Metadados do trabalho

O Impacto Do Estado Gerencial Na Educação: O Caso Dos Centros Integrados De Educação Pública (Cieps) E Do Projeto Proqualidade, E A Condição De Racismo Estrutural

Olívia Chaves de Oliveira; André Lemos; André Henrique Messias da Silva

O presente trabalho busca fornecer elementos para o debate sobre a ação do neoliberalismo na política educacional brasileira, tendo como principal subsídio teórico uma pesquisa apoiada no trabalho de Hypólito (2008); na dissertação de mestrado em andamento sobre os “determinantes das críticas do Grupo Globo aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)”; e na categoria de racismo estrutural presente na obra de Noguera (2018). Nos baseamos no tema do declínio das políticas educacionais em governos neoliberais, a exemplo da ruptura com os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no estado do Rio de Janeiro, e, por outro lado, no solavanco de experiências educacionais referendadas no "Estado minímo", a exemplo do Projeto de Melhoria da Qualidade da Educação Básica - ProQualidade, implementado no estado de Minas Gerais. E destacamos, como uma das consequências, a mitigação do combate ao racismo estrutural, fator de exclusão história presente na sociedade brasileira.

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Como citar este trabalho

OLIVEIRA, Olívia Chaves de; LEMOS, André; SILVA, André Henrique Messias da. O impacto do Estado gerencial na educação: O caso dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e do Projeto ProQualidade, e a condição de racismo estrutural. Anais do Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade, 2021 . ISSN: 1982-3657. Disponível em: https://www.coloquioeducon.com/hub/anais/190-o-impacto-do-estado-gerencial-na-educa%C3%A7%C3%A3o-o-caso-dos-centros-integrados-de-educa%C3%A7%C3%A3o-p%C3%BAblica-cieps-e-do-projeto-proqualidade-e-a-condi%C3%A7%C3%A3o-de-racismo-estrutural. Acesso em: 16 out. 2025.

O impacto do Estado gerencial na educação: O caso dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) e do Projeto ProQualidade, e a condição de racismo estrutural

1. Introdução

O presente trabalho acadêmico busca fazer uma análise sociológica sobre a educação brasileira na contemporaneidade, e trazer contribuições para o debate em torno do impacto de modelos de gestão pública, alicerçadas no neoliberalismo. Tem como foco dois exemplos de políticas educacionais provocadas e atingidas, direta ou indiretamente, pelas reformas gerenciais da década de 1990: sendo o caso dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) no estado do Rio de Janeiro, e do Projeto de Melhoria da Qualidade da Educação Básica - ProQualidade no estado de Minas Gerais. Em conjunto verifica-se um arcabouço mais geral, como consequência desse período e associada a essa problemática, a expansão do racismo estrutural na educação pública.

A metodologia utilizada é uma breve pesquisa teórica e bibliográfica em fontes secundárias, contando com as primeiras aproximações ao referencial analítico na pesquisa de mestrado, do presente autor, em andamento, sobre os “determinantes das críticas do Grupo Globo aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)”. Além das discussões acadêmicas que ocorrem no Grupo de Pesquisas – Seminário 2, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ), coordenado pelo professor Máximo Masson.      

Tem como instrumento de provocação analítica, o texto “Estado Gerencial, reestruturação educativa e gestão da educação”, de autoria do pedagogo Álvaro Luiz Moreira Hypólito (2008), que possui como objeto de pesquisa o programa de ensino ProQualidade, implementado na década de 1990 no estado de Minas Gerais. Outro instrumento de provocação para este trabalho, são as considerações candentes à temática do racismo estrutural expressas na obra do filósofo, Renato Noguera (2018), que apresenta o racismo presente na estrutura da sociedade brasileira, marcada por profundas desigualdades sociais que se refletem diametralmente na educação, especialmente nas camadas populares.

A base da análise é expor o antagonismo entre o conteúdo programático do ProQualidade, que está conectado ao Estado gerencial-neoliberal, aos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), tido como uma política educacional vocacionado aos preceitos do Estado de bem-estar social. Nessa perspectiva, destaca-se os elementos que circunscrevem os programas pedagógicos e que fazem parte dessa reflexão: a gestão pública, as classes sociais, os interesses econômicos e a contextualização histórica, fundamentados numa análise comparativa e dialética a respeito do impacto do gerencialismo na educação.

2. Uma breve apresentação do conteúdo pedagógico do ProQualidade e dos CIEPs

O ProQualidade consistiu em um projeto educacional financiado pelo Banco Mundial implementado nas escolas públicas do estado de Minas Gerais, entre os anos de 1994 e 1999. Foi instituído pelo Decreto nº 35.423, de 3 de março de 1994, com princípios da busca pela qualidade na educação nos moldes liberais e de extremo pragmatismo. Para tanto, promoveu autonomia pedagógica, administrativa e financeira da escola através da descentralização de decisões antes centradas na Secretaria Estadual de Educação. Esperava-se assim, a melhoria da qualidade na educação através de mudanças no currículo e na competição entre as unidades escolares, assim como diminuição das taxas de repetência e evasão no Ensino Fundamental.

Segundo Fonseca (2006), o projeto possuía cinco prioridades: “fortalecimento da sua direção, aperfeiçoamento, capacitação, avaliação externa dos alunos e integração com os municípios” (FONSECA, 2006, p. 84). E para alcançar os objetivos propostos, o projeto ProQualidade contava com seis subprojetos, a saber: i) melhoria da infra-estrutura e gestão da escola; ii) fortalecimento da gestão do sistema educacional; iii) desenvolvimento do ensino; iv) materiais de ensino; v) reorganização do atendimento escolar, vi) coordenação e supervisão. Ainda na análise desse autor, “as prioridades e subprojetos seguiam os eixos e estratégias definidos nos encontros internacionais de educação, orientados pelo Banco Mundial” (FONSECA, 2006, p. 85).   

Os CIEPs, por sua vez, foram implementados no Rio de Janeiro no primeiro governo de Leonel Brizola (83-87), tendo como idealizador o vice-governador, sociólogo e educador Darcy Ribeiro. Com o maior orçamento já visto até então para a política educacional e com infinitos exemplos de diferencial em infraestrutura, que vai desde alimentação até os saberes culturais. Tal política não originou-se sem um planejamento, e esse veio através do intitulado “Primeiro Programa Especial de Educação – 1° PEE”, com uma proposta pedagógica construída junto ao professorado, que conforme Lia Faria (1991), foram consagrados em 7 eixos: Vontade política, enquanto reconhecimento da realidade social e cultural dos alunos; Linguagem e alfabetização, baseado no conceito de Paulo Freire, “ler o mundo”; Democratização das relações de poder dentro da escola com a Composição de uma Direção Colegiada; Avaliação com metodologia e caráter coletivo suplantando o modelo unilateral tradicional; Essencialização dos conteúdos e interdisciplinaridade, enquanto padronização mínima na grade curricular; e Treinamento Permanente dos Professores.

3. Uma visão crítica sobre o Estado gerencial

Trazemos para a análise uma perspectiva de contextualização histórica e do conceito de Estado, a partir do diálogo com o artigo “Estado gerencial, reestruturação educativa e gestão da educação”, do autor Álvaro Hypólito (2008). No qual o autor discorre sobre o conceito de Estado gerencial, neoliberal, tendo como parâmetro o programa educacional ProQualidade – Projeto de Melhoria da Qualidade da Educação Básica em Minas Gerais, implantado no estado de Minas Gerais na década de 1990.

Hypólito (2008) contextualiza o Estado gerencial fazendo a relação do neoliberalismo com a gestão pública, e tem como ponto de partida a superação do Estado de bem-estar Social (Welfare State) pela hegemonia neoliberal. Suas justificativas são noções de transição, modelos e interpretação de Estado, ao qual percebe o Estado não como uma instituição monolítica, mas que nas palavras do autor absorve as tensões da luta por hegemonia[1].

O cerne da reflexão é a reconfiguração do poder, e por sua vez novas fronteiras entre o público e o privado, sintetizando na globalização, com novos formatos de arranjos econômicos e políticos. “Isso foi possível sob uma aliança conservadora que orientou todos os seus esforços para construir um estado gerencialista, cujo discurso tem influenciado todos os campos de nossas vidas, incluindo o campo educacional” (HYPÓLITO, 2008, p. 65). O autor defende a visão de Clarke e Newman, na obra The Managerial State, em que o Estado de Bem-estar social emergido no pós-guerra institucionalizou a relação do Estado, sociedade civil e esfera pública baseado em três pilares fundamentais, político-econômico, social e organizacional. Gerando o conflito entre a direção dada pelo mercado versus a garantia estatal da cidadania, traduzindo-se inicialmente no gerencialismo.

Ou seja, o trabalho citado traz à tona que a transição do Estado de Bem-Estar Social para o Estado Gerencial, foi devido também a problemas reais e desgastes deste primeiro gerando condições para o surgimento do segundo. Dentre esses problemas, explica o autor, estava o alto grau dos serviços públicos e da intervenção estatal, no qual envolve desde taxações públicas até o direcionamento da economia, em que após a crise econômica da década de 1970 o Estado de bem-estar social ficou fadado como “caro”, sendo este o conteúdo da principal crítica da direita mundial. Portanto, seria nesse processo que se desenha o Estado neoliberal, promovendo o discurso do "Novo Gerencialismo" ou "Nova Gestão Pública", perfazendo e constituindo o Estado Gerencial.

Da mesma forma, Hofling (2001) nos fornece mais subsídios para a análise do neoliberalismo e a consequência das reformas gerenciais do Estado para a manutenção do atendimento dos interesses do capital. Tendo como exemplo de que:

As teses neoliberais, absorvendo o movimento e as transformações da história do capitalismo, retomam as teses clássicas do liberalismo e resumem na conhecida expressão “menos Estado e mais mercado” sua concepção de Estado e de governo. Voltadas fundamentalmente para a crítica às teses de Keynes (1883-1946), que inspiram o Estado de Bem-Estar social, defendem enfaticamente as liberdades individuais, criticam a intervenção estatal e elogiam as virtudes reguladoras do mercado (HOFLING, 2001, p. 36).

 

Vale ressaltar, que a experiência da transição do Estado de bem-estar social para o neoliberalismo não é aplicável integralmente à trajetória histórica brasileira, mas como em outros países periféricos, vivenciou o reflexo desse movimento internacional centrado sobretudo nos EUA, Europa e Japão. No Brasil, vai advir em especial na década de 1990, ajudado pelos governos Fernando Collor de Mello (1990 – 1992), Itamar Franco (1992 – 1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995 – 1998 e 1999 – 2002).

Período, em lócus, da contextualização do objeto de estudo de Hypólito (2008), o ProQualidade, no qual analisa a performance e as mudanças do gerencialismo sobre as políticas educacionais. Tendo como ponto de partida as orientações do Banco Mundial, a partir de 1994, para avaliação do sistema educacional através da melhoria de desempenho por ganhos significativos de aprendizagem na educação básica, tendo como parâmetro meramente a conclusão do ensino fundamental (que naquele período era chamado de 1° grau).

Cabendo destacar algumas das características dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, que preconizava reformar o Estado, que estavaq sob impacto da conjuntura mundial de crise estrutural do capital. Na educação, o Brasil viveu um período de influência direta de organismos multilaterais interessados na formação de mão de obra especializada. E o exemplo mais evidente foi o Plano Bresser proposto pelo então ministro da economia Fernando Henrique Cardoso, no governo Itamar Franco, visando resolver quatro problemas: a delimitação do tamanho do Estado, a redefinição do papel regulador do Estado, a recuperação da governança ou capacidade financeira e administrativas e o aumento da governabilidade (PEREIRA, 1997).

A liberdade dos organismos multilaterais em apontar diretrizes de ações para o governo brasileiro eram gigantescas, podemos enumerar alguns dos relatórios publicados pelo Banco Mundial e seguidos no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, como sugere LIMA (2011), em relação ao ensino superior e as lições da experiência em 1994; a relatório sobre o desenvolvimento mundial e o Estado em um mundo em transformação em 1997; e ao financiamento e gestão do ensino superior em 1998. Em documento publicado no de 1997 o Banco Mundial defendeu o papel do Estado, da seguinte forma: 

a)em ações que promovam a segurança pública (do combate à violência às parcerias com os empresários e trabalhadores no financiamento da seguridade social); b) na elaboração de uma regulamentação eficaz que aproveite as ‘forças do mercado’ em benefício dos ‘bens públicos’, estimulando as parcerias público-privadas; c) no incentivo à política industrial, inclusive com subvenções para o setor privado; d) na gestão eficaz da privatização das empresas estatais; e) no estímulo a maior ‘competência’ no interior da administração pública, através de um sistema de contratação por mérito e de avaliação por produtividade (...) (LIMA, 2011, p. 88)

 

Verifica-se que desta forma estariam garantidos os principais componentes do liberalismo, a considerar, a propriedade privada, o cumprimento dos contratos e o mínimo dos serviços essenciais, como esboçado por Castel (1998). Ferreira (2012, p. 457) também afirma que neste período político no Brasil, “ocorreram medidas de ajustes estruturais e fiscais, bem como reformas orientadas para o mercado, visando a integração do Brasil com a economia mundial (...)”. Diante disso, o que ocorreu foi o declínio do investimento federal nas políticas sociais, com o recorte intrínseco ao declínio dos programas e projetos desenvolvidos na educação pública.

Retomando a análise de Hypólito (2008), na “bula”[2], como é chamado o documento do Banco Mundial (1994) para as políticas educacionais locais, reverbera-se os itens como “indicadores quantitativos, distribuição de material didático (principalmente livros), retreinamento do professorado, descentralização da gestão escolar e administração racional da rede física” (Hypólito, 2008, p. 75). Somado a configuração dos processos de treinamento em serviço, a avaliação centralizada do sistema educacional e como e onde os aportes financeiros deveriam ser aplicados, influenciando inclusive o currículo pedagógico e a formação docente. Tais elementos, ou modus operandis, se constituiriam como a modernização conservadora do sistema educacional.

No ponto nevrálgico do texto de Hypólito (2008) é apresentado o que o autor chama de “paradigma de recepção e aceitação” nas cidades e estados, pois ainda que haja resistência e oposição em relação ao gerencialismo por setores do campo educacional, é evidente que de alguma forma ele responde às demandas do Estado e consegue emplacar seus modelos nas políticas educacionais e públicas, em geral. Não obstante nesse paradigma inclui-se elementos dialéticos e contraditórios, como nos provoca, citando Ball[3] , e fazendo o complemento:

Com isso pode-se dizer que o que se chama de restauração conservadora não é um bloco homogêneo e sólido. Ao contrário, como Ball afirma “políticas são sempre incompletas à medida que se relacionam ou são delineadas para a ‘profusão selvagem’ das práticas locais. Políticas são grosseiras e simples. Prática é sofisticada, contingente, complexa e instável. Política como prática é ‘criada’ numa dialética de dominação, resistência e caos/liberdade” (BALL, 1994, p. 11). Isso significa que o controle jamais estará totalmente seguro, principalmente por causa das ações. (HYPÓLITO, 2008, p. 76)

 

Nesse momento o autor desenvolve de certa maneira o que seria esta disputa ideológica dentro do Estado, resultantes num “território de contestações”, que embora o papel hegemônico do gerencialismo esteja sendo aplicado, inclusive formalmente e documentado pelo campo educacional, a ação prática traz consigo atividades de “antíteses” que flertariam com espaços contra hegemônicos, ou que abririam espaços para exploração das contradições do sistema educacional, e mais uma vez para a sua transformação. Não significando que deixariam de fazer parte do discurso hegemônico, e sim materializando-se na problematização de um momento histórico específico (hegemônico) através da construção social, que na essência está a luta de classes no questionamento/disputa do controle político, cultural e econômico.

Referenda-se definitivamente que o gerencialismo é um modelo de gestão para controle político, de interesses econômicos internacionais, longe de ser ou resultar em qualidade de ensino e do sistema educacional. É factível que os indicadores/rankings da eficiência de produtividade educacional, muitos deles criados pelo próprio gerencialismo, não apresentam alterações substanciais nos níveis de aprendizagem, ao contrário, em alguns casos e vale ressaltar em pleno século XXI, em quedas contumazes. Demonstrando uma vez mais que o gerencialismo como também promotor das políticas de ordenamento orçamentário se situa num movimento cíclico de geração de ferramentas/modelos de gestão, mas não de qualidade de ensino.

3.1 O gerencialismo e o racismo estrutural

Visto que o projeto neoliberal para o campo educacional tem como prerrogativa o enquadramento formal com os interesses da hegemonia política e econômica, e delega ao sistema de ensino, principalmente dos países periféricos, o caráter de um modelo educacional restringido ao papel de formalização, e não de transcender a realidade social dos educandos. Fica evidente que neste ímpeto sistemático do capital pela reprodução social, a questão do negro e do racismo não se altera, e normatiza institucionalmente o racismo estrutural em função de que o papel educacional se traduz num campo de retórica, na melhor das hipóteses suprindo indicadores de acesso ao ensino formal mantendo o educando negro no “jogo social”.

É oportuno lembrar que “a ótica do capital procura impor limites à classe trabalhadora através da socialização desigual do conhecimento científico e tecnológico” (SOUZA, 2015, p. 277). Este limite é sentido por meio da ingênua ideia propagada pelas políticas de democratização e inclusão na educação, como nos alerta Bourdieu (2014), ao afirmar que a origem social dos estudantes determina as condições objetivas desiguais para suas trajetórias escolares. 

O tema, como salienta o filósofo Renato Noguera (2018), na obra "Racismo questão de todos nós", é extremamente sério e ganha novos contornos na contemporaneidade, porque o racismo é uma construção social em que o modelo econômico liberal é o agente fundante da articulação da escravização negra com a transformação desses indivíduos em “homus economicus[4]. Numa numa tragetórica histórica brasileira, inicialmente concatenada com a atmosfera social do pré-Estado moderno, e se concretizando na modernidade. Que no campo subjetivo fomentará injustiças cognitivas, estéticas e políticas buscando extirpar toda a cultura e ancestralidade das comunidades negras e dos povos originários, objetivando o mercantilismo da carne humana negra, e nesta condição perfazendo o rebaixamento dos sentimentos e do ego, objetivando a mutação de seres humanos em máquinas.

Ainda nesta obra, Noguera (2018), é demonstra o quanto a historicidade é deturpada via de narrativas de discurso e da “história oficial”, resultante da violência simbólica do Estado, mesmo com a heroica trajetória da resistência negra a opressão no Brasil. E reforça a reflexão do quão importante são as políticas públicas de ações afirmativas, com leis que vão para além da denúncia e buscam uma retratação estrutural no âmbito objetivo, e se possível moral através do reconhecimento das injustiças cometidas, numa dimensão da atenção a subjetividade, no qual o caminho é o da ressignificação e não da reconstrução. E mais uma vez é o ambiente escolar, como diz Noguera (2018), o território estruturante da nossa subjetividade e afetos. É o espaço da sociabilidade que deve ir para além da reprodução social das classes econômicas, e que aqui, trazendo para o nosso tema, é o prisma crítico da exploração das contradições do “paradigma da recepção e aceitação”, trago no texto do Hypólito (2008), envolvidas pelo o gerencialismo.

4. O declínido dos CIEPs e a recusa do gerencialismo

Propomos, portanto, analisar o contexto histórico, social e político do declínio do CIEPs e demonstrar a tendência de tensão e recusa do gerencialismo. Os CIEPs que tem como característica ser uma política educacional pujante gerada entre 1983 e 1984, no estado do Rio de Janeiro, no primeiro mandato de Leonel Brizola (1983 – 1987), obteve esse status basicamente pelo alto investimento, pelo caráter integral e integrado, por ser pública e popular, e por apresentar índices de superação em aprendizagem, sendo uma delas de combater o analfabetismo.

Ainda assim, há críticas em realção aos CIEPs, e uma delas era a de que os CIEPs estavam numa condição “paralela” à rede oficial por se destacar em relação às escolas já existentes. E assim, aos poucos, os CIEPs encontrava-se em meio ao conflito entre o governo estadual e a oposição declarada da mídia hegemônica e setores da sociedade. Esse contexto deu início ao que Lia Faria (1991) considera como “descaminhos” dos CIEPs, desencadeando na ruptura do 1° PEE, com a derrota eleitoral do Brizola para o então candidato Moreira Franco (1987-1990). Mas num segundo momento, em 1990, o Leonel Brizola ganha novamente as eleições, desta vez para a gestão 1991-1994, e retoma o investimento nos CIEPs, implantando o Segundo Programa Especial de Educação – 2° PEE.

Porém já é uma outra conjuntura nacional, com o governo federal na figura do presidente Fernando Collor abrindo a economia brasileira, formalizando no poder central o caráter político neoliberal. Ainda sim existiram articulações políticas entre os governos estadual e federal, resultando que aos poucos o projeto político pedagógico dos CIEPs foi sendo substituído, em prioridade, pelos Centros Integrados de Apoio à Criança (CIACs), criado pelo Presidente Collor. Posteriormente o CIAC se tornou Centro de Atenção Integrada à Criança (CAIC), determinado pelo presidente sucessor Itamar Franco (CORREA, 2018), e, dessa forma, o Projeto CIEP foi sendo desfigurado. Pois com o fim do segundo governo Brizola, e sua derrota em fazer o sucessor, o ideário progressista e o caráter estrutural dos CIEPs entrou em declínio acelerado.

A experiência demonstrou que com esta infraestrutura e estes objetivos, os CIEPs tornaram-se um tipo de escola com uma logística de funcionamento diferenciada da maioria das escolas brasileiras e, portanto, necessitada de apoio político governamental para seguir em frente (CORREA, 2018).  Assim, historicamente, pelo raro posicionamento de uma gestão pública priorizar a educação, é possível enxergar os CIEPs como um modelo transformador. E sua grandeza é demonstrado até mesmo por ser atacado frontalmente por setores conservadores, seja no meio político, seja no meio empresarial, que tinham como determinante a insatisfação com a proposta político-pedagógica da democratização do ensino integral e, integrado à outras políticas públicas, com multidisciplinaridade disciplinar, enfoque cultural e combate à fome.

Ou seja, em relação ao nosso tema, observamos que ataque conservador ao Projeto CIEP tem como fator crucial o alto investimento em uma política educacional pública antagônica ao modelo de ensino “gerencialista”. Nesta perspectiva, a contextualização dos CIEPs invoca a alocá-lo numa complexidade de características históricas, e é possível dizer que em termos de currículo pedagógico e investimento público estava mais conectado aos preceitos do Estado de bem-estar social. O que significa dizer, a "uma tentativa de consolidar políticas sociais de cunho trabalhista, com investimentos estatais sólidos para garantir um desenvolvimento nacional e que precisou montar uma burocracia estatal capaz de dar suporte às iniciativas governamentais"conforme, Hypólito (2008, p. 67).

É evidente que os CIEPs não tiveram aporte estatal, até porque se presenciava a égide do refluxo do Estado de bem-estar social no mundo, porém executou-se como uma política educacional governamental originada no período de redemocratização, e que por natureza política-pedagógica alimentava-se de aspirações opostas a ascensão neoliberal. Sendo paradoxal que o período de declínio efetivo dos CIEPs coincide com o período efetivo de ascensão do ProQualidade, no qual envolve inclusive o marco do ano de 1994, como o mesmo ano do fim do segundo governo Leonel Brizola. Além disso, ainda que o ProQualidade tenha uma configuração estadual, é bom registrar que por ter referência institucional nas diretrizes para a educação do Banco Mundial, e ser apreciado pelo governo federal, pode-se dizer que em essência foi também seguido a nível federal.

Sendo assim, fica nítido o quão são raras as referências de projetos educacionais do padrão CIEPs, e é inevitável imaginar o paradigmático impacto do seu pleno funcionamento na presente realidade social e institucional do Rio de Janeiro, angariando esperanças mais salutares em qualidade de vida do carioca. O principal desta contextualização é o aspecto, portanto, da vontade política podendo ser encarada também como coragem política para instalação de um projeto de políticas públicas da envergadura estratégica e civilizatória como foi o Projeto CIEP. Demonstrando que não há inércia política quando se pensa em objetivos para o sistema de ensino, haja visto, como exemplo, o confronto das ideias e disputa de poder cristalizado entre Estado de bem-estar social versus o Estado gerencial.

4.1 Os CIEPs e a inerente inclusão do negro no sistema educacional

O caráter intrínseco da inclusão do negro no sistema educacional via do programa político pedagógico dos CIEPs não é mero ímpeto narrativo. Há de convir que para uma experiência de política educacional no Rio de Janeiro, voltado para as camadas populares, é esperada a presença do negro no ambiente escolar. E, o registro se faz importante, em razão das críticas advindas do conservadorismo, dentre essas o da estigmatização, do assistencialismo e do “privilégio” de escola que produzia atividades pedagógicas em turnos e contraturnos. Ao se pensar o racismo e o racismo estrutural, os CIEPs nos apresenta uma proposta muito diferente na trajetória histórica das políticas educacionais convencionais no Brasil, que basicamente, hora é excludente por princípio “elitista” e opressora, hora por falta de capacidade estrutural de suprir a demanda populacional por educação básica.

Longe de ignorar as raízes idealizadoras dos CIEPs, abertas por Anísio Teixeira após a Revolução de 1930, em que defendia intransigentemente o ensino laico, público e gratuito, conectados num projeto de modernização desenvolvimentista do e Estado e da Nação. E, o quanto se formulou, em busca de um Estado moderno brasileiro com a inserção do negro na sociedade através das classes sociais vigentes[5]. Mas é sabido o quanto na realidade o sistema educacional com esse perfil foi restringido ao longo do tempo, seja pelas turbulências políticas do poder federal, seja pela oposição das elites em relação a democratização do ensino.

É conflitante também pela trajetória do racismo brasileiro, que tem a escravidão como marco originário, mas que ainda no início primeiro quarto do século XX se produzia “teorias sociais” baseados na eugenia, no chamado “darwinismo social”, endossado fortemente pelos partidários do “positivismo” em que o fator biológico determinava a superioridade ou inferioridade do ser humano. E, ainda, adiante parte dos intérpretes, sociólogos e historiadores brasileiros defendendo que o fator não é biológico e sim cultural, reverberados em “bestsellers” brasileiros.

Justificando, como define Seyferth (1993), a construção do racismo como a construção de um ideário, que desenvolve em diversas etapas. E traduzido literalmente no título da sua obra “A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos”, onde promove um grande debate sobre o racismo no campo das ciências e delineia a construção social do racismo brasileiro a partir também de obras literárias. E, ao que nos interessa, problematiza o estigma da raça no caráter de classe social:

(...) nenhum indicador da posição de classe é capaz de suprimir o estigma da raça numa sociedade onde os lugares atribuídos aos não brancos são o elevador de serviço, a cozinha ou, de forma simbólica, a senzala (que remete ao passado escravo e, por extensão, à condição de classe dominada (SEYFERTH, 1993, p. 194).

 

Essa temática é imprescindível para a contextualização da implantação dos CIEPs em vista que o Estado moderno já estava configurado, a sociedade já era majoritariamente urbana (com densidade demográfica expandida), em especial no Rio de Janeiro, o bojo político institucional nacional havia se ampliado, o país havia se industrializado e as classes sociais tornaram-se latentes (ou normatizadas). E os CIEPs buscavam formar estudantes brasileiros/cariocas que se preparassem para um país desenvolvimentista (em termos de ideal, o que confere também a um Estado de bem-estar social), com maior exigência de qualificação do trabalho, numa sociedade com maior capacidade produtiva e densidade cultural. A isso estava intrínseco o combate ao racismo, imbuído não só do respeito à cultura (ancestral) afrodescendente como da sua valorização, sendo a política educacional a interlocução com a conscientização na ponta.

 

 

 

5. Conclusão

O estudo abordou temas de relevância para a problemática da realidade social brasileira, e demonstrou que a trajetória da constituição do Estado, o arregimentado racismo estrutural e o campo educacional são elementos que incorporam a multidimensão da objetivação da superestrutura sobre a subjetividade do indivíduo (dialogando com Bourdieu), e certamente não é aqui que apresentaremos uma solução, mas como pesquisadores é nossa função chamar atenção para a importância do debate. Em que há muito a se provocar, contestar, analisar e avançar. Destacando, no entanto, que para o cidadão comum a labuta cotidiana definitivamente é algo que não deveria estar desassociado do conhecimento dos determinantes que lhe impõe a opressão.

Nesse sentido, defendemos que as “teses” sem a sensibilidade e compreensão da realidade concreta classe trabalhadora contemporânea, podem representar concepções que reproduzem a violência simbólica do Estado na operação do pensamento hegemônico em prol da reprodução social. Em que o ataque é dirigido sobretudo na estigmatização do ente público, superdimensionada e publicizada pela mídia convencional com foco no âmbito cultural e econômico, e, portanto, segundo Bourdieu (2003), no âmbito da violência simbólica. Sob a constatação, como prevê a crítica de Hypólito (2008), do barateamento, da diminuição, ou deliberadamente do não investimento em políticas públicas, disfarçado com a retórica da “qualidade de gestão”, o gerencialismo.

Demonstramos que a valorização dos princípios neoliberais levaram ao declínio de políticas sociais, especialmente ao sistema de ensino. E tem no racismo estrutural uma das consequências, que por sua vez perpetua-se através das desigualdades presentes na sociedade capitalista e do racismo em si, de parcela da sociedade. Além disso, criticamos o fato da ausência de um projeto pedagógico emancipatório para a educação pública, o que diminuiria sobremaneira as incertezas do trabalho docente e do cotidiano escolar. Crítica que se estende, consequentemente, à ausência de um projeto nacional de desenvolvimento que prese pela concretização de uma Nação mais robusta democraticamente.

A cada nova gestão estadual, novos programas e projetos, deixam as escolas e a comunidade estudantil à mercê das ideias momentâneas. No caso dos CIEPs, tem como fato, que seu declínio é algo substancial na história do sistema educacional fluminense e demonstra fortemente o conflito com o gerencialismo. Revelando (indiretamente ou não) que o ataque do conservadorismo aos CIEPs tem o objetivo de restringir a ação de políticas públicas emancipatórias. E nesse conflito, opera-se de fundo os interesses econômicos internacionais, através de um consórcio de instituições privadas que instalam representações políticas vocacionados a substituir as políticas públicas pela iniciativa privada.

Agradecemos as valorosas discussões ocorridas no Grupo de Pesquisas – Seminário 2, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ), coordenado pelo professor Máximo Masson, do qual pertenço.     

[1] Vale referendar o desenvolvimento do conceito de contra-hegemonia na obra Cadernos do Cárcere, de Antônio Gramsci (1999).

[2] BANCO MUNDIAL. Projeto de Melhoria da Qualidade da Educação Básica em Minas Gerais (Pro-Qualidade) – Relatório de Avaliação. [s/l], abril/1994.

[3] BALL, S. Education Reform: a Critical and Post-structural Approach. Buckinham: Open University Press, 1994.

[4] Categoria de âmbito marxista tendo como uma das referências a obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (ENGELS, 2012).

[5] Tendo como uma das referências a obra “O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança”, de Luiz Aguiar Costa Pinto (1998).

6. Referências Bibliográficas

BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 6ª Ed Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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