Introdução
Este trabalho objetiva contribuir com os estudos em gênese textual que (raramente)[i] focalizam crianças de 7 anos de idade que escrevem de forma colaborativa, em díades, seus primeiros textos. Assim, ele se organiza do seguinte modo: inicialmente, apresentaremos o campo da Genética Textual (GT), seu nascimento, seus precursores e explicaremos, de forma sucinta, a sua importância; em seguida, nos centraremos sobre um de seus principais conceitos, a rasura, que representa os traços reflexivos presentes em processos de escrita, e a forma como diferentes autores classificam suas funções (Fabre, Grésillon, Biasi e Willemart) e tipos (Felipeto, Calil).
Dando seguimento, abordaremos os aspectos metodológicos do protocolo adotado para a coleta e o recorte dos dados. Neste ponto, falaremos acerca da escrita colaborativa, além de apresentarmos quem são os sujeitos da pesquisa e qual o instrumento de investigação científica utilizado na coleta. Na sequência, procederemos à análise dos dados e à discussão dos resultados, esperando mostrar com quais funções de rasura os alunos desta faixa etária estão mais familiarizados e com quais têm mais dificuldades de operar, além de apresentarmos os tipos de rasura mais comuns em manuscritos de alunos do 2º ano do ensino fundamental, quando escrevem colaborativamente.
[i] São escassos os estudos que analisam processos (e não o produto) de escrita do qual participam alunos entre 7 e 8 anos, recém-alfabetizados e que escrevem seus primeiros textos. Alguns são propostos por Felipeto (2012, 2019) e Calil (2008, 2011).
Genética Textual: da "coisa literária" aos "universais da escritura"
A Crítica Genética é um novo campo interdisciplinar[i] que surgiu com a compra de uma importante coleção de Haine, em 1966, feita pela Biblioteca Nacional da França, visando analisá-la e documentá-la. A partir disso, no ano de 1968, o CNRS (Centre National de La Recherche Scientifique) criou uma equipe de pesquisadores, fundada e dirigida por Louis Hay, encarregada de classificar, explorar, editar e analisar essa coleção[ii]. A nova corrente recebeu esse nome, conforme Grésillon (1991), após a publicação de uma coletânea publicada por Louis Hay, os Essais de Critique Génétique (em 1979, pela Editora Flammarion) e, desde então, tem apresentado um rápido crescimento, de acordo com Kamada (1997): sua "eficácia interpretativa" tem permitido à Crítica Genética "ampliar seu campo de aplicação. Assim, obras teatrais, filosóficas, até mesmo pictóricas e arquitetônicas figuram entre as reflexões genéticas propostas até então" (1997, p. 67).
Como decorrência da expansão de seu campo, Doquet (2003) propõe a substituição do nome "Crítica Genética" para "Genética Textual", uma vez que o termo "Crítica" aparece sempre muito relacionado à "coisa literária" e não abrange o conjunto das pesquisas preocupadas com o processo de produção, seja de uma peça teatral, de uma obra literária ou, como em nosso caso, de processos de escrita produzidos em sala de aula.
Para Grésillon (1991), este novo campo objetiva descrever e explorar os mecanismos de escritura, confronta o que o texto foi com o que poderia ter sido, contribuindo, assim, para relativizar a noção de texto fechado, concluído e para dessacralizar a própria noção de Texto (GRÉSILLON, 1991, p.7-8), de modo que é necessário confrontar a obra de todas as maneiras possíveis, levando em consideração o seu processo de escrita (o escrever, o apagar, o rasurar, o reler, o acrescentar etc.), ou seja, o que antecede e procede a sua escritura. Para a autora, por meio desse novo campo, com a análise do processo da escritura, é possível “adivinhar, desvelar, desconstruir e reconstruir os caminhos da criação” (GRÉSILLON, 2007, p. 17).
Nesta mesma direção vai Fenoglio (2013), quando afirma que “a genética dos textos visa [...] elucidar o trabalho da escritura e interpretar seu processo” (2013, p. 21). Esta pesquisadora ressalta, ainda, que, inicialmente, a disciplina genética foi fundada com base nos manuscritos de escritores, entretanto, houve um avanço em relação ao objeto de análise e hoje essa corrente está diversificada em função dos gêneros e tipos textuais materializados pelos manuscritos literários, científicos, de direito, etc., bem como os manuscritos de alunos recém-alfabetizados, que são o objeto dessa pesquisa.
Para Willemart (1993, p.17), o crítico genético ou geneticista deve estar atento a todos os processos para circunscrever o nascimento da obra, pois, segundo ele, o estudo do manuscrito permite resolver todas as dificuldades, seja as de averiguar a autenticidade do texto, a data de composição de um escrito ou desvendar o que ficou escondido por trás das rasuras, das manchas e também dos rabiscos, e esta é a sua vantagem, ou seja, testemunhar o conjunto genético escrito que está ali conservado para construir hipóteses dos caminhos percorridos durante a criação daquela escrita e elaborar possíveis significações.
De acordo com Grésillon, o manuscrito
porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas (GRÉSILLON, 2007, p. 52).
Assim, o ato de escrever requer necessariamente o uso de rasuras, a tal ponto que Barthes, em um seminário na Rapp Square (1976), pronunciou: "La litterature c'est la rature". A esse propósito, Biasi comenta:
A obra literária escrita no primeiro rascunho sem a menor correção é provavelmente uma ficção, uma fábula que só tem credibilidade a partir do cruzamento entre uma certa ideia histórica de heroísmo intelectual [...] e a existência de textos publicados ou completos cujos rascunhos e arquivos preparatórios desapareceram completamente (BIASI, 1996, p. 01).
Se escrever parece ser indissociável do ato de rasurar, no próximo tópico, abordaremos os tipos e as funções da rasura apresentados pelos autores aqui analisados, os quais serão confrontados e discutidos.
Funções da Rasura
É possível descobrir os mecanismos que envolvem a criação textual através da análise do processo de produção por meio dos tipos e das funções das rasuras feitas pelos escreventes. Acerca da rasura, Grésillon afirma que ela possui um caráter paradoxal, uma vez que é
simultaneamente perda e ganho. Ela anula o que foi escrito ao mesmo tempo em que aumenta o número de vestígios escritos. É nesse próprio paradoxo que repousa o interesse genético da rasura: seu gesto negativo transforma-se para o geneticista em tesouro de possibilidades, sua função de apagamento dá acesso ao que poderia ter se tornado texto (GRÉSILLON, 2007, p. 97).
Ou seja, à medida que o autor apaga algum termo, ele acrescenta outro que julga mais apropriado para o seu texto. Essa anulação, formada por intermédio da rasura, se transformará em novas possibilidades de escrita.
Conforme aborda a geneticista, a rasura apresenta três funções: a primeira, a que fornece opções para a reescritura é a substituição, “as duas outras servem seja para deslocar, seja para suprimir definitivamente” (GRÉSILLON, 2007, p. 100). Para Grésillon, reescreve-se para conseguir melhor adequação do texto, desloca-se porque se julga que determinada unidade fica melhor acima ou abaixo no texto e “suprime-se para estreitar, renunciar, rejeitar, censurar, etc.” (GRÉSILLON, 2007, p.100).
Biasi (1996) apresenta a rasura como um componente complexo da escrita, e de acordo com sua funcionalidade podem ser rasuras de substituição, supressão ou exclusão, uso ou gestão, transferência ou deslocamento e suspensão dilatória ou provisória, sendo as mais conhecidas as de supressão e as de substituição, esta última a mais complexa.
Biasi (1996, p. 10) define as seguintes funções apresentadas anteriormente:
- Substituição: é um traço marcado na decisão de cancelar um segmento previamente escrito para substituir outro segmento;
- Supressão: eliminação do segmento sem substituição;
- Uso ou gestão: é usada para registrar o fato de que um segmento foi o objeto da exploração ou uma reescritura; ou seja, o escritor faz uma lista de termos e à medida que faz uso de um termo determinado, ele o anula para saber que já foi utilizado.
- Transferência ou deslocamento: é usada para marcar o projeto ou ato de mover um segmento escrito para reinserção em outra área do mesmo contexto escrito;
- Suspensão dilatória ou provisória: forma particular de rasura para delimitar o espaço de uma futura rasura, em marcação de um segmento que pode dar lugar a um eventual cancelamento ou correção posterior. Como exemplo, é quando uma palavra fica acima ou abaixo de outra palavra e, posteriormente, o escritor escolhe qual permanecerá em seu texto, provocando assim uma rasura.
Desses cinco mecanismos distintos (substituição, eliminação, transferência, gestão e suspensão) Biasi expressa que os dois primeiros designam gestos de escrita, enquanto os outros três são formas mais raras.
Já no trabalho apresentado por Willemart “talvez vejamos desabrochar uma teoria única, mas não irrefutável que permite entender um pouco melhor como nasce um texto ou uma obra de arte” (1993, p.134) além de “uma tentativa de criar uma teoria da gênese da escritura” (1993, p.23).
De acordo com este pesquisador (1999, p. 198), conforme observado em seus estudos, existem quatro operações linguísticas comuns encontradas nos rascunhos e que, segundo ele, motivam a rasura, operações essas as quais denominaremos “funções” para uma melhor compreensão e delimitação das nomenclaturas aqui apresentadas, que são “o acréscimo, a supressão, a substituição e o deslocamento”.
Com uma nomenclatura diferente, em vez de rasura, Fabre (1986) traz o termo variante, que, de acordo com Grésillon (2007) significa a diferença entre dois estados de texto, e que, “tanto “variante” quanto “rasura” evocam [...] intervenções pontuais, locais, efetuadas em ordem dispersa, e sugerem gestos completamente atomizados” (GRÉSILLON, 2007, p. 109).
Em relação às operações envolvidas nas variantes, Fabre adota a terminologia proposta por Bellermin-Noel, Grésillon e Lebrave; entretanto, diferente deles, seu trabalho está voltado ao campo da escrita de crianças em idade escolar, enquanto o dos autores citados trata dos manuscritos literários de escritores experientes. De acordo com os pesquisadores expostos por Fabre (1986, p. 69), essas variantes incluem quatro “tipos”:
1. Adição: Um retorno ao escrito, que pode ser de um elemento gráfico, um acento, uma pontuação, um grafema, uma palavra e uma ou mais frases.
2. Supressão/Exclusão: quando não há substituição do elemento excluído e que pode estar relacionado a várias unidades, como a acentuação, o grafema, a sílaba, um sintagma e uma ou mais frases.
3. Substituição: quando há uma exclusão seguida de um novo termo. Ela lida com um grafema, uma palavra, uma frase ou em conjuntos maiores.
4. Deslocamento: permutação de elementos, o que resulta na modificação de sua ordem na cadeia.
Fabre (1986) não esclarece a distinção entre “tipo” e “função” e faz uma confusão entre os dois termos, segundo a autora, esses “tipos”, aos quais adotaremos como “funções” em nosso trabalho, são claramente distinguíveis na condição de escrita legível, condições essas nem sempre aplicadas por escreventes novatos. É importante esclarecer essa diferença entre tipo e função, visto que trataremos dos dois termos de forma distinta em nossa análise.
Diante das considerações expostas pelos autores citados, acerca das definições das funções de rasura, é possível observar semelhanças e diferenças nos trabalhos. Mesmo alguns apresentando diferentes nomenclaturas, todos os autores falaram das rasuras de supressão, substituição e deslocamento; restando as rasuras de adição, apresentada por Fabre (1986), a função acréscimo, apresentada por Willemart (1999), que seria uma variação da função de adição e as de uso/gestão e as de suspensão apresentadas por Biasi (1996), como se vê na tabela abaixo, em que sintetizamos as funções observadas nos trabalhos aqui analisados:
Tabela 1: Funções da rasura
FUNÇÕES DA RASURA |
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GRÉSILLON |
BIASI |
FABRE |
WILLEMART |
Substituição |
Substituição |
Substituição |
Substituição |
Supressão |
Supressão |
Supressão/Exclusão |
Supressão |
Deslocamento |
Transferência ou deslocamento |
Deslocamento |
Deslocamento |
|
Uso ou gestão |
Adição |
Acréscimo |
|
Suspensão dilatória ou provisória |
|
|
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar
É possível observar, por meio da tabela acima, em todos os trabalhos apresentados, a complexidade presente no movimento causado pela rasura, ela não é, simplesmente, um erro no percurso, mas um caminho aberto para as novas possibilidades da escrita.
Na próxima parte do trabalho, iremos apresentar a metodologia utilizada na coleta dos dados, bem como explicar, de forma sucinta, como se deu o processo de produção dos textos.
Procedimentos metodológicos
Os dados em análise pertencem ao LAME – Laboratório do Manuscrito Escolar, da Universidade Federal de Alagoas - UFAL (Brasil) e foram coletados através dos seguintes procedimentos: após diversas leituras de histórias em casa e na escola, sugeridas pelas professoras, os alunos são instruídos a formarem duplas, pois participam de uma situação de escrita colaborativa, situação em que dois ou mais participantes assumem a tarefa de escreverem, juntos, um único texto; condição privilegiada, segundo Felipeto (2019), visto que, nela, pode ser observada a gênese da escrita pela oralidade, bem como a oralidade criando a escrita. Para isso, a dupla precisa combinar a história a ser inventada e os alunos se alternam a cada escrita, de modo que, a cada vez, um escreve e o outro dita.
Felipeto (2019) afirma que, do ponto de vista didático-metodológico, “a produção textual colaborativa diática permite que tenhamos acesso ao que os alunos pensam enquanto escrevem” (p. 135), fato que contribui para a análise dos conhecimentos que estão ou não em curso. Após o momento de combinação, é dada à dupla uma folha com micropontos para a criação da história e uma caneta smartpen, que registra a escrita "se fazendo" em tempo real. Em seguida, ocorre o momento da formulação e, por último, há a releitura do que foi escrito para alterar, caso seja preciso.
No Brasil, as filmagens foram gravadas nos dias 20/04/2012 e 13/06/2012; os diálogos foram produzidos para a criação dos textos “Por que a girafa tem o pescoço longo” e “Por que o sol brilha?”, inventados pelas alunas M e S, que se alternaram na escrita, ambas com 7 anos de idade, na época. Em Portugal, as filmagens foram gravadas nos dias 06/02/2015 e 12/02/15 e os diálogos foram produzidos, respectivamente, para a criação dos textos “A Branca de Neve e os três dinossauros” e “O palhacinho”, inventados pelas alunas B e L, que também se alternaram durante a produção escrita, ambas com 7 anos de idade.
Vale dizer que a coleta nos dois países (Brasil e Portugal) seguiu o mesmo protocolo e, em caso de rasura, os alunos foram orientados a colocar o elemento rasurado entre parênteses ou passarem apenas um traço, com vistas a preservar e observar o que foi "apagado". Toda a filmagem, áudio e captura dos momentos antes, durante e depois da produção escrita foi realizada por meio do Sistema Ramos, em que
O registro visual é feito através de câmeras de vídeo, capturando o contexto da sala de aula e a interação entre alunos e professor; o registro sonoro é feito através de gravadores digitais e microfones, capturando a fala espontânea dos alunos escreventes e o diálogo entre os participantes; o registro escrito é feito através de uma caneta inteligente e do programa HandSpy, capturando o traço da tinta na folha de papel (CALIL, 2019, p. 1).
Juntos, esses instrumentos formam um filme sincronizado capaz de capturar em tempo real todos os momentos e movimentos da sala de aula de modo ecológico e didático.
A seguir, apresentaremos a análise dos quatro textos descritos acima, ressaltando quais as funções e os tipos de rasura encontrados nas produções textuais de crianças recém-alfabetizadas aqui analisadas.
Análise de dados
Abaixo, apresentaremos alguns exemplos das funções e dos tipos de rasura encontrados nos processos analisados, classificados a partir das propostas apresentadas pelos teóricos aqui discutidos.
Rasura ortográfica
A rasura ortográfica é aquela que, segundo Gak (1976), estuda as regras que determinam o emprego das grafias conforme as circunstâncias e que só é questão de ortografia quando há a possibilidade de escolha entre duas grafias diferentes:
Figura 1 – Fragmento do texto “A Branca de Neve e os três dinossauros”, inventado por B e L em 06/02/2015.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar (2015).
Diálogo 1 – B e L refletindo sobre o texto “A Branca de Neve e os três dinossauros”
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar (2015).
No exemplo acima, B fala (turno 2) pausadamente e no português europeu a sílaba "cla" da seguinte forma: "É q la ro", hipersegmentando a sílaba "cla", por causa do som /k/, que, neste caso específico, produz confusão devido à homofonia entre "q" (seguido sempre de "u" no português) e "c", grafemas que representam o fonema /k/. L, por sua vez, reconhece que há um erro no turno 1 e nos turnos 3 e 5 soletra a B como se escreve "claro", mas ela própria representa o fonema /k/ através do grafema "q" ao dizer, no turno 5, " É... Claro é ‘q’, ‘l’, ‘a’, ‘r’".
No entanto, no turno 7, L afirma que "não é com esse 'q'" e, no turno 9, diz "é com 'q' de 'cogumelo', 'claro'". Neste exemplo, fica claro que ainda existem dúvidas em relação à nomenclatura da letra “C” ou, possivelmente, L tenha apenas esquecido como seria a pronúncia dessa letra, porém percebemos que há um conhecimento linguístico de L sobre a escrita correta da palavra. Neste caso, temos um exemplo de rasura de substituição.
Rasura de antecipação
Figura 2 – Fragmento do texto: “A Branca de Neve e os três dinossauros”, inventado por B e L em 06/02/2015.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2015.
Diálogo 2 – B e L refletindo sobre o texto “A Branca de Neve e os três dinossauros”
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2015.
Através da análise do vídeo é possível observar que, no turno 2, B já havia verbalizado "tinha os" enquanto começava a escrever "ti", de modo que o “o” do artigo “os” é antecipado em “tinho”. No turno 3, L estranha a escrita de "tinho" e chama a atenção de B, que reconhece a antecipação e a rasura. Esse reconhecimento é marcado pela rasura de substituição, que vem corrigir a antecipação através da supressão do “o” e sua substituição pelo “a”, como pode ser visto no traço reforçado do “a”: tinhoa. Assim, a rasura de substituição é marcada por um duplo movimento: o apagamento de um elemento e a adição de outro. A rasura de antecipação resulta da combinação entre a antecipação e seu reconhecimento através da rasura. Esse exemplo ocorre devido à dessincronização entre processos cognitivos e sua execução motora.
Rasura de pontuação
Figura 3 – Fragmento do texto “Por que o sol brilha?”, inventado por S e M em 13/06/2012.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2012.
Diálogo 3– S e M refletindo sobre o texto “Por que o sol brilha?”.
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2012.
No exemplo acima, M está falando e escrevendo o texto, de modo que entona a voz quando há fala dos personagens: “esse é o seu castigo!” Após escrever o início da frase, o pronome “esse”, reconhecendo a fala de um dos personagens, S, no turno 2, sugere que M faça um “tracinho”, ou seja, um travessão, para indicar essa fala, que era a do vulcão. M, no turno 3, pergunta à S, indicando com a caneta, qual seria o local a ser colocado o “tracinho”, S concorda, assim, o travessão é adicionado ao texto. Percebemos, por meio desse exemplo, que mesmo não havendo conhecimento do termo técnico “travessão”, há um reconhecimento linguístico parcial de S em relação à regra para o uso desse sinal de pontuação, no caso, sobre a possibilidade de este ser colocado antes da fala dos personagens.
O exemplo seguinte traz uma rasura de supressão, que foi eliminada devido ao excesso de palavras, considerado, assim, um tipo de rasura sintática.
Rasura sintática
A sintaxe diz respeito à organização das palavras dentro das frases ou orações e suas relações entre si, no que se refere à concordância, subordinação e ordem.
Figura 4 – Fragmento do texto “Por que o sol brilha?”, inventado por S e M em 13/06/2012.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2012.
Diálogo 4 – S e M refletindo sobre o texto “Por que o sol brilha?”
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2012.
No turno 4, M relê o que já havia escrito e percebe que há excesso de palavras no trecho “um o poco do seu fogo”, por esse motivo, aos 14’34”, rasura o artigo definido “o” e deixa o artigo indefinido “um” em seu texto, por se tratar da expressão “um pouco”, no sentido de “parte de algo”.
Textos com problemas sintáticos apresentam períodos truncados, justaposição de palavras, ausência ou excesso de palavras, como é o caso apresentado acima, que foi corrigido após a supressão do artigo “o”, podendo haver ainda a presença de pontuação indevida ou ausência de pontuação, o que interfere na qualidade da estrutura sintática. Mostraremos outro caso de rasura sintática, mas agora através da função de deslocamento, que é considerada uma operação complexa ocorrida devido às alterações na posição de determinado fragmento, como mostra o exemplo abaixo:
Figura 5– Fragmento do texto “Por que a girafa tem o pescoço longo”, produzido por S e M em 20/04/2012.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2012.
Diálogo 5: S e M refletindo sobre o texto “Por que a girafa tem o pescoço longo”
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar, 2012.
Houve deslocamento do termo “disse que”, que foi colocado mais à frente, mas na mesma linha. O que parece estar em jogo é o sujeito do discurso indireto "disse que", de modo que no turno 3, S pergunta "quem ia competir?". A própria aluna S, no turno 5, recupera o referente ao suprimir "disse que", escrever logo em seguida "a cobra" e readicionar "disse que" na cadeia textual-discursiva. O deslocamento, então, é uma função composta por supressão + adição ou reaparecimento do elemento deslocado em outro lugar.
Rasura gráfica
A rasura de tipo gráfico incide no formato da letra, quando o escrevente tenta melhorar a sua grafia ou tenta deixá-la semelhante às letras que já havia grafado, por exemplo.
Figura 6. Texto: “O palhacinho” inventado por B e L em 06/02/2015.
Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2015.
Diálogo 6: B e L refletindo sobre o texto “O palhacinho”
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Fonte: Laboratório do Manuscrito Escolar 2015.
Considerando que a substituição é formada por uma supressão + adição, no exemplo acima, vemos, no turno 4, a supressão do que pareceu dois “eles” 'll' no lugar da letra “h” e, posteriormente, a readição da letra “h” de forma correta. Por meio do diálogo e através do vídeo, vê-se que L se atrapalha ao escrever a letra ‘h’ e faz, por duas vezes, a letra l, esquecendo de colocar a “barriguinha” no ‘h’, cometendo, dess
Considerações finais
Nesta pesquisa, conseguimos identificar a existência de seis funções da rasura: a substituição, a supressão, o deslocamento, a adição, a de uso ou gestão e as de suspensão dilatória ou provisória, todas elas são consideradas operações essenciais da escrita, uma vez que são utilizadas para a melhoria textual. Independente da experiência do escritor, todas essas funções podem ser encontradas nos manuscritos, embora algumas delas sejam mais difíceis de ser executadas por escreventes novatos, como foi comprovado neste trabalho a ausência das funções uso/gestão e as de suspensão, apresentadas por Biasi (1996), visto que investigamos textos escritos por alunas do 2º ano do ensino fundamental.
A partir desse estudo foi possível observar que o que as crianças brasileiras e portuguesas recém-alfabetizadas, e em díades, mais rasuram está relacionado, em maior proporção, às funções de substituição (35 na díade brasileira e 33 na díade portuguesa) e supressão (8 na díade brasileira e 11 na díade portuguesa), confirmando assim o que foi apresentado por Biasi (1996), quando afirma que a substituição e a supressão são gestos de escrita mais comuns, enquanto as demais funções são menos utilizadas. Também foram encontradas as funções de adição, 12 vezes ao todo, sendo 9 delas no texto português e 3 casos no texto brasileiro. Além desses, foram encontrados 4 exemplos de deslocamento, sendo um em cada texto, completando, dessa maneira, o quadro das funções apresentado por Fabre (1986) e Willemart (1999).
A respeito da ocorrência das rasuras, podemos inferir que o que esses alunos mais rasuram em situações de escrita colaborativa está voltado aos seguintes tipos: ortográficos, gráficos, textual discursivos, de pontuação, de antecipação, sintáticos e de acentuação, visto que estão trabalhando e refletindo sobre o texto que está sendo produzido. Sobre esses tipos de rasura, a ortográfica, a gráfica e a textual discursiva apareceram mais vezes nos quatro textos, trinta e seis (36), vinte e duas (22) e vinte e uma (21), respectivamente; isso ocorre porque a aquisição do sistema ortográfico leva mais tempo a ser estabilizado, pois esse sistema é dotado de regras, exceções e peculiaridades; por isso, requer um tempo maior para ser assimilado, por ser caracterizado como complexo para alunos de 2º ano.
Sobre os problemas de ordem gráfica, podemos dizer que eles ocorreram, em sua maioria, devido ao ajuste no formato de uma letra, já os de ordem textual discursivas ocorreram para evitar a repetição de um termo, bem como para escolher o possível uso de uma forma ao invés de outra.
Ademais, encontramos nos quatro processos, oito (8) tipos de rasura de ordem sintática, utilizadas com a finalidade de resolver problemas de concordância, organizar elementos na frase, suprimir por excesso de termos, adicionar expressões em falta e para deslocar termos; seis (6) casos de rasura de pontuação, com a adição de vírgulas, ponto e vírgula e travessão; sete (7) casos de antecipação, de letras, sílabas e pronomes, quatro deles na díade portuguesa e três na díade brasileira, causados por dessincronizações entre processo cognitivo e execução motora e, por fim, dois (2) casos de acentuação, de adições de crase e acento agudo, somente na díade portuguesa.
Com este trabalho, ressaltamos a importância de os professores destacarem as nomenclaturas dos conteúdos para que haja uma concretização desses conhecimentos pelos alunos desde bem pequenos. Além disso, refletimos sobre quais conhecimentos estiveram ou não em curso a partir da ocorrência das rasuras nos textos e da análise do processo; assim, em investigações futuras, professores poderão analisar e observar as rasuras de seus alunos, visando destacar e revisar assuntos mais difíceis de serem assimilados em suas turmas. Além dos professores, pesquisadores terão, à sua disposição, um material preciso para desenvolver as mais variadas investigações científicas, como, por exemplo, analisar quais conhecimentos estão em curso em determinada turma, quais conteúdos são mais difíceis de serem assimilados pelos alunos, quais as maiores dificuldades encontradas durante uma produção textual: criar personagens? Iniciar o texto? Finalizar a história, etc., além de buscar meios para resolver os problemas encontrados.
Entendemos a rasura como um elemento essencial de toda escritura, pois ela indicia uma reflexão que incide sobre diferentes aspectos do texto, como foi detectado nesta dissertação. Sua utilização, tanto como ferramenta de escritura, quanto como elemento de análise para professores e pesquisadores em geral ainda precisa ser mais expandida.
[I] São escassos os estudos que analisam processos (e não o produto) de escrita do qual participam alunos entre 7 e 8 anos, recém-alfabetizados e que escrevem seus primeiros textos. Alguns são propostos por Felipeto (2012, 2019) e Calil (2008, 2011).
[II] Em geral, as abordagens em Genética Textual adotam a Linguística da Enunciação (Benveniste, Authier-Revuz), o Dialogismo bakhtiniano e a Psicologia Cognitiva.
[III] Muitos outros manuscritos surgiram posteriormente, inclusive, manuscritos de Saussure e Benveniste. Para maiores informações, indicamos o site do ITEM: http://www.item.ens.fr
[IV] Rasura oral é um conceito elaborado por Calil (1998) para explicitar os retornos ocorridos oralmente durante o diálogo entre duas pessoas em uma situação de escrita colaborativa.
Referências
BARTHES, Roland. 1976-1977- l’École des Hautes Études en Sciences Sociales. Roland Bartes, OEuvres completes, par Éric Marty, Seuil, 1995, tome 3, p. 743.
BIASI, P-M. de. Qu’est-ce qu’une rature? In POUGE, B. Ratures et repentirs. Pau: PUP, 1996.
CALIL, E. Rasura oral comentada: Definição, funcionamento e tipos em processos de escritura a dois. In: SILVA, C.; DEL RÉ, A.; CAVALCANTE, M. (orgs.). A criança na/com a linguagem: Saberes em contraponto. Porto Alegre: UFRGS, 2017. p. 161-192.
CALIL, Eduardo. Sistema Ramos: método para captura multimodal de processos de escritura a dois no tempo e no espaço real da sala de aula. Revista ALFA. volume 63, 2019. 33p.
DOQUET-LACOSTE, Claire. Etude génétique de l’écriture sur traitement de texte d’éleves de Cours Moyen, anée 1995-96. Thèse de Doctorat de l’Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle) en Sciences du Langage, 633 p., 2003.
FABRE, C. Des variantes de brouillon au cours préparatoire. Etudes de Linguistique Appliquée, 62, p. 59-78,1986.
FELIPETO, Cristina. Escrita colaborativa e individual em sala de aula: uma análise de textos escritos por alunos do ensino fundamental. Alfa, São Paulo. V.63, n. 1, p. 133-152, 2019.
FELIPETO, Cristina. Funções de rasura em processos de escrita colaborativa no ensino fundamental. Manuscrítica, n. 38. 2019
FENOGLIO, Irène. Manuscritos de linguistas e genética textual: quais os desafios para as ciências da linguagem? exemplo através dos “papiers” de Benveniste/Irène Fenoglio; tradução Simone de Mello de Oliveira, Verli Petri da Silveira, Zélia Maria Viana Paim. – Santa Maria: UFSM, PPGL-Editores, 2013.
GAK, V. G. L’orthographe du français – essai de description théorique et pratique. Paris, SELAF, 1976.
GRÉSILLON, A. Alguns pontos sobre a história da crítica Genética. Estudos avançados, 1991.
GRÉSILLON, A. Elementos da Crítica Genética: ler os manuscritos modernos. Tradução de Cristina de Campos Velho Birck, Letícia Cobalchine, Simone Nunes Reis, Vicent Leclerq; supervisão da tradução de Patrícia Chittoni Ramos Reuillard; prefácio de Philippe willemart, Porto Alegre, editora de UFRGS, 2007, 335 p.
KAMADA, Takayuki. La critique génétique à l’épreuve de la question de l’interprétation. Universidade de Shinshu. 1997. Disponível em: <https://www.gcoe.lit.nagoya-u.ac.jp/eng/result/pdf/10_KAMADA.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2020.
WILLEMART, Philippe. Bastidores da criação literária. São Paulo: Editora Iluminuras LTDA, 1999.
WILLEMART, Philippe. Universo da Criação Literária: Crítica Genética, Crítica Pós-Moderna?/ Philippe Willemart. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.