de noções e análise das sequencias discursivas que compõem o corpus. Objetiva-se aclarar as imagens produzidas pelo sujeito enunciativo relativamente aos acontecimentos que se desenrolaram pós-conflito estabelecido entre os caipiras e a hierarquia católica. Para tanto, destacam-se os possíveis efeitos de sentido decorrentes dos posicionamentos dos sujeitos, os quais jazem não manifestos nas entrelinhas dos enunciados. Por fim, conclui-se que o discurso que emerge dos escritos é de natureza heterogênea, atravessado, sobretudo, pela formação discursiva religiosa, mas significativamente marcado por um discurso político engajado, movido por uma ideologia religiosa de cunho profético e apocalíptico de um sujeito que assume um deslocamento ideológico em relação aos dogmas institucionais.

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Como citar este trabalho

SANTANA, Glêyse Santos. EM TEMPOS DE GUERRA SANTA: as formações imaginárias e os efeitos de sentido de um discurso religioso profético em Sergipe dos oitocentos. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/225-em-tempos-de-guerra-santa-as-forma%C3%A7%C3%B5es-imagin%C3%A1rias-e-os-efeitos-de-sentido-de-um-discurso-religioso-prof%C3%A9tico-em-sergipe-dos-oitocentos. Acesso em: 16 out. 2025.

EM TEMPOS DE GUERRA SANTA: as formações imaginárias e os efeitos de sentido de um discurso religioso profético em Sergipe dos oitocentos

O Brasil, desde o início de sua colonização, foi marcado por diversos movimentos sociorreligiosos de “inclinação” escatológica (doutrina do fim dos tempos), com suas variações ou conjugações messiânicas (o retorno do Messias) e milenaristas (a instauração dos mil anos de paz na terra). Souza (2015, p.13) aponta que os ideais “messiânico-milenaristas floresceram nesse território em decorrência do transplante da crença no sebastianismo[i] (no caso, pensamento cristão) e da difusão das ideias de Gonçalo Annes Bandarra[ii] (no caso da vertente protestante). Há autores que defendem que tais influências religiosas estão na base do pensamento de movimentos como Canudos (Bahia) e Contestado (Santa Catarina), assim como outros de menor visibilidade, a exemplo de Colher de Pau (Limite Piauí/Bahia), Pedra Bonita (Pernambuco), dentre outros. Jean Delumeau (1997) e Maria Isaura Queiróz (2003), que não negam a influência religiosa como base dos movimentos, apontam para algo além. Associam-nos à ação de grupos marginalizados em luta por um melhor amanhã.

Entende-se que, não obstante se observem em trabalhos acerca do tema da escatologia - e isso limitando-nos somente ao Brasil - muitas aproximações nas crenças e narrativas que se homogeinizam (a exemplo do retorno do messias, uma nova era de paz e a destruição da sociedade em crise), é preciso atentar que cada um desses movimentos possui sua singularidade, a qual somente é de possível aproximação via documentos e discursos que deles decorrem. E, mesmo assim, tais gestos constituem-se apenas uma interpretação, dentre várias outras possíveis.

Isto posto, este artigo propõe, a partir do arcabouço teórico da Análise do Discurso (AD) francesa de filiação peucheuxtiana, abordar o movimento socialmente denominado (documentos da Igreja, periódicos da época) de os caipiras[iii] que teve palco em fins do século XIX, no território sergipano. Como objetivo, busca-se aclarar as imagens produzidas pelo sujeito enunciativo e os possíveis efeitos de sentido disso decorrentes.

Quanto à estrutura, o trabalho está disposto em quatro seções. A Introdução apresenta, de forma panorâmica, aspectos gerais relativos ao movimento caipira e ao eixo norteador de suas crenças. Na sequência, em Parâmetros Analíticos serão expostos os procedimentos metodológicos, as técnicas e fontes mobilizadas para alicerçar a análise. A terceira parte - O Universo Epistolar do Pregador do Fim do Mundo- conjuga teoria, descrição e análise ao tratar das formações imaginárias e dos efeitos de sentidos que são evidenciados no discurso presente, ou seja, nas epístolas felisminianas. E, por fim, nas Considerações Finais, retomar-se-ão as principais questões levantadas ao longo do texto.

1.1 Os caipiras e o seu pregador do fim do mundo

 

Na Freguesia de São Paulo (atual município de Frei Paulo), situada no agreste da Província de Sergipe, no ano de 1886, o padre Felismino da Costa Fontes[iv], autointitulando-se “o pregador do fim do mundo” (FONTES, 1891, p.6), encetou uma pregação de cunho religioso que arrebanhou fiéis, originando o movimento denominado de os caipiras (FONTES, 1890). Referenciado[v] em periódicos de época, na biografia oficial dos Capuchinhos no Brasil e nas epístolas felisminianas, tal movimento reuniu, para além da localidade de origem, adeptos nas regiões de Lagarto, Carira, Simão Dias, estendendo-se até os limites do território baiano (Serra Negra)[vi]. Contudo, muito embora existissem tais menções documentais, somente no ano de 2009 surgiram os primeiros trabalhos[vii] acerca do fato.

Para melhor situar o leitor, faz-se necessário apresentar em linhas gerais, a bandeira desse movimento. Em sua cosmogonia, os caipiras apresentavam-se enquanto um “exército santo”, “os escolhidos” para enfrentarem as forças maléficas do anticristo que haviam tomado de assalto os principais postos de comando das instituições laicas e religiosas, sedentos por poder e riquezas. E mais, buscavam impedir a difusão da nova “boa nova” anunciada pela verdadeira religião de Cristo e impedir as práticas de salvação diante do evento apocalíptico que se aproximava a passos largos (FONTES, 1890, 1892, 1897, 1903).

De acordo com as fontes de pesquisa, a base modelar dos caipiras assentava-se coletivamente nas Escrituras e no carisma de seu líder, essa “qualidade pessoal considerada extracotidiana” (WEBER,2012, p. 158), ou seja, o pároco detinha uma espécie de poder, gozava de uma confiança absoluta para além do natural, o que era perfeitamente compreensível para o momento histórico, uma vez que o padre Felismino era, em meio desprovido de recursos e estudo, um especialista da Igreja Católica, um membro diplomado de uma profissão socialmente reconhecida – sacerdote –  detendo conhecimentos sacros e autoridade exegética frente aos mistérios religiosos, em contraponto aos fiéis despossuídos dessas qualidades e posição social.

Em seus escritos, Felismino afirmava ser um enviado divino, com a missão de transmitir o conhecimento, combater o mal e comandar a salvação de seus seguidores (FONTES, 1891). Assentava-se no Livro Maior, em mitos cristãos como os apóstolos (Mateus, e João), em personagens modelares da Igreja, a exemplo de Paulo de Tarso (São Paulo), São Francisco e doutores institucionais da importância de São Bernardo de Claraval e Joaquim de Fiore. O clérigo sergipano abalizava ainda, ser capaz de reconhecer sinais físicos da aproximação do fim do mundo pela observação do sol, das estrelas, e do movimento do mar.

Dessa forma, os caipiras cresceram em número e extensão. Mas, após cinco anos e vários embates entre o referido clérigo, seus pares e latifundiários da região, o movimento, considerado nocivo[viii], foi atacado frontalmente[ix] pelo Vigário Geral da Província de Sergipe, Dom João Batista de Carvalho Daltro (1828-1910), experiente combatente de movimentos heréticos, tendo atuado na luta dirigida aos seguidores do Conselheiro em terras sergipanas, expulsando-os para o território baiano com o auxílio de tropas policiais (SANTOS, 2010).

Dom Daltro foi um dos principais responsáveis por difundir a ideia da loucura do padre Felismino e denunciá-lo a seu superior hierárquico. Além desses fatos, ataques a Felismino e aos caipiras foram publicados nos jornais, a exemplo do noticioso A Reforma (1888), D. Quixote (1890), e dos semanários Cidade de Salvador (s/d), União Federal (1891). Dois desses artigos foram assinados pelo capitão e latifundiário são paulino João Tavares da Mota, outros, anônimos. Na sequência, o padre foi suspenso de ordens, intimado e conduzido à cidade de Salvador por ordem do Presidente de Província de Sergipe, o Sr. Felisbelo Firmo de Oliveira Freire (1858-1916)[x], tornando-se prisioneiro no Asilo São João de Deus (segunda instituição para doentes mentais do Brasil), por solicitação do Arcebispo da Bahia, Dom Antônio de Macêdo Costa (1830-1892).

Em território sergipano, os “caipiras” resistiram, foram espancados, presos e expostos em praça pública (FONTES, 1892)[xi]. A Igreja, objetivando esmaecer a resistência popular, empreendeu duas Santas Missões sob o comando do capuchinho Frei Venâncio de Carrara (1822-1906). Tais Missões não obtiveram êxito. Segundo notícia do jornal D. Quixote do dia 22 de outubro de 1897, a Igreja encontrava resistência da população da Freguesia de São Paulo para realizar a festa do mês Mariano, devido ao “fanatismo incutido pelo padre Felismino”.

Por fim, aponta-se que o padre Felismino escreveu um conjunto de epístolas acerca de seus problemas com a Igreja, suas crenças religiosas, seus ensinamentos aos caipiras, sua cosmogonia, dentre outras questões. É preciso acrescentar que as cartas foram escondidas pelo Sr. Belarmino Oliveira, amigo e seguidor de Felismino que, ao adoecer, repassou o encargo ao seu neto, o Sr. João de Santa[xii] (1923 – 2015). De acordo com o custodiador da documentação, as cartas foram escondidas pois poderiam ser usadas contra o padre ou contra qualquer um dos receptores. Ainda, segundo ele, a maioria das cartas foi perdida, umas por descuido na guarda, outras, por empréstimo a um padre baiano que nunca as devolveu e do qual a pesquisadora, mesmo buscando na Bahia e em Sergipe, não encontrou informações.

Quanto ao conteúdo das epístolas felisminianas, pode-se dividi-las em duas tipologias: aquelas de cunho geral e informativo, baseadas em fatos como o recebimento de intimações, desavenças com o Vigário Geral, viagem a Salvador, internamento no Asilo para doentes mentais São João de Deus, visitas de padres que buscavam dissuadi-lo de suas ideias, a expectativa de saída do hospício, perseguição aos caipiras etc. No segundo grupo, encontram-se as “Cartas Gerais”, cuja extensão é bem superior às do grupo epistolar anterior e que, segundo o próprio Costa Fontes, objetivam “instruir, consolar e confortar seus irmãos na fé e no amor de Jesus Cristo”. (FONTES, s/d, p.3).

 

2 PARÂMETROS ANALÍTICOS

Esta seção objetiva apresentar o percurso metodológico da elaboração desse artigo. Faz-se necessário apontar que os procedimentos metodológicos foram pensados em dois momentos distintos e complementares. O primeiro, de cunho mais geral, visando o tratamento inicial dos manuscritos e o segundo, mais específico, relativo à construção do dispositivo de análise em Análise do Discurso (AD).

A primeira etapa, de cunho mais técnico, voltou-se ao tratamento das fontes e aos procedimentos técnicos necessários para possibilitar a leitura do material empírico. Tal material integra um conjunto epistolar redigido pelo padre Felismino da Costa Fontes, composto por treze cartas manuscritas perfazendo um total de cinquenta e duas páginas em papel madeira, dispostas em recto e verso e escritas em tinta ferrogálica preta, com letra cursiva e regular, constando local, data e assinatura do remetente.

Esse material foi digitalizado segundo o Manual de Digitalização de Acervos, constante das normas do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ). E a transcrição foi guiada pelas Normas Técnicas para Transcrição e Edição de Documentos Manuscritos do Arquivo Nacional, preservando todos os elementos constantes da fonte primária, a exceção das abreviaturas que foram transcritas por extenso.

Após tratamento técnico, partindo da perspectiva de que observar as materialidades discursivas significa problematizá-las linguística e historicamente e intencionando apreender “o real do sentido” (ORLANDI, 2015, p.57) procedeu-se à leitura das três primeiras epístolas felisminianas. Tal leitura buscou conjugar-se com o alicerce teórico da AD visando uma melhor compreensão das categorias que serão objeto de interesse, a saber: condições de produção e formações imaginárias do sujeito discursivo.

Quanto às fontes, é necessário apontar, ainda, que as três cartas foram escolhidas pelo critério cronológico de escrita. As duas primeiras, datadas de 1890 e 1891, foram redigidas na Freguesia de São Paulo, e a última, de 1892, enviada do Asilo São João de Deus em Salvador, quando da prisão do padre Felismino. Esse critério de escolha das epístolas objetivou analisar as primeiras ideias e ações difundidas no referido discurso. Ao observar as missivas selecionadas para análise, percebe-se que há uma preocupação do sujeito em expressar problemas de ordem política e social no que tange a um posicionamento dissonante da instituição hierárquica em matéria de fé e dogmas, bem como seu empenho em denunciar a ordem social.

Assim, finalizada a primeira etapa, passou-se à construção do dispositivo de análise em AD. O primeiro gesto analítico foi realizar um trabalho de leitura ainda mais acuradopara estabelecer a partir do texto epistolar, o corpus discursivo. Como recurso para fazê-lo, recorreu-se à categoria de recorte introduzida pela pesquisadora Eni Orlandi (1984, p.14) compreendida enquanto “unidade discursiva”, [...] ou seja, “fragmentos da situação discursiva”. Isso significa que recortar é um procedimento prático de extrair do corpus uma fração, mas considerando nesse ato, a situação linguageira; a situação discursiva ou o contexto de interlocução e, de forma indireta, mas fundamental, a ideologia (ORLANDI, 1984; INDURSKY, 2013).

Por fim, procedeu-se o recorte das sequências discursivas (SD), discriminadas por Jaques Courtine (2014, p. 55), como “sequencias orais ou escritas de dimensão superior a frase”, identificadas em função dos objetivos desse artigo, a saber: as epístolas felisminianas analisadas evidenciam as condições nas quais o discurso foi produzido? Quais as formações imaginárias produzidas pelo sujeito discursivo em seu processo enunciativo?

Para melhor delimitar o procedimento estrutural, os recortes que serão aqui considerados versam sobre: a) Informações gerais; b) Exortação c) Combate Ideológico. Foram selecionados levando-se em conta que possibilitam problematizar como os sentidos emergem na enunciação do sujeito. A análise, portanto, será realizada a partir do método discursivo, ou seja, buscando balizar a descrição/interpretação.

 

 

3 O UNIVERSO EPISTOLAR DO PREGADOR DO FIM DO MUNDO

 

Eni Orlandi (2015, p.28-29), ao abordar as condições de produção de um discurso, afirma que somente se pode fazê-lo, levando-se em conta dois procedimentos. Buscar compreender as condições de produção em sentido estrito, que são as circunstâncias da enunciação dos sujeitos enunciativos (as formações imaginárias) e, por outro lado, o sentido amplo, o contexto histórico-ideológico no qual o discurso está inserido. Tal concepção advém do pensamento peucheuxtiano ao apontar que as condições de produção de um determinado discurso se estruturam pelo “conjunto de mecanismos formais que produzem um discurso dado em circunstâncias dadas” (PÊCHEUX, 2014, p.76).

Ou seja, o pesquisador do discurso precisa ter em mente que, para realizar toda e qualquer análise sob o paradigma da AD, é preciso evidenciar o contexto sócio-histórico e as formações imaginárias (jogo de imagens) do sujeito, as quais, estão “marcadas pela força do ideológico. Melhor dizendo, no processo discursivo, são as formações imaginárias (criadas pelo sujeito a partir de sua posição na relação de forças sociais) que atribuem a si e ao outro determinadas imagens (marcadas pelo ideológico) que se apresentam como a única realidade possível (PÊCHEUX, 2014).

Assim, para apreender o funcionamento de tais lugares e perceber o funcionamento discursivo, deve-se procurar lastro em questões que permitam compreender o funcionamento dos lugares projetados como posições nos discursos. Dessa forma, Pêcheux aponta para as questões: quem fala? a quem se dirige? o que fala? quem sou eu para lhe falar assim? quem é ele para me falar assim? E, para respondê-las, é preciso compreender as formações imaginárias que um sujeito organiza na produção de um discurso, o que determina suas possibilidades de enunciação e seus efeitos de sentido. Isto porque a inscrição do sujeito socioideológico o coloca em um campo de posições que lhe dá possibilidades determinadas de fala que vão variar conforme sua disposição em relação às formações ideológicas e a seu trânsito por diferentes formações discursivas, essas entendidas, respectivamente, como possibilidade de compreensão do processo de produção dos sentidos em sua relação com uma determinada formação ideológica (PÊCHEUX; FUCHS, 2014).

 

    1. Os Recortes

 

  1. Informações Gerais: essa SD selecionada da primeira epístola do padre Felismino, diz respeito à ordem recebida do governo provincial de Sergipe, na figura do Sr. Felisbelo Freire para partir imediatamente à Bahia.

Carta do padre Felismino da Costa Fontes – Freguesia São Paulo da Mata, 1890

 

SD1 [...]. Tendo recebido no dia 1.9. deste corrente um officio do Reverendissimo Vigario Geral de Sergipe com data de 10 do mesmo intimando=me para comparecer em presença de Vossa Excelentissima Reverendissima sob pena de suspensão de ordem [...] Tendo sido intimado pelo Excelentíssimo[sic] Senhor[sic] Governador deste Estado de Sergipe para partir para a Bahia no dia 17 deste corrente 3ªfrª; mi cumpri fazer-vos sciente deste ocorrido para que façais volsas supplicaz vingativas aos Céos pela saúde, paz, i liberdade do Pastor i do rebanho. Recebi esta intimação com resignação i paciência, i confirmado na verdade i confiado na Divina Providência i na proteção da Imaculada Virgem Mãe de Deos, i dos meus especiais Advogados; i de toda a Gloriosa Corte Celestial, partirei sem temor. Cumprindo o meu dever de avisar ao rebanho sobre minha inesperada Viagem para Bahia, i sobre a minha grandêza d´animo, tenho in vista, principalmente, conforta=los e resigna=los com a Santíssima, Justíssima, altíssima e amabilíssima vontade de Deos, para que assim levantem os pensamentos e coração aos céus i esperam com paciência i confiança o termo final da grande questão ou da grande guerra, feita injustamente pelo nolssos gratuitos adversários [...] (FONTES, 1890, p.1).

Em AD, de vinculação francesa peucheuxtiana, considera-se que todo e qualquer meio ou gênero que permita a produção de sentidos constitui-se como via privilegiada ao universo ideológico de um sujeito em relação a suas práticas e representações. No caso das análises apresentadas nesse artigo, o gênero utilizado é a carta, uma vez que as cartas serviram de suporte às mensagens que circularam entre o Padre Felismino e as autoridades eclesiásticas, das quais foram selecionados os recortes que compõem as sequências discursivas (SD), que integram as condições de produção do discurso.

Isto porque, no século XIX, não havia para além da carta, telegrama, desenho, caricaturas, ou outra forma de comunicação reconhecida socialmente. O ato de escrever cartas, afora a construção de registros materiais e históricos, foi uma prática social utilizada por muitos séculos, constituindo-se em atividade de introspecção acerca da história e do cotidiano vividos, além de apresentar, para além dos assuntos nelas tratados, traços do universo do autor e de seus destinatários (PINSKY; LUCA, 2013).

Segundo Coutinho (1976, p. 215), no geral, as cartas no século XIX (escritas entre familiares, amigos ou mesmo em transações de negócios) não seguiam uma rígida padronização, mesmo aquelas mais preocupadas com a linguagem culta, e tinham caráter conversacional, pois “escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido”.

É de se ressaltar, em relação à materialidade textual do corpus epistolar em análise, a frouxidão da sintaxe e ausência de pontuação, marcas enunciativas do sujeito da oralidade, são formas de expressão de linguagem que permitem uma maior aproximação entre os sujeitos, uma conversa entre iguais, ou mesmo, uma maior transmissão de ideias, reflexões e emoções estando a pessoa que escreve mais preocupada com a assimilação da mensagem do que com a forma. Nesse trabalho, portanto, as cartas se apresentam como parte integrante das condições de produção do discurso.

Voltando-se ao léxico e à sintaxe do texto apreciado, observa-se que, na época em que foi escrito, usavam-se consoantes dobradas (Ella, supplicaz), letras mudas (redempção), termos que convergiram de terminações an e am para a terminação ão, (sejão)[i], o que, em conformidade com Roman & Bençal (2012), se deve ao renascimento e à valorização, no século XIX, dos modelos clássicos de grafia que buscavam uma aproximação com os padrões helenísticos e latinizados. Afirmam, ainda, os autores citados que o desconhecimento do método etimológico fez com que a proposta ortográfica complicasse ainda mais a evolução do idioma. Já Lucchesi (1994), caracteriza o português brasileiro, de forma geral e específica no século XIX, não apenas como heterogêneo e variável, mas também plural e polarizado, tendo em um dos polos a norma vernácula e, em outro, a culta, fato que se atribui a uma minoria de letrados em contraponto a uma enorme população de analfabetos no país.

Outra marca que se apresenta na textualidade é a presença do marcador conversacional (i), que assume o sentido de adição e é utilizado para explicitar todas as ações do sujeito diante do problema que se apresenta. Na visão de Urbano (1997, p.81), os marcadores conversacionais são elementos de “variada natureza, estrutura, dimensão, complexidade semântico-sintática, aparentemente supérfluos ou até complicadores, mas de indiscutível significação e importância para qualquer análise de texto oral e para sua boa e cabal compreensão”. Embora o texto em análise não seja oral, há nele características da oralidade, presentificadas pela frouxidão da sintaxe e da pontuação.

Para além das questões linguísticas apontadas, verifica-se que a SD1 apresenta informações repassadas por Felismino Fontes, que, na posição-sujeito padre, vê-se interpelado pela instância institucional que exige sua presença e ordena sua viagem a Bahia. Isto se dá em virtude dos problemas causados pela existência do grupo caipira e das pregações públicas e práticas heterodoxas do clérigo (atacar a Igreja e o estado, alardear a proximidade fim do mundo e a volta iminente do Messias), as quais não estavam ajustadas às normas da hierarquia católica.

Voltando-se a uma leitura mais densa da carta, é fundamental a seguinte arguição: qual a imagem que que Felismino (autor da carta) faz de si e do outro? Ao falar em outro, faz-se referência àquele para quem remete a carta, no caso, o arcebispo da região. Qual a imagem que ele faz do arcebispo? E de si próprio? E de seus fiéis?

Segundo Carvalho (2012, p. 95) quando tomamos o discurso como memória, torna-se pertinente considerar a premissa da AD, presente em “Estrutura ou acontecimento”, em que Pêcheux diz que o analista, ao tratar do discurso, deve considerá-lo como um entrecruzamento do acontecimento, da estrutura e da tensão entre descrição e interpretação, buscando-se entender “o funcionamento da língua em sua relação com à história”. Nesse entrecruzamento, também não podemos subestimar a afluência do imaginário, característico aos seres humanos e essencial às representações que fazem de si e do mundo em geral.

Observa-se, pela leitura da carta, que Felismino, ao dirigir-se ao arcebispo, trata-o com respeito e deferência, portanto, a imagem que dele tem é de um superior hierárquico. O emprego da segunda pessoa do plural vós, era o tratamento adequado na época ao referir-se a autoridades religiosas. Há também um certo tom amigável, até mesmo de servilismo como na passagem “Tendo recebido no dia 1.9. deste corrente um officio do Reverendissimo Vigario Geral de Sergipe com data de 10 do mesmo intimando=me para comparecer em presença de Vossa Excelentissima Reverendissima sob pena de suspensão de ordem (FONTES, 1890, p.1). Conhecedor de sua subordinação, Felismino se coloca como padre, ou melhor, pastor, por conseguinte, a imagem que tem de si é de um subordinado em relação ao arcebispo, cumprindo assim o seu dever de dar-lhe ciência da carta e da intimação feita pelo governador para dirigir-se a Bahia, ao tempo em que solicita ao arcebispo que faça suas súplicas vingativas ao céu pela saúde, paz e liberdade tanto de si como de seus fiéis. O termo vingativas, adjetivo utilizado para caracterizar o substantivo súplicas, levanta dúvidas em relação a seu significado: talvez fosse um termo utilizado em orações, na época, para implorar clemência à corte celestial, ou quem sabe assinale a animosidade do Padre em relação à intimação que lhe foi feita. 

Ao referir-se a Deus na carta, Felismino faz uso de adjetivos no grau superlativo absoluto sintético - Santíssima, Justíssima, altíssima e amabilíssima - expressando os altos atributos que são conferidos à superior vontade divina, demarcando a formação discursiva religiosa católica de adoração à corte celestial, ao dirigir-lhe as mais elevadas reverências. Em relação a seus seguidores, aos quais cognomina de rebanho, o padre demonstra desvelo e preocupação, julgando até mesmo um dever seu avisá-los e confortá-los ao dizer: “Cumprindo o meu dever de avisar ao rebanho sobre minha inesperada Viagem para Bahia, i sobre a minha grandêza d´animo tenho in vista, principalmente, conforta=los e resigna=los[...] para que assim levantem os pensamentos e coração aos céus i esperam com paciência i confiança o termo final da grande questão [...]” (FONTES, 1890, p.1)

As atitudes do clérigo estavam na contramão do que pretendia a Igreja, a saber: a separação clero/fiéis, a reforma moral e institucional do clero (uso constante da batina, afastamento em relação aos fiéis, preservação da moral e bons costumes etc.) e a reaproximação intrínseca entre religião e Estado. Isto porque, mesmo tendo essa relação se enfraquecido legalmente devido à Constituição de 1891, a Igreja recorria muitas vezes ao Poder Provincial, para resolver questões de seu interesse. Daí o motivo de Felismino receber intimação do governador da província (ANDRADE, 2010).

Essa força da hierarquia católica em conjunção com o poder provincial mostra-se no termo utilizado pelo sujeito discursivo: intimado. Naquele momento histórico, o termo intimado remete ao poder de polícia ratificado pelo Código Penal de 1890, dando aos delegados ou responsáveis legítimos, designados para aplicação da lei, o direito de intimar qualquer suspeito para maiores averiguações. Mas a Igreja também possuía, pelo Direito Canônico, o poder sobre seus membros assumindo, também ela, esse poder de polícia, de controle, assim como de seus destinos na estrutura hierárquica. Isso ocorria, embora o art. 72 da Constituição Federal de 1891 assegurasse “a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade”.

Dando prosseguimento, Felismino, ao expor os problemas por ele vividos e informar aos seus seguidores sobre os últimos acontecimentos, reafirma sua posição-sujeito  de padre, o Pastor, aquele que tem como obrigação conduzir seus fiéis, por ele denominados como rebanho. E mais, ser pastor é uma vocação dada pelas esferas espirituais elevadas, pois o pastor possui ciência e conhecimento. Dessa forma, ambos os termos (rebanho; pastor) se filiam a uma formação discursiva religiosa cristã mítica, proveniente de uma alegoria bíblica que remete ao povo escolhido, os judeus, de forma semelhante aos caipiras, “o exército santo” (FONTES, 1892, p.3). Davi foi pastor de ovelhas e usa essa figura no Salmo 23 para mostrar como se sentia, em relação a Deus – eu sou uma ovelha do Senhor, o meu Pastor. Cristo, o enviado divino, reafirma sua condição - Eu sou o bom pastor; o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas (João 10:11). Tal representação aponta para a projeção de uma imagem pessoal daquele que veio para delinear o caminho, na qual o sujeito deixa claro para si, quem é ele e qual o seu dever.

 

  1. A Exortação: essa segunda SD, trata-se de uma carga de encorajamento do sujeito discursivo aos seus interlocutores, utilizando como estratégia a força dos mitos católicos.

Carta do padre Felismino da Costa Fontes – Asilo São João de Deus, 1892

       
 

SD2 Sincera e fervorosa Exortação sob a valiosa Proteção dos Santos Mortos

Principalmente nos Domingos e dia santificados, rezai terços, ou corôa, ou rosario com vossas famílias, ou cada um de per si pode com gemidos, súplicas e lagrimas a Santíssima [sic] Virgem, à Tesourêira e Dispensadora das immensas riquezas da Divina Graça e Misericórdia, para que Ella rogue a Santíssima[sic] e Adorabilíssima Trindade, a fim de que sejamos socorridos no meio de tantas tentações e amarguras, e sejão abbreviàdos os dias de tanta perseguições, e brilhe para nós o muito desejado dia de nolsa redenpção, paz e felicidade pelo restabelecimentos do Reino de Deos, pelo reinado de mil annos, Ammém.[...](FONTES, 1891, p.3)

 
   

SD2 Sincera e fervorosa Exortação sob a valiosa Proteção dos Santos Mortos

Principalmente nos Domingos e dia santificados, rezai terços, ou corôa, ou rosario com vossas famílias, ou cada um de per si pode com gemidos, súplicas e lagrimas a Santíssima [sic] Virgem, à Tesourêira e Dispensadora das immensas riquezas da Divina Graça e Misericórdia, para que Ella rogue a Santíssima[sic] e Adorabilíssima Trindade, a fim de que sejamos socorridos no meio de tantas tentações e amarguras, e sejão abbreviàdos os dias de tanta perseguições, e brilhe para nós o muito desejado dia de nolsa redenpção, paz e felicidade pelo restabelecimentos do Reino de Deos, pelo reinado de mil annos, Ammém.[...]

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O primeiro aspecto que chama atenção na SD2 é o título. Isto, porque a carta exortatória se apresenta como uma tipologia documental eclesiástica, específica do alto pontificado, somente emitida pelo Papa após um Sínodo. Imitá-lo consistia falta grave, passível de punição, pois não se pode falar em nome do Sumo Pontífice e nem assumir seus encargos (DOCUMENTOS PONTIFICIOS, 2010).

No geral, as cartas exortatórias possuem como características o tom menos solene, recorrem a temas espirituais e objetivam auxiliar os fiéis na sua vida sacramental e devocional. Possuem também uma estrutura diplomática que as demarca, ou seja, é um documento que possui um “exoesqueleto”, a saber: um título que remete ao propósito e às circunstâncias em que as cartas foram produzidas; uma saudação inicial, precedida da apresentação do autor, a indicação do destinatário; o texto e, por último, o fechamento, que consiste em saudações a pessoas conhecidas pelo autor (AQUINO, 2002).

O sujeito discursivo, mais uma vez, subverte e produz sua carta de forma livre. Não identifica os destinatários. Como anteriormente citado pelo Sr. João de Santa e, ainda, nas epístolas felisminianas, a identificação de outros sujeitos constituía ato perigoso. Contudo, o fato de denominar sua carta, ou seja, intitulá-la como sendo uma exortação, Sincera e fervorosa Exortação sob a valiosa Proteção dos Santos Mortos, produz um sentido de elevação e comparação com a mais alta hierarquia, embora o padre Felismino ocupasse o mais baixo grau hierárquico, o de um Vigário Encomendado. Na verdade, ele vai além do seu ofício de Padre e se coloca em um patamar acima da função que exerce.   Isso, também, constituía falta grave diante do episcopado.

Quanto ao enunciado, depreende-se a priori que o objetivo é animar, estimular, persuadir e conclamar seus seguidores. Contudo, seu clamor tem como alvo resistir às perseguições sofridas pelos poderes constituídos. O vocábulo resistir ganha contornos políticos sob forma de oração, caracterizada pelo vocábulo final Ammém. Dessa maneira, a escritura possui um objetivo determinado e ganha contornos de estratégia de perpetuação do credo por ele instalado, uma prova de que, mesmo afastado, manteria viva a relação com seus fiéis, lutaria a seu lado e reafirmaria a perseguição e o erro dos adversários, dos infiéis.

A oração, portanto, ganha o sentido de fortaleza moral e persistência diante do perigo ou do mal que os acometeu. O sujeito do discurso reforça esse sentido por seus atos. Em primeiro lugar, encontra meios de comunicar-se com os seguidores – seu público - cometendo ele mesmo uma grave infração que também evoca o sentido de resistência, típico dos movimentos sócio-políticos. Em segundo lugar, seu discurso constitui uma súplica em forma de oração à esfera divina, para aliviar os suplícios impostos pelo poder e, mais uma vez, deixa transparecer o discurso da hierarquia religiosa mítica, estabelecido nos cânones eclesiásticos.

Observa-se que o sujeito-padre se ancora em Nossa Senhora, um dos mais poderosos e aclamados mitos cristãos que possui como força a intercessão no orbe celestial. Ela tem o poder de mudar uma decisão divina, de modificar os destinos, de administrar a salvação. Contudo, para expressar tal faculdade, o sujeito parte da formação discursiva do capital - Tesourêira e Dispensadora das immensas riquezas. A santa é importante por administrar, acumular e distribuir tais riquezas divinas, sobretudo quando o investimento é realizado em orações, mais precisamente, o terço, ou rosário. Ressalta-se ainda, uma regulação na forma de prática da oração. Ela não deve ser realizada de qualquer maneira. Há condições determinadas, marcadas pelos substantivos gemidos, súplicas e lágrimas, que acrescem a ideia de sofrimento e aflição, configurando-se como pré-requisitos do bem de salvação, no caso alcançar a graça para a efetivação do pedido e estabelecendo circuitos de poderosas energias construtivas. É ainda um rito, pois é um ato realizado em direção a um ente sagrado – no caso Maria, a mãe de Deus - cuja influência sobre o filho é incontestável. É crença, pois se utiliza da ação e do pensamento, pois toda oração é uma palavra e toda linguagem tem meta e efeito e por isso, eficaz instrumento de ação. (MARTINS, 2005, p. 231).

Por fim, chama-nos atenção a referência de cunho profético suscitada pelo excerto da epístola de Felismino - restabelecimentos do Reino de Deos, pelo reinado de mil anos. Tal afirmação remete ao discurso escatológico, marcado por uma visão apocalíptica envolvendo o homem e o mundo e que aglutina dois processos míticos: o messianismo e o milenarismo. Tal questão aclara o porquê da intervenção dos poderes constituídos em relação à pregação e às práticas do padre Felismino, uma vez que tais movimentos, por se caracterizarem como heréticos, vêm sendo historicamente punidos.

Maria Isaura Pereira de Queiroz, em sua obra O Messianismo no Brasil e no Mundo (1965), afirma que todos os movimentos proféticos estão inseridos em um movimento messiânico que tem por base um indivíduo, especialista ou não, o qual possui qualidades sobrenaturais. A ele cabe o dever de expor a “moléstia social”, profetizar acontecimentos e catástrofes, estabelecer procedimentos, prometer a salvação àqueles que creem, sendo capazes de visualizar um paraíso ou mesmo um reino celeste que poderá se concretizar na terra ou em outro mundo, criando a partir desse fato uma estrutura perfeita em todos os gêneros. Assim, o messianismo é um movimento religioso, ideológico, que prega a salvação da humanidade através da vinda do Messias e a formação da nova cristandade. (QUEIROZ, 1965, p.240). Fato que corresponde diretamente ao movimento em foco.

Henri Desroche (1985), por sua vez, chama atenção para um aspecto fundamental: o milenarismo é uma consequência do messianismo e, portanto, difere deste. No primeiro, a marca está em acreditar na vinda do redentor e o segundo significa um movimento sociorreligioso, destinado a acelerar a concretização do Paraíso Terrestre (QUEIROZ, 1965, p. 23). Entretanto, Queiroz corrobora com a ideia e, complementando-a, explicita que o Milênio não é forçosamente trazido pelo messias, pois também líderes leigos podem assumir a liderança desse tipo de movimento em busca de transformações, sejam econômicas, políticas ou mesmo exclusivamente religiosas.

  1. Grupos Inconciliáveis: as sequências discursivas constituídas pelos excertos abaixo tratam da cosmogonia dos caipiras em sua relação com o social.

 

 

SD3 [...]. A vida do homem sobre a terra foi em todos os tempos uma guerra contínua; porém do ano de 85 em diante, si tornou este mundo um vasto e tremendo campo da mais terrivel batalha, em que dois poderes, bem differentes se despertão uma victória decisiva por meio de seos principais agentes, e de seos respeitivos exercitos.

SD4 Agora dizei=nos: entre uma guerra, suscitada por Satanaz contra Jesus Christo, de que lado se entoará o hymno da vitória decisiva!? [...].

SD5 [...]  É facil e bem clara a resposta: Nolso Senhor Jesus Christo está do lado das profecias, ou da tradição e das Escripturas Sagradas, conservadas no seio da Sua Santa Igrêja, as quaes descrevem os horríveis succelsos da tremenda persiguição e cruel guerra do Antichristo e de seus principais agentes, colligados com os Reis da terra e seus exércitos contra um Pastor mysteriôso, fiel e verdadeiro, e contra o seo exercito, ou rebanho dos escolhidos de Deus, dispostos a affrontar todos os perigos e difficuldades, até a própria mórte para accompanhar o seo Pastor dado pelos Céus [...] (FONTES, 1892)

 

Observa-se de forma comum, nos recortes selecionados, a formação discursiva do militarismo demarcada pelos termos guerra contínua, respeitivos exércitos, cruel guerra, que suscita o sentido de conflito ad eternum entre forças antagônicas, o bem e o mal. Mas também, um acirramento deste conflito em 1885, ano da chegada de Felismino à Freguesia de São Paulo e do início de suas pregações. É também o momento em que o padre passa a transitar entre duas posições-sujeito, o padre e o profeta (FONTES,).

Ressalta-se aqui a ocorrência de uma mudança em relação a região ideológica constitutiva do sujeito religioso, observada até esse momento nas sequências apresentadas ao longo do texto. O sujeito do discurso altera sua posição-sujeito e se apresenta agora como sujeito-profeta, colocando-se, portanto, em posição-sujeito diversa, mas sem abandonar a formação discursiva religiosa que lhe é constitutiva.

Conforme visto, nas primeiras SD´s, Felismino se coloca como sujeito-padre, e, em posição de obediência, reconhece seu lugar diante da hierarquia. Agora, contudo, surge o heterodoxo, o profeta que anuncia a transição operada em 1885, com o acirramento da luta entre o bem e o mal, dando início ao combate entre dois exércitos. Dessa forma, no discurso, o sujeito religioso vai construindo o sentido maniqueísta – [...] persiguição e cruel guerra do Antichristo e de seus principais agentes, colligados com os Reis da terra e seus exércitos contra um Pastor mysteriôso, fiel e verdadeiro, e contra o seo exercito [...].

Assim, os caipiras, para além de homens religiosos, eram também soldados, formavam seu exército, portanto, eram o diferencial, a única razão para que o mundo não estivesse totalmente dominado pelo mal e tinham, como função, combatê-lo até a morte, se necessário. Sem eles, a vitória do Anticristo seria inevitável, pois os filhos de Satã ocupavam os mais altos postos de comando na hierarquia civil e na clerical. Para os caipiras, entretanto, aí se apresentava seu destino e sua distinção: eram os escolhidos de Deus para a difícil tarefa de salvarem-se e salvar o mundo. E Felismino, como uma espécie de general de Cristo, ensina a estratégia de luta a seus fiéis, método baseado na fidelidade e verdade. Essa seria a chave-mestra para que, numa espécie de teofania, passassem a engrossar a fileira da Corte Celestial, alcançando a vitória.

Emerge, assim, o sentido de combate ideológico entre grupos inconciliáveis, crise moral e institucional, dividido o mundo em dois polos, em dois grupos com finalidades opostas: de um lado o Anticristo, as altas hierarquias civis, religiosas, os reis e os poderosos, que buscavam o poder e a glória terrenos; de outro, a verdadeira Igreja cristã, representada pelo pregador do fim do mundo e os caipiras, combatentes contra o mal e espectadores da vinda do Redentor.

Para Stuart Clark (2006, p.39), Deus e Demônio se encontram em polos opostos. São a representação do Bem e do Mal. Positivo e Negativo –Possuem ações semelhantes, e intenções contrárias, a marca de suas diferenças - o que comunga com a tradição cristã. Atualmente, as igrejas neopentecostais popularizaram a ideia de um Anticristo que virá, se oporá aos mandamentos bíblicos e organizará uma sociedade baseada em valores amorais. Há representações desse momento, em que os homens serão controlados pela marca da besta (a inscrição 666). Outra representação que se reproduz é a do Cristo vitorioso após seu retorno, quando derrotará Satã e estabelecerá seu reino milenar. Para o crente, o Anticristo e seus seguidores, ávidos de aliarem-se aos poderosos da terra, guiam seus aliados corruptos para conseguirem seus intentos – perseguir os justos, espalhar o mal e o conflito entre os homens. (CLARK, 2006, p.125).

Este artigo trouxe à tona, o movimento caipira e seu líder, o clérigo Felismino Fontes que ao tempo que movimentaram o agreste e sertão sergipano dos oitocentos, foram esmaecidos em sua história e memória. Os caipiras liderados pelo clérigo estavam tomados em sua cosmogonia, pela ideia da crise social e buscando ceifar as influências do Anticristo, que na visão caipira adentrara o social (representando-se, em maior monta, no poder civil e eclesiástico), destruindo a moral, a fé e disseminando a corrupção, as injustiças, os ódios, as mentiras, ou seja, implantando o caos.

Diante disso e vislumbrando um mundo mais justo no qual predominassem homens santos, praticantes de boas ações e seguidores fiéis das verdadeiras práticas cristãs, eles passaram a enfrentar seus adversários a partir do que se pode denominar de “novo velho modelo sociorreligioso”. Com tal expressão quer-se dizer que para os caipiras, o modelo da verdadeira fé, estava lastreado nos mesmos paradigmas, mas com atores diversos. Para eles, somente sendo caipira, um determinado sujeito estava no caminho da salvação e verdade. E pior, o Anticristo já havia dominado a sociedade. Por tal razão eles deveriam combater e denunciar o embuste do inimigo.

Tal concorrência espiritual e heresia, a Igreja não desejava e combatia. E nesse momento já tinha experiência em desbaratar movimentos sociorreligiosos que rivalizavam ou traziam desestabilidade social. Nesses momentos uniam-se Estado e Igreja, como no caso do Muckers (Rio Grande do Sul), mas também em movimentos vindouros como os anteriormente citados, Canudos e Juazeiro. Além do mais, a Igreja estava atrelada ao poder. Grande parte dos clérigos assumiam postos de destaque social para além da esfera religiosa. Eram professores, políticos, eruditos, coronéis. Dessa forma, usando do poder que lhes era conferido, agiam com poder de polícia para desbaratar movimentos míticos-religiosos de cunho político e silenciar a heterodoxia religiosa/política, o que era perfeitamente concebível e do ponto de vista social, uma ação benéfica para proteger a sociedade.

Como paradigma para observar esse fenômeno, optou-se pela Análise do Discurso (AD) peucheuxtiana, por sua característica de relacionar história e linguagem. Ou seja, a AD que se constitui uma teoria materialista de evidenciação do caráter discursivo e prático da ideologia, e busca reconstruir historicamente o sujeito, aprofundando a análise para além das transparências da linguagem - a ideia de que aquilo que está dito possui apenas um sentido que se materializa no dizer do sujeito, fruto de sua subjetividade. Assim, como diferencial, a AD afirma a linguagem em sua relação com a exterioridade, enquanto ação e como forma ou lugar de interação.

Dessa forma, esse escopo teórico-metodológico da AD permite mobilizar categorias analíticas que permitem ao pesquisador lançar um olhar acerca do fenômeno discursivo. O estudo aqui empreendido voltou-se ao material empírico, as cartas, para um exercício de interpretação e análise, sob uma perspectiva, dentre muitas possíveis, para compreender o enunciar do padre Felismino, buscando, a partir das formações discursivas, descortinar o ideológico que sustenta seu discurso, procurando apreender sentidos.

O dispositivo teórico exige do pesquisador um esforço em descortinar os sentidos não manifestos nas entrelinhas dos enunciados.  Dessa forma, ao observar os excertos, vê-se que o discurso que emerge dos escritos felisminianos é de natureza heterogênea, atravessado, sobretudo, pela formação discursiva religiosa. Embora, outras delas, possam ser evidenciadas na análise.

Assim, ainda que, a priori, seja um discurso religioso, apresenta facetas variadas. Trata-se de um discurso político engajado, movido por uma ideologia religiosa de cunho profético e Apocalíptico. Um sujeito fala em nome de Deus, e, nesse ato, subverte. Ao enfrentar a hierarquia, assume um deslocamento ideológico. Assume-se como profeta, ou melhor, padre-profeta. Assim, ainda no interior da esfera ideológica religiosa, ele apresenta uma nova possibilidade de Salvação, admite ser um enviado de Deus para guiar os homens em seus últimos dias na terra.

iD. Sebastião, jovem rei de Portugal que desaparece nas Cruzadas e passa a ser denominado pela tradição popular como “O Encoberto, o Desejado” (GODOY, 2015, p.25).

ii. Gonçalo Annes Bandarra 1500-1556) era um sapateiro e profeta natural da ilha de Francosa português que migrou para Bahia no século XVI, autor das trovas messiânicas, enterrado em Trancoso (SOUZA, 2015, p.13).

iii. Está assim referido nos periódicos de época, biografia do Capuchinho Frei Carrara e cartas felisminianas.

iv.  Em relação ao padre Felismino da Costa Fontes, os documentos de cunho pessoal, familiar e os referentes aos trâmites para ingresso na instituição católica estão localizados no Laboratório da Pontifícia Universidade Católica (PUC/BA). São respectivamente: Processo de Inquisição de Gênere do habilitando Felismino da Costa Fontes. Fundo: Governo Arquidiocesano. Órgão Solicitante: Câmara Eclesiástica, 1874. Arquivo do LEV, Estante 1. Caixa Processo de Patrimônio do habilitando Felismino da Costa Fontes. Fundo: Governo Arquiepiscopal. Órgão Solicitante: Câmara Eclesiástica, 1874. Arquivo do LEV, Estante 1. Caixa16.

v. São fontes referenciais do movimento caipira: a) os periódicos A Reforma de 22 de dezembro de 1888; União Federal de 22 de fevereiro de 1891; Cidade do Salvador de 14 de julho de 1897; D. Quixote de 01 de janeiro de 1919; b) FONTES, Felismino da Costa. Conjunto de Cartas, 1890 – 1907. Acervo do Sr. João de Oliveira. Frei Paulo; c) História do Capuchinhos no Brasil. V. IV In: MARINO: 1950; p. 572.

vi. MARINO: 1950; p. 572.

vii. Esta pesquisadora realizou uma monografia de especialização no ano de 2009. O tema foi agora retomado a partir do levantamento de novas fontes. Também o historiador João Hélio de Almeida pesquisou o tema, embora o enfoque tenha sido bastante díspare.

viii. Periódico A Reforma de 22 de dezembro de 1888.

ix. Denúncias e Santas Missões. In: MARIANO, 1950.

x. Telegrama enviado pelo Governo da Província de Sergipe, 1890, cujo texto resume-se “seguir rumo à Bahia”. O referido documento foi encontrado juntamente com as cartas e outros folhetos religioso In: FONTES, Felismino da Costa. Conjunto de Cartas, 1890 – 1907. Acervo do Sr. João de Oliveira. Frei Paulo.

xi. Além dessa referência na correspondência do padre Felismino, ainda não se conseguiu localizar nenhum documento oficial que confirmasse os escritos.

xii. O codinome João de Santa refere ao falecido Sr. João Alves de Oliveira (, maestro, escritor autodidata, e regente da Filarmônica União Lira Paulistana do município de Frei Paulo.

xiii. Idem.

 

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FONTES, Felismino da Costa. Conjunto de Carta. 1891A. Acervo Particular do Sr. João de Oliveira. Frei Paulo.

FONTES, Felismino da Costa. Conjunto de Cartas. 1891B. Acervo Particular do Sr. João de Oliveira. Frei Paulo.

Processo de Inquisição de Gênere do habilitando Felismino da Costa Fontes. Fundo: Governo Arquiepiscopal. Órgão Solicitante: Câmara Eclesiástica, 1874. Arquivo do LEV, Estante 1. Caixa 5.

Processo de Patrimônio do habilitando Felismino da Costa Fontes. Fundo: Governo Arquiepiscopal. Órgão Solicitante: Câmara Eclesiástica, 1874. Arquivo do LEV, Estante 1. Caixa16.

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