Antes de tudo é importante destacar que tratar de ludicidade (lúdico) não é algo simples e apenas relacionado ao lazer ou brincar. Essa é uma ideia superficial de quem analisa esse fenômeno de longe, uma vez que para falar do lúdico requer um trabalho de pesquisa árduo, carregado de muita interpretação intrínseca ao texto que se ler, bem como comparativo, uma vez que esse tema é colocado, com certa frequência, de maneira diferente e ampliada por diversos estudiosos, por exemplo, em Lara (2010), no capítulo criado por Pimentel, há destaque para o lúdico no sentido da alienação das pessoas, podendo ser violento, contraditório, antagonista e, portanto, desviante. De todo modo, a discussão é bastante ampla e assim deve ser percebida.
Quando falamos do lúdico, logo vem à mente o texto de Johan Huizinga – historiador, filósofo e linguista –, que nasceu na Holanda e viveu entre 1872 e 1945: Homo Ludens, de 1938. Livro, portanto, que tem mais de meio século, mas sempre é colocado como alicerce de outros textos para realizar reflexões acerca do lúdico. O mérito de “Homo Ludens” é tão grande, que estudiosos como Nelson Marcellino, Valter Bracht e Silvino Santin teceram muitas palavras acerca do lúdico ou aquilo que pode estar relacionado a ele, por exemplo, lazer, jogo e brincar. Docentes das mais diversas áreas que se debruçaram sobre o fenômeno, colocando uma carga de contribuição para as diversas áreas e assim foram compreendidos neste sucinto trabalho.
Dessa forma, percebe-se que estudar o lúdico não é algo deste século, portanto, recente, bem como não é algo restrito a um campo do conhecimento ou ciência, mas sim algo que perpassa por áreas como filosofia, biologia, história, educação, sociologia, psicologia e linguagens. Nesta última situação, podemos e há essa sustentação– mais recente - por meio da BNCC, mas anteriormente pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Abre-se aqui um ponto de observação, dado que a importância dos estudos no campo da Educação Física (EF), enquanto linguagem, foi interessante, pois o que foi realizado em aulas de Língua Portuguesa, foi possível também a partir do vislumbramento proporcionado pelo que a BNCC traz no tocante à EF, assim, foi ressignificado para as aulas de literatura, gramática e produção de texto. Nessa reflexão percebe-se o porquê da EF no campo da linguagem, enquanto componente curricular e não disciplina eminentemente prática.
O lúdico é debatido sobre várias perspectivas e, nesse sentido, este trabalho fará uma contribuição, sucinta e sem esgotar o tema, no debate das ideias basilares acerca do lúdico, além de fazer, em sequência, um mapeamento sobre o que há sobre ludicidade nos artigos científicos publicados na última década. Além disso, será realizada uma abordagem acerca do que a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) destaca sobre a ludicidade, pensando numa relação com a sala de aula. Por último, um breve relato de experiência das aulas de Língua Portuguesa com alunos de uma escola pública federal, que tiveram momentos potencialmente lúdicos, dessa forma, serão relatadas as ferramentas digitais e metodologias, assim como o lúdico foi “alcançado”.
Importante discorrer sobre duas palavras aqui citadas: potencialmente e alcançado, pois o lúdico, enquanto fenômeno, pode aparecer ou não numa prática pedagógica. Não se trata de fazer uma brincadeira e, automaticamente, o lúdico se manifestar, por isso foi utilizado o termo potencialmente, pois a intenção é fomentar o surgimento do fenômeno. Assim também com a palavra “alcançado”, que aparece entre aspas, pois se sabe que muitas vezes isso não contempla a todos os discentes, posto que uma dinâmica, brincadeira ou jogo pode não agradar ao aluno e, ocasionalmente, pode afastá-lo da ação pedagógica. Outro ponto pertinente está relacionado ao alcance do lúdico ter surgido sem uma motivação explícita, por exemplo, uma atividade de leitura, mas que não fora completa diante da extensão do texto, mas os discentes pediram para continuar, pois estavam animados, felizes, curiosos e angustiados e isso pode caracterizar o surgimento do lúdico, principalmente, porque não valia nota, frequência ou mesmo era uma atividade planejada, mas apenas aconteceu. Assim trazemos Gomes (2004) que fala do lúdico nos canaviais de Pernambuco, isto é, num ambiente de trabalho braçal, tedioso, pesado e, portanto, cansativo, apesar disso o fenômeno pôde surgir, assim como pode, por outra perspectiva, não ser evidenciado em atividades prazerosas, cheias de jogos e brinquedos, que foram planejadas com todo o cuidado. Por isso foram utilizados esses termos, pois não se pode garantir que o lúdico aconteça. Alerta-se que aqui concebemos o lúdico nas aulas de Língua de Portuguesa como algo colaborador da alegria, da reflexão, do diálogo, do coletivo, da sensibilização, da empatia e, portanto, da não alienação.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Nesta seção será realizada uma abordagem breve acerca das ideias debatidas pelos teóricos a respeito do lúdico, que foram utilizadas na formação empírica do professor-pesquisador e assim utilizadas em sala de aula. Em outras palavras, foram compreendidos e aplicados conceitos mais práticos a fim de melhorar a prática em sala, principalmente, neste período de pandemia.
Em Homo Ludens, Huizinga coloca o lúdico como algo não apenas pertencente ao homem, uma vez que há animais que brincam, isto é, praticam atividades lúdicas. Claro, atualmente, há discussões sobre os tipos de animais, pois nem todos brincam, haja vista isso depende de um certo nível de desenvolvimento, mas o fato é que o lúdico não é exclusivo do Homem e não é algo que pode ser ensinado. Entretanto, claro, isso não significa que o lúdico não possa ser modificado socialmente, pois isso vai depender da cultura que se proponha a tratar do fenômeno, por isso fora destacado na introdução deste trabalho que as atividades são potencialmente lúdicas. Desta forma, podemos falar que o ser humano tem um pendor para o lúdico, mas que as vivências para isso ocorrer podem ser criadas socialmente, algo muito significativo para docentes e educadores de uma maneira geral, em razão de servir de alerta no sentido de que alguns jogos, que são, na maioria das vezes, lúdicos, podem não ser convidativos a alguns alunos. Serve de alento ainda por cima, sabendo que há possibilidade que mesmo uma atividade bem elaborada e cheia de estímulos não desperte o interesse de alguns.
Outra contribuição pertinente colocada sob os holofotes por Huizinga está relacionada à análise do jogo, porque se lança de métodos quantitativos (experimentais), mas sem prestar atenção ao caráter estético. Este último, por exemplo, é muito importante para prática pedagógica, pois está relacionada ao que mais aproxima os seres humanos, as questões abstratas que são quase inexplicáveis, como empatia, sensibilidade, intuição, alegria etc. Nessa mesma perspectiva Huizinga (1971, p.7) traz o divertimento “o divertimento do jogo, resiste a toda análise e interpretação lógicas. A palavra holandesa aardigheid é extremamente significativa a esse respeito. Sua derivação de aard (natureza, essência) mostra bem que a ideia não pode ser submetida a uma explicação mais prolongada”. Assim, algumas considerações podem ser ressignificadas para o ensino de Língua Portuguesa mediado por tecnologias, pois o professor não deve focar apenas no quantitativo de perguntas, testes, respostas, notas, aprovações e reprovações, mas sim ficar atento ao que os alunos sentem, falam sobre as atividades, desabafam, sugerem, uma vez que tudo isso é essencial para o processo pedagógico e fomentador do lúdico, principalmente, para cumprir um critério básico da ludicidade, participação livre. Nesse caso, ficar atento a participação dos estudantes, que devem estar à vontade para brincar, questionar, sugerir e, claro, aprender.
Dessa forma, podemos interpretar o lúdico como uma espécie de fenômeno, pois não está restrito aos seres humanos, mas quando se relaciona a eles não está restrito à idade, como ordinariamente entendemos. O lúdico, enquanto fenômeno, pode também ser encontrado na família, no trabalho e, claro, no colégio. Outrossim, não pode ser racionalizado de maneira plena, pois é algo muito sensível. O que se quer dizer com isso é o fato de em algumas circunstâncias acharmos que poderemos promover algo lúdico, querendo garantir. Não se trata de algo exato, com a precisão de “irei colocar um jogo e todos os estudantes irão se divertir”. Isso é enganoso e a literatura sobre o lúdico destaca outras questões, de forma que evidencia possibilidades do lúdico suscitado em situações adversas, como no trabalho braçal da zona rural, por exemplo.
Em sentido semelhante, Pimentel (2010, p.12) traz a abordagem de Huizinga, mas também adiciona Roger Caillois como outra autoridade para afirmar que “seria um elemento anterior à própria civilização, visto que o homem não é o único animal que brinca”. Além dessa ideia bem disseminada, há destaque pelo fato de o jogo criar seu próprio mundo, algo interessante de ser analisado pelo ponto de vista da educação, pois, podemos em sala trabalhar algo para desarraigar o tradicional de cena, assim criar um ambiente dentro da aula, um novo mundo, que seja lúdico, podendo ou não ser interessado em conteúdo, algo que será destacado à frente. A contribuição de Pimentel (2010, p.13) é relevante ainda por trazer o entendimento que “o universo lúdico é parte indissociável da condição humana e tem participação criadora no cotidiano”. Então, quando o educador for criar algo que esteja relacionado ao lúdico, por exemplo, pensar num jogo, isso deve ser feito com esmero, pois está criando uma certa cultura. Outra contribuição está relacionada a uma reflexão sobre estímulos e condições para o lúdico, pois sempre se pensa em criar uma espécie de atmosfera para realizá-lo, mas aparentemente ele se manifesta e não necessariamente é criado. O autor destaca que não se pode controlar, adestrar e reduzi-lo, em virtude de se trata de uma mola propulsora, um impulso. Nesse sentido, ele sugere que deve tentar intervir, porém nada de maneira exacerbada, pois se trata de um fenômeno que não pode ser medido e contabilizado, mas é, de fato, percebido enquanto uma dimensão, quando bem “criado”, pode contribuir na vida individual e social.
Mais um aporte teórico para esse trabalho acerca do lúdico foi o “Dicionário crítico do Lazer”, principalmente, o capítulo escrito por Christianne Luce Gomes, que também foi a organizadora do livro. Na seção em questão, não só traz à luz uma discussão acerca do vocábulo “Lúdico”, mas também ressalta que há uma restrição do lúdico à fase da infância, isto é, que não é algo atinente aos adolescentes ou adultos. Nosso entendimento é semelhante ao de Gomes (2014), pois afirma que essa restrição não é pertinente. O lúdico é uma força que não pode estar restrita apenas às crianças, pois isso foi algo criado culturalmente, assim também deve acabar, porque urge a necessidade de um basta para essa ideia de lúdico para um público e não para outro. Essa ideia de que a vida só pode ser leve e feliz no parque de diversão, no shopping, numa praça, no entanto no trabalho e na escola isso deve ser proibido, pois sempre é necessário fazer algo sério e rigoroso.
A autora – numa perspectiva de fichamento-dissertativo - destaca, a partir de Silvino Santin, o lúdico como impulso que habita o imaginário humano e contrapõe-se à “coisificação ”, à racionalização técnica, à razão científica e a lógica etc. As ideias de Gomes foram decisivas na reflexão para a promoção do lúdico nas aulas de Língua Portuguesa, uma vez que o pensamento acerca do lúdico era direcionado ao público infantil e tomado como algo não-sério e, portanto, que não deveria fazer parte do ensino médio, principalmente, numa escola técnica e num momento de pandemia. Gomes trouxe, enquanto contribuição, uma espécie de fomento, isso porque estabelece o lúdico como algo sem fronteiras, algo que não pode ser restrito, porém sim que esse algo é amplo, diverso, rizomático e, na educação, isso é essencial, sobretudo, pelo fato de trabalhar com indivíduos diversos, curiosos, irrequietos.
Portanto, percebemos, mesmo panoramicamente e lançando mão de uma intertextualidade com a literatura, pois Drummond, em “As sem-razões do amor”, diz que o amor foge a dicionário e a regulamentos vários, nesse viés também é o (conceito de) lúdico. Trata-se de algo que sabemos que há, algo presente, algo que está em nós, uma espécie de energia. Como colocado anteriormente, uma mola propulsora, um fenômeno, uma propensão, mas que nós queremos sempre conceituar, classificar, orientar, assim, Drummond quando fala do amor, faz lembrar Nelson Marcellino (1990), pois as definições de lúdico são pouco esclarecedoras. O que podemos fazer é, sem exageros, tentar promover ações, criar atividades potencializadoras para o lúdico e esperar que ele se manifeste.
3 MATERIAL E MÉTODOS
A seleção dos portais foi motivada pelo conhecimento prévio de outras pesquisas, pela confiança do material depositado, por servir de referência para outros pesquisadores, além de possibilitar acesso à temática de maneira prática, objetiva, intuitiva e detalhada no tocante aos filtros disponibilizados. Assim, a partir do mês março de 2020, iniciou-se a busca pelo material bibliográfico em periódicos, para saber, de maneira ampla, o que pesquisam atualmente sobre a ludicidade e a educação, uma vez que os livros destacados na seção anterior são fruto de anos da graduação e leitura por pesquisas independentes. Enfim, obras que sempre sustentaram a prática pedagógica.
O primeiro portal foi o “scielo.org”, assim foi inserida a palavra “Ludicidade”, logo após, as especificidades, a partir do filtro, foram realizadas. De todo modo, foi ordenado pela prioridade de publicação dos trabalhos mais recentes (últimos cinco anos), bem como de publicação nacional. Foram encontrados oito (8) textos.
Em seguida, foi feita a mesma busca no site da BVS – biblioteca virtual em saúde, os filtros foram: idioma “Português” e Pesquisa dos últimos cinco (5) anos. Foram encontrados 173 textos, dessa forma, mais filtros foram utilizados para aproximar da área da educação escolar, por isso, foi adicionado o filtro “Index Psicologia - Periódicos técnico-científicos”, foram encontrados 29 textos. Então, foram lidos os títulos para selecionar os textos mais afins a essa pesquisa, resultando na seleção de 12 artigos. A escolha pela BVS se deve ao fato de depositar artigos da “Psicologia”, que, por sua vez trata do lúdico e, portanto, o resultado foi positivo na busca de material.
No portal da CAPES foi inserido o vocábulo “lúdico”. Como esperado, vários textos foram explicitados, no entanto, para restringir a pesquisa e relacionar a esse trabalho, foram colocados alguns filtros, a citar, idioma o “português”, publicações de 2016 a 2021 e enfoque na educação. O resultado foi de 57 artigos, então, para analisar os trabalhos melhor avaliados, foram escolhidos 42 para leitura dos títulos mais contíguos à investigação.
Sendo assim, a base de orientação deste trabalho segue o que destaca Marconi e Lakatos (2003, p.261), quando falam de artigo de argumento teórico, porque “apresenta argumentos favoráveis ou contrários a uma opinião”. Um trabalho bibliográfico que fará ao final um relato de experiência da utilização do lúdico em sala sustentado pelo referencial teórico aqui visto. Além disso, o conteúdo do artigo é relacionado ao “ levar ao conhecimento do público intelectual ou especializado no assunto ideias novas (por isso haverá destaque para o que traz a BNCC e o contexto do ensino remoto), para sondagem de opiniões ou atualização de informes.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Como explicado no capítulo anterior, foi realizada uma pesquisa em periódicos, no entanto, não há necessidade de dissertar sobre todos, já que a intenção maior foi entender mais sobre o lúdico e direcionar a prática pedagógica. Então, fez-se uma seleção e, a partir de agora, veremos os textos.
4.1 Anúncios nos periódicos acerca da ludicidade
Em “Escola de tempo integral e ludicidade: os pontos de vista de alunos do 1º ano do ensino fundamental”, de Nair Correia Salgado Azevedo e Mauro Betti, a ludicidade é estudada numa escola de tempo integral, sendo destaque ao ensino prazeroso e diferente acesso a diferentes produções culturais humanas, como o jogo e as brincadeiras. Neste trabalho um caso é bastante interessante:
(...) diante da pressão social em favor da priorização da alfabetização e do letramento, há o risco de o lúdico e o movimento serem pouco valorizados na formação educacional das crianças e serem percebidos por oposição às atividades escolares “sérias” (ler, escrever, contar), como passatempo, como uma espécie de compensação com que se premiam as crianças. (AZEVEDO e BETTI, 2014, p.259)
Percebe-se que há uma espécie de marginalização – no sentido de deixar de lado - do lúdico, pois ele não é visto como algo importante, mas como algo não-sério, não obstante se sabe que o jogar, o brincar e o lazer são sérios, mas talvez não pela perspectiva da escola tradicional ortodoxa. Distinta contribuição que o texto traz e com ela compactuamos – mas sem rejeitar outras teorias basilares, pois o passado é um ponto de reflexão - é o fato de colocar o lúdico como algo de natureza social, cultural e histórica. Dessa forma e isso é bem demonstrado no texto, há uma ênfase na promoção de atividades que coloquem os discentes como protagonistas, podendo ser pensado o lúdico das mídias e das tecnologias contemporâneas. Isso fora realizado em aulas e assim será explicitado na seção pertinente.
Segundo texto, “Corpo, festa e ludicidade: a cultura maringaense retratada em telas”, de Teixeira et al (2011), a ludicidade pode aparecer também nas telas da artista plástica Lilia Lobo, sendo o enfoque o corpo, porque é o meio de expressão do sujeito. O trabalho mostra que o lúdico pode ser macro, isto é, não restrito a um espaço, pois está na cidade. Isso é bastante interessante, pois encara, de certa forma, o lúdico como fenômeno, mas o conteúdo da obra – corpo – é percebido como constructo social, dessa forma, não se pode generalizar, mas perceber essas contradições. A festa, como elemento também deste trabalho, contextualiza a situação, pois ela proporciona essa variabilidade de pessoas, bem como “(...) libertar-se momentaneamente dos padrões e normas sociais, desfrutando de prazer e diversão, pois a ludicidade, sendo categoricamente uma dimensão que permeia o fenômeno festivo, pode atribuir novos significados ao corpo”. (2011, p. 408). Para findar, há uma grande observação feita, porque destaca que o trabalho da artista é muito rico, mas não é dado o devido valor, porque vivemos numa época que dá valor ao material, não às sensações, à subjetividade, aos sentidos. Há uma relação da fala do professor com o que vimos sobre Huizinga, quando fala da interpretação lógica. Ficamos muito ligados à razão e reprimimos as emoções.
Em “Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos”, de Bombassaro e Vaz (2009), há uma inclinação sobre a intervenção no corpo como promoção da saúde, mostrando que utilizavam de políticas e leis para promover essa intervenção, sendo a Educação Física uma espécie de ferramenta, pois a prática de exercícios físicos era uma obrigação. O público infantil foi alvo dessa ideologia, pois era nessa etapa que se deveria começar a construir o homem, portanto, havia uma interferência até na subjetividade da criança. Nessa perspectiva do trabalho, foi utilizado o jogo, bem como o esporte nessa intervenção no corpo. Concluiu-se que a Educação Física é um dispositivo da biopolítica. Assim, podemos afirmar que o lúdico pode ser usado para diversos fins, pois é uma construção social, logo, quem constrói essa sociedade, ou seja, os governantes podem moldar as pessoas a partir dos jogos. Para nós essa contribuição é significativa, na medida que traz o alerta no momento de aplicar algo, pois estamos influenciando o corpo discente, por isso o professor deve ter bastante sensibilidade na prática, mesmo virtual.
O artigo “Educação e ludicidade: um diálogo com a Pedagogia Waldorf”, de Andrade e Silva (2015), traz também uma contribuição considerável, pois faz um diálogo com os trabalhos de Waldorf e Luckesi. Entre tantos argumentos carregados de valores, podemos destacar que a ludicidade é um estado interno do sujeito, que vivencia uma experiência plena. Ainda há destaque para os instrumentos, pois o lúdico não vive em brinquedos ou mesmo jogos, mas esses podem proporcionar o lúdico. De todo modo, o lúdico está no sujeito que vivencia uma experiência lúdica, pois está transcende o viés estritamente racionalista, porque há um pendor para o desenvolvimento cognitivo, emocional, ético, criativo, físico do educando como um ser multidimensional (SILVA, 2015, p.107). Mais um texto que respalda a ideia já defendida aqui preteritamente, porque sabemos que o jogo em si não traz o lúdico, mas pode ajudar a manifestá-lo, de toda forma, discorremos sobre o termo “potencialmente” atrelado ao lúdico.
Em “A ludicidade da criança e sua relação com o contexto familiar”, de Raquel Conte Poletto , grosso modo, percebemos uma abordagem mais social, pois fala da questão familiar, da vulnerabilidade, no desenvolvimento da criança, em razão de que é complexo falar do lúdico sem relacionar a esses fatores, vejamos: “Realmente sabe-se pouco a respeito do brincar das crianças em situação de pobreza, bem como a respeito da visão dos familiares e de suas interações com as seus filhos em atividades lúdicas (POLETTO, 2005, 68). Inicialmente, pode-se pensar que isso não está relacionado à educação, mas basta avançar no processo que se percebe um grande laço, pois são essas crianças que estão na escola. São crianças com problemas sociais, emocionais, econômicos e até cognitivos que chegam aos professores que, por sua vez, acham que inserindo o lúdico no ensino será mais produtivo, mas como isso ocorreria (?), se os alunos chegam à sala com inúmeros problemas que não são profundamente conhecidos? Então, o processo é bem difícil e requer bastante capricho, tanto teórico quanto prático. Claro, a pesquisa de Poletto trata de outras questões como o brinquedo e a família, não obstante, o que mais se evidencia para nossa pesquisa é o olhar sobre o social e as implicâncias.
Em “O brincar e a invenção do mundo em Walter Benjamin e Donald Winnicott”, de SEKKEL (2016), o objetivo é a discussão e articulação do conceito de brincadeira em Walter Benjamin e Donald Winnicott, mas fazendo uma relação com clássicos como Homo Ludens. O artigo traz à tona o brincar – experiência criativa - como fundamental, destacando o desenvolvimento emocional como continuidade do ser, por isso é lícito ter muito cuidado na criação das crianças. No caso da obra, utiliza-se, proeminentemente, o bebê. A ludicidade aparece, quando a pesquisadora destaca a ressignificação que a criança realiza, porque, a partir da imaginação, ela tem uma incrível capacidade de estabelecer novas relações, sobretudo, quando há um meio ambiente propício.
Em “O Jogo com Regras Explícitas Influencia o Desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores? ”, de Pinheiro, Damiani e Junior (2016), traz como objetivo investigar se o jogo com regras explícitas influencia o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores (FSP – memória, atenção, percepção, raciocínio e tomada de consciência) de alunos com história de fracasso escolar no ensino fundamental. A ideia foi a de realizar a mediação entre os sujeitos e o jogo, atuando na ZDP dos primeiros, pois o jogo subsidia no desenvolvimento da personalidade. Claro que há várias nuances no texto que mostram inúmeros problemas no processo educacional, porém relacionamos a ótica dessa pesquisa à pertinência do jogo para memória, atenção, raciocínio e tomada de consciência.
No artigo “ Ressignificação cultural nas brincadeiras de faz de conta de crianças de quatro a seis anos no município de Camaçari-BA”, de Brandão, Bichara e Barreto (2017), as ideias são importantíssimas, quase impossível resumir tudo em um parágrafo ou dois, todavia, podemos destacar alguns pontos, por exemplo, “Na brincadeira simbólica, a criança não só vai além da realidade, como também reconstrói as vivências adquiridas nos contextos socioculturais (2017, p.70).”; “O brincante, ao viver um personagem distante da sua realidade ou ao usar um objeto atribuindo-lhe propriedades diferentes das que possui, confere um caráter transgressor a atividade lúdica. (2017, p.71) ”; “as crianças não são meros elementos passivos da cultura ao seu redor, elas são agentes ativos de transmissão e criação cultural que participam de rotinas” (2017, p.71); “O que chama bastante atenção é que a criança, mesmo muito pequena, é observadora da realidade” (2017, p.79). Trata-se, portanto, de uma obra incrível, pois foi uma pesquisa com 60 crianças, com bons critérios de análise, num período de oito (8) meses, com quatro episódios de brincadeiras. Em outras palavras, uma riqueza relacionada ao brincar, colocando a criança em papel ativo, não como mero receptor de informações ou comandos. Percebe-se, dessa forma, transmissão, elaboração e recriação da cultura. Todas essas ideias podem e devem ser canalizadas para o ensino, porque mostra que posicionando o discente como cerne do processo, a educação gera melhores frutos. Nesse mesmo sentido, Silva e Pereira (2018) mostram o papel ativo da criança nas atividades lúdicas. No mundo das brincadeiras, a criança expressa seu modo de agir e relacionar, por exemplo. No derradeiro caso, há interação com culturas e, de tal maneira, contribui para o processo de desenvolvimento, pois se sabe que o indivíduo se constrói à medida que se apropria da cultura, mas isso ocorre de forma criativa, pois o brincar é estratégia adotada para transformar em algo exitoso. Elas fazem um alerta, porque quanto melhor a qualificação profissional do educador, mais há possibilidade de estar aberto às atividades lúdicas (SILVA; PEREIRA, 2018, p.535). Percebe o educador, nesse contexto, como um incentivador, que dirige a brincadeira e proporciona um ambiente seguro, pois o discente é ativo e precisa vivenciar o mundo que o cerca com proteção.
Pinto e Bichara (2017) reforçam a ideia do brincar, mostrando que é importante para o desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e social. Trazem, assim como outros teóricos, a importância do espaço físico para realização das atividades, haja vista pode favorecer ou impedir a exploração e o contato com outras crianças. O trabalho versa sobre outras questões, dado que há um estudo interessante sobre os desenhos elaborados por crianças, mas numa perspectiva psicológica. Assim, percebe-se que o assunto fomenta discussões em várias áreas do conhecimento, pois o brincar é um ato que pode ser captado por vários olhares, várias perspectivas, haja vista é algo holístico.
Diante da leitura dos textos e do interesse para essa pesquisa, os textos acima brevemente discutidos foram selecionados em detrimentos dos demais, mas isso não se deve a qualidade do material encontrado nos periódicos, uma vez que são excelentes, mas sim pela perspectiva aqui adotada, por exemplo, o texto “Ludicidade: compreensões conceituais de pós-graduandos em educação” tinha um viés bem semelhante a esse trabalho, por isso não fora abordado num sentido de não influenciar a construção deste. “Ludicidade e narrativa: estratégias de humanização na graduação médica”, é direcionado à questão médica, como o próprio título já enfatiza, ao passo que “Jogos pedagógicos e responsividade: ludicidade, compreensão leitora e aprendizagem” direciona-se para o campo linguístico, sendo sustentado pela teoria bakhtiniana, que, de certa forma, vai a outra perspectiva. O que interessa é afirmar que há bons textos, os quais se encontram teoricamente em determinados momentos, mas também possuem outras abordagens peculiares, assim, foi “retirado” o que havia de melhor para aproveitar na prática em sala.
4.2 A BNCC à Luz da Ludicidade.
Antes de falar da ludicidade em si, é necessário comentar sobre a homologação do documento, que ocorreu em 14 de dezembro de 2018. Dessa forma, institui-se uma base em todo país, claro, para Educação Básica, isto porque se trata de um documento normativo que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os discentes devem desenvolver.
O documento é disponibilizado gratuitamente no site oficial, possui 600 páginas. Está dividido em três etapas, além da introdução, cada uma focada em uma vertente, mas que são complementares entre si, são ensino infantil, fundamental e médio.
Nesta pesquisa propedêutica, que analisa publicações em periódico e a BNCC no tocante ao lúdico, sabemos ainda que não há possibilidade de exaurir este último documento, assim, frisamos em analisar a área da linguagem, pois é nela que se insere a Língua Portuguesa (LP) e a Educação Física, mesmo o trabalho dando enfoque àquela área, há uma análise dos textos voltados para a última área, pois como já destacado, o lúdico pode ser tratado em qualquer componente curricular, mas a EF ganha mais destaque, assim canalizou-se ideias para as aulas de LP.
O texto traz a seguinte redação:
Na BNCC, a área de Linguagens é composta pelos seguintes componentes curriculares: Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e, no Ensino Fundamental – Anos Finais, Língua Inglesa. A finalidade é possibilitar aos estudantes participar de práticas de linguagem diversificadas, que lhes permitam ampliar suas capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas, como também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade às experiências vividas na Educação Infantil. (BRASIL, 2018, p.63)
Além disso, há:
A Base Nacional Comum Curricular da área de Linguagens e suas Tecnologias busca consolidar e ampliar as aprendizagens previstas na BNCC do Ensino Fundamental nos componentes Língua Portuguesa, Arte, Educação Física e Língua Inglesa – observada a garantia dos direitos linguísticos aos diferentes povos e grupos sociais brasileiros. Para tanto, prevê que os estudantes desenvolvam competências e habilidades que lhes possibilitem mobilizar e articular conhecimentos desses componentes simultaneamente a dimensões socioemocionais, em situações de aprendizagem que lhes sejam significativas e relevantes para sua formação integral. (BRASIL, 2018, p. 481)
Tomamos esses princípios como norteadores para prática pedagógica, mas tentando sempre relacionar aos textos clássicos e artigos destacados nas seções anteriores. Após análise desses excertos, buscou-se outros, mas agora diretamente relacionados à ludicidade. Claro, felizmente a palavra ou termos relacionados foram encontrados, selecionamos alguns para trazer ao debate. Algo que chama muito atenção foi a relação com a família, colocando como meio de troca de experiências e escuta de falas sensíveis, isso serviu para relacionar com as ideias estéticas do lúdico, aquilo que é difícil de ser mensurado. Acrescenta-se ainda que no Ensino Fundamental há a necessidade de trabalhos de campo, entrevistas, observação a fim de desenvolver análises e argumentações, assim potencializaria o pensamento crítico e criativo. Esses princípios foram bem observados, mas eram bem generalistas, assim, foi pesquisado diretamente na seção 4.1.1, da BNCC, seção “Língua Portuguesa”, que está diretamente relacionada à experiência lúdica feita em classe, que será dissertada na próxima seção. Um dos caminhos apontados pelo próprio documento e que foi utilizado na prática pedagógica está na ênfase para práticas existentes na sociedade, nesse momento as redes sociais são imprescindíveis.
As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. As novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis a qualquer um a produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes sociais e outros ambientes da Web. Não só é possível acessar conteúdos variados em diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais etc. Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades. (BRASIL, 2018, p.68)
E ainda:
(...) cultura digital: envolve aprendizagens voltadas a uma participação mais consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que supõe a compreensão dos impactos da revolução digital e dos avanços do mundo digital na sociedade contemporânea, a construção de uma atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais, aos usos possíveis das diferentes tecnologias e aos conteúdos por elas veiculados, e, também, à fluência no uso da tecnologia digital para expressão de soluções e manifestações culturais de forma contextualizada e crítica.(BRASIL, 2018, p.474)
Não fica apenas nesses pontos, pois ainda é gizado que “cabe, então, proporcionar aos estudantes as experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens. ” (BRASIL, 2018, p.68). Sabe-se que no contexto da sala de aula, o professor deve tratar ainda pluralidade de ideias, direitos humanos, bem como fazer o discente aprender a aprender sobre cultura, a participação social individual e coletiva.
Internalizados os conceitos basilares, foi pesquisado sobre algo concernente às mídias, bem como sobre ao lúdico, para assim ter uma sustentação teórico-pedagógica para executar a ação, pois mesmo diante da pandemia, a proposta de letramento jamais pode ser parcial, deve-se ter pensamento utópico, isto é, alcançar o máximo de gêneros, por exemplo, para letrar os discentes para o mercado de trabalho, para a vida acadêmica e para atividades do cotidiano. Pensando nessas possibilidades, logo se pensa em primeira etapa na literatura, pois ela tem o poder de unir, muitas vezes, além das questões da linguagem, os conteúdos filosóficos, sociológicos e tecnológicos, quando serve de “ferramenta” pedagógica. Isso é reconhecido e dissertado na BNCC, então se encontra “Ao engajar-se mais criticamente, os jovens podem atualizar os sentidos das obras, possibilitando compartilhá-las em redes sociais, na escola e em diálogos com colegas e amigos.”, “a tradição literária tem importância não só por sua condição de patrimônio, mas também por possibilitar a apreensão do imaginário e das formas de sensibilidade de uma determinada época”, “escolhas podem funcionar como processo de autoconhecimento, ao mobilizar ideias, sentimentos e emoções”. (BRASIL, 2018 p.523) ”. Todas essas orientações combinam com as práticas da instituição, dos docentes da área de linguagem e demais, mas o que ainda se esperava era explicitação do lúdico no texto, mesmo ele podendo ser visto, por outras perspectivas, em todas as passagens da BNCC aqui colocadas. Então há um excerto no texto que normatiza e orientar como relacionar o lúdico à literatura: “ Reconhecer que os textos literários fazem parte do mundo do imaginário e apresentam uma dimensão lúdica, de encantamento, valorizando-os, em sua diversidade cultural, como patrimônio artístico da humanidade. (BRASIL, 2018, p.97)
Na página 482 há uma relação ao termo, mas com a área de artes, considerando que a literatura é arte sobre a palavra, sabemos que há uma espécie de permissão para prática em qualquer área da linguagem no tocante ao ensino médio. Além disso, anteriormente, na página 87, há destaque para o lúdico no ensino de Língua Portuguesa, mas não no ensino médio, porém o próprio documento afirma que as práticas do ensino fundamental devem ser continuadas no ensino médio, ao passo que na página 510 aparece a palavra “lazer”, na seção “campo da vida social”, mas não pondo a literatura ou língua para proporcionar lazer, mas para saber escrever com competência para exigir espaços de lazer. Sensacional essa ideia, na medida em que para praticar lazer ou qualquer outra atividade você deve utilizar bem a língua. Ser, como disse o ilustre Evanildo Bechara, um poliglota da própria língua, pois terá que dominar vários textos em variadas situações comunicativas. Então, poucos são os termos relacionados à ludicidade na BNCC no campo da linguagem, mas há bons indícios e termos associados, principalmente, porque muitos teóricos ainda tomam o lúdico como o mesmo que lazer, jogar, brincar, divertir etc.
Portanto, podemos utilizar a Literatura para o ensino de Língua Portuguesa, principalmente de maneira lúdica, isso em situações que haja um bom planejamento, mas não há garantia do êxito, pois como vimos, criamos situações em ambientes adequados para suscitar o lúdico, mas se trata de um fenômeno que não está dentro de um brinquedo ou jogo virtual. Claro, que esse lúdico, para o ensino de literatura e língua estava, na medida do possível, contribuindo para melhorar debates, produzir materiais, exercitar a cognição, conhecer novas culturas – mesmo que por meio de textos e imagens - e, indiscutivelmente, trabalhar as emoções dos estudantes dentro das possibilidades do docente, uma vez que a literatura traz à tona incríveis sensações. Para fechar, mesmo na BNCC – um documento elaborado por vários especialistas -- percebe-se que nas etapas relacionadas ao Ensino Médio há uma redução do nome lúdico ou termos próximos a ele, quando comparado ao Ensino Fundamental e, sobretudo, Infantil. Isso mostra, até certo ponto, que o lúdico é associado às crianças e não aos adolescentes, algo não pactuado aqui.
4.3 A Experiência do ensino remoto emergencial: lançando mão do lúdico
O ano de 2020 foi bem atípico, o país foi atingido por uma pandemia e consequentemente as escolas foram atingidas. Assim, inicialmente as aulas presenciais foram interrompidas e surgiu um grande debate sobre como o ano letivo seria realizado. Nessa escola pública federal foi realizada uma força-tarefa incrível, desde a elaboração da portaria que regulamentasse o processo, bem como uma caracterização dos alunos para saber se havia recursos para participar das aulas de maneira remota, em outras palavras, on-line.
Então, após meses de discussão entre professores, coordenadores, pedagogos, psicólogos e alunos, foi montado um calendário, sendo o processo educacional de qualidade o foco, mas antes disso, a criação ou resgate dos laços foi visto como algo determinante para o processo, uma vez que nunca havíamos passado por essa experiência. Algo já tinha sido decidido, as aulas não poderiam ocorrer como era enquanto modalidade presencial, que por sinal já era longe do ideal. Após alguns cursos e levando em consideração os textos aqui debatidos, foi pensado, para o componente curricular de Língua Portuguesa, aulas mais dinâmicas, mais interativas e mais participativas no tocante ao envolvimento dos discentes.
Sabemos, como vimos anteriormente, que o lúdico é uma espécie de fenômeno, além disso não pode ser confundido com, por exemplo, o lazer, o brinquedo, o jogo, pois estes podem impelir no surgir do lúdico, mas nada é garantido, por isso falamos em atividades potencialmente lúdicas. As aulas, em alguns momentos, podem ter lazer, mas o lazer não pode ser proeminente, no sentido do quantitativo de aulas, todavia, podem ser organizadas aulas que além de adotar metodologias modernas, possam ainda fazer florescer o lúdico.
Assim, foram aplicadas algumas estratégias que serão elencadas aqui. A primeira e mais importante, bem como antiga, o diálogo, dado que a partir de boas conversas, de boas discussões, os alunos ficam mais confiantes, perdem um pouco da timidez, então, começam a tirar dúvidas, criticar determinadas situações e sorriem mais. Desse modo, deixando o processo, mesmo que remotamente, mais agradável. Outra ferramenta é a leitura-dinâmica, os alunos, por exemplo, liam o texto, mas aquele que errasse algo do texto, nós retornávamos ao início do capítulo. Foi uma experiência sensacional, mas isso não teria ocorrido se não houvesse uma sensibilização para o contexto em que estamos inseridos e, obviamente, com bastante motivação, por isso empatia, sensibilidade, intuição, alegria estavam presentes. Essa mesma dinamicidade foi realizada com determinados aplicativos on-line, por exemplo, Word wall (https://wordwall.net/pt ). Em um determinado dia, usamos para revisar conteúdos gramaticais, por exemplo, substantivos e adjetivos, bem como fazer um “passa ou repassa” acerca desses assuntos e de outros. Nunca era revelado quem teve mais acertos ou erros, mas focávamos sim em saber o que eles achavam da experiência, do tempo para resolução, assim como do estilo da pergunta. Havia muito debate e sempre pediam novas dinâmicas nessa perspectiva. Geralmente, os discentes não acionavam a câmera, portanto, era vista uma imagem fixa, todavia, com as dinâmicas, muitos começaram a ficar mais confortáveis. Abriam a câmera, gesticulavam, falavam sem parar, então, havia uma intervenção, para continuarmos o assunto do dia e possibilitar que alunos introvertidos também participassem. No jogo de perguntas e respostas, muitos comentavam o que tinham errado e que haviam marcado um item diferente porque ficavam ansiosos, mas de uma maneira bastante descontraída, mas preocupados com o conteúdo. Como a participação era livre, eles sorriam e pediam novas rodadas, que, em algumas situações, era algo realizado. Alguns alunos que tinham problemas de conexão com a internet pediam para fazer num outro momento. Era bastante gratificante perceber que algumas ações poderiam dar certo, mesmo que de maneira tão distante.
Essas metodologias foram sensacionais, mas as que marcaram e geraram bastante debate foram três atividades chamadas de construção orientada, pois eles tiveram que produzir um mapa mental - www.goconqr.com - sobre temais polêmicos da sociedade (abordo, uso de drogas, consumo) , depois um podcast – anchor.fm - e, por último, um relatório de viagem on-line - https://driveandlisten.herokuapp.com -, pois era necessário diante da pandemia. Foram aulas síncronas e assíncronas que chamamos de descontraídas e não desconcentradas, pois havia riso, brincadeiras, interação, interdisciplinaridade, mas sem esquecer o assunto. Foram mapas mentais incríveis, bons relatórios e o mais surpreendente, incríveis podcast sobre elementos da tabela periódica, por exemplo. Durante a apresentação dos mapas, todos abriram as câmeras e falavam tudo que haviam pesquisado, depois havia o debate e sempre outros alunos – que não estavam no grupo -- faziam perguntas. Perceberam que assuntos considerados triviais, na verdade, eram bastante complexos, a citar, o consumo. Na produção do relatório, outro gênero textual pertinente, que teoricamente era algo simples, pois eles precisavam ficar passeando virtualmente no mínimo por cinco (5) minutos por uma cidade e destacar problemas diversos, rendeu pesquisas extensas. Muitos alunos fizeram mosaicos de fotos, relataram problemas com o lixo, com o trânsito e buscaram informações complementares em jornais. No dia da apresentação do relatório, boas narrativas foram feitas, uma vez que destacaram os problemas que viram em outras cidades, algo que eles achavam que era exclusivo do Brasil. O trabalho foi realizado em duplas e percebia a imaginação diferenciada entre os componentes da dupla. O lúdico surge na imaginação, na criatividade, no prolongamento da atividade no tocante ao tempo e ao número de páginas, que podemos traduzir como empenho, satisfação, curiosidade etc.
Após essa etapa, ainda foi realizada a criação de um canal no Youtube (com acesso restrito) para falar sobre pessoas ilustres como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Ziraldo, mas esse material não pode ser exibido, uma vez que pertence aos alunos. Todavia, em uma aula de socialização das práticas, eles, em grupos de até cinco integrantes - afirmaram que foi bastante prazeroso, instigante, desafiador e que proporcionou momentos de alegria, além de trazer um conhecimento novo, pois muitos não conheciam estudiosos que deveriam apresentar. Assim sendo, percebe-se que o lúdico não está restrito ao brinquedo, ou apenas lazer, estes podem auxiliar, mas o lúdico pode ser suscitado de outras maneiras, principalmente, nas relações humanas.
Para finalizar as atividades do último bimestre, fora realizada uma prova (formulário), no entanto antes houve a leitura e debate da adaptação ou transposição do clássico “O Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto. Assim, foi utilizada uma HQ para a prática, mas sempre lembrando aos estudantes que a revista em quadrinho não substitui a obra literária, mas soma no processo de leitura e interpretação. No final, houve um debate e prova, que os alunos poderiam refazer a partir de orientações, pois nesse momento de ensino remoto, o que mais vale é o processo, o debate, a crítica e não um resultado objetivo. No entanto, antes da prova, foram feitas, a título de motivação, algumas brincadeiras virtuais utilizando o www.mentimeter.com e kahoot.com. Infelizmente, nem todos participaram, mas não foram prejudicados no sentido de nota ou frequência. De todo modo, os discentes que participaram ativamente das dinâmicas logo comentavam que acharam bem interessante, que poderiam ser feitas outras e utilizar outros livros, assim os momentos foram mais agradáveis e leves. Segundo os discentes, ler histórias em quadrinhos é muito difícil no começo, porque tinham uma visão de que era tudo fácil na infância.
A pandemia provocou um impacto direto nas escolas e claro em todos o processo de ensino, pois não se podia ensinar on-line da mesma maneira que era ensinado presencialmente, desta forma, percebeu-se já nos momentos de acolhimento que era necessário não só inovar, mas também resgatar os alunos e tentar promover a permanência deles. Desse modo, sabia que era necessário lançar mão de metodologias mais ativas, mais dinâmicas e mais modernas, sempre com o enfoque no protagonismo dos discentes. Fora necessário buscar textos que orientassem esse trabalho mais lúdico e muitas publicações da seara da Educação Física foram percebidos como mais determinantes, mesmo sem deixar de levar em consideração as teorias linguísticas, mas pelo fator da ludicidade ser, com mais frequência, objeto de estudo da EF - também numa perspectiva corpórea - isso foi canalizado para área da LP, mas trouxe uma reflexão importante que serve para estudos futuros, a pertinência da EF humana no campo da linguagem.
De todo modo, o que se percebeu é que o lúdico é algo, de fato, muito amplo, que pode aparecer nas dinâmicas e deve ser motivado em várias práticas seja presencial seja de forma remota. Notou-se que quando há atividades que motivem o aluno, há maior engajamento, há mais trabalho colaborativo e união para solução de problemas. Que atividades potencialmente lúdicas, como podcast, debates colaborativos, mediação de leituras, mediadas por plataformas como kahoot.com, anchor.fm, www.mentimeter.com, https://driveandlisten.herokuapp.com e www.goconqr.com são importantes, mas isso só funciona com diálogo, com bastante empatia e escutando as necessidades dos alunos, para então essas estratégias serem implantadas gradativamente e, claro, relacionando ao conteúdo programático da instituição e da formação subjetiva e cidadã dos discentes, por isso não pode ser algo mecanizado, mas que faça criticar, refletir e construir.
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