Os corpos não se conformam sempre aos contornos que lhes são dados. Não assumem passivamente as atribuições que lhe são determinadas, as fronteiras com que são desenhados. Assim como são feitos, podem ser desfeitos. Ou refeitos. Experimentam transgredir e superar restrições e territórios, de toda ordem, de topo tipo. Espalham-se.
Guacira Louro
As inquietações a respeito da ciborgização do corpo humano cujo resultado é a geração do ciborgue e homem-ciborgue nos fazem pensar na tessitura deste artigo que tem como objetivo, justamente, abordar o processo de ciborgização do corpo humano a partir da tecnologia entendida aqui como revolucionária - ou de "ponta" conforme Edvaldo Couto (2012). Seu uso marca a criação de um novo tipo de homem a partir da formatação do corpo em corpo perfeito, corpo forte "sarado”, provido de "altos padrões de desempenhos" de força, beleza e que "constroem novos modos de existir".
A partir dessa lógica o homem não se faz natural e passa a ser um homem ciborgizado pelas tramas futurísticas, porém já vivenciadas na contemporaneidade. A confecção deste artigo é salutar na medida em que tenta desvendar as fronteiras deste homem ciborgizado - homem e máquina, máquina e homem, indivíduo e tecnologia em busca do corpo perfeito.
Tal posição faz-nos buscar, para o desenvolvimento desse trabalho, uma fundamentação nos pressupostos teóricos de alguns pesquisadores, entre eles: Le Breton (2003), Haraway (2009), Couto (2012) entre outros. Esses estudiosos nos ajudam a pensar que a contemporaneidade marca um período histórico da humanidade jamais vivenciado antes: o ritmo acelerado da revolução científica e da tecnologia permanente que coloca em evidência as metamorfoses concretizadas a partir de um cenário cujas máquinas cada vez mais influenciam o modo de vida de todos nós.
A todo instante nos deparamos com os sentidos dessas metamorfoses e percebemos o quanto o mundo está diferente e, por conta disso, novos cenários surgem no horizonte: criam-se, diariamente, novas categorias para as coisas e para os fabulosos eventos a elas relacionados. Trata-se de um momento de deslumbramento, mas também de dura incerteza. (NOVAES).
Nesse sentido, a epígrafe supracitada é uma prova real do que falamos anteriormente. Tal posição contribui também para pensarmos de forma mais concreta a respeito da tecnologia e do(s) seu(s) efeito(s) especificamente sobre o corpo. Incontestavelmente, a tecnologia se apresenta potente por tudo que tem proporcionado à sociedade ao longo da história. Desse modo, podemos dizer que a tecnologia constrói o homem e a partir dele surge o ciborgue, homem-ciborgue.
Mas, como se dá essa transformação do homem para ciborgue e homem-ciborgue? É importante antes de falarmos dessas questões nos próximos tópicos deste artigo, esclarecer que a expressão "tecnologia" entendida por nós não é só vista como máquinas à disposição do homem. Compartilhamos do pensamento de Kenski quando fala que tecnologia são muitas outras coisas além de máquinas, ela engloba a totalidade de coisas que a engenhosidade do cérebro humano consegue criar em todas as épocas, suas formas de uso, suas aplicações.
Esta verdade nos remete ao processo evolutivo do homem que sempre foi marcado pela presença da técnica. Couto (2012) reforça esse pensamento quando nos lembra que sem a arte, sem a técnica gestual e mental, sem os artefatos, o humano nos é desconhecido. Assim, para o entendimento de que o homem é produto da artificialidade projetada e fabricada a partir da "técnica" que sempre teve papel fundamental no processo de construção do homem-historicizado. A técnica é entendida como um conjunto de saberes, métodos e objetos que confeccionamos para modificar a natureza.
Ela está ligada ao conceito de artificial que diz que o "artificial é o próprio fazer humano" (COUTO, 2012, p. 19).
No entanto, hoje mais do que nunca mediante as tecnologias disponíveis no mercado, principalmente, as que permitem maiores fluidez da informação e comunicação diluídas no processo de ciberculturarismo porque passa toda humanidade é que as técnicas têm se afirmado como fatores constitutivos do homem contemporâneo em todas as suas dimensões.
Isto nos leva a crer no surgimento do ciborgue e homem-ciborgue conforme os moldes culturais na contemporaneidade.
O ciborgue e o homem-ciborgue
O que significa ciborgue e homem-ciborgue? Os dois têm o mesmo significado? Ou são totalmente distintos? O termo ciborgue tem recebido muitas atribuições conceituais de diversos pesquisadores ao longo do tempo, principalmente, por estar associado ao corpo metamorfoseado, modificado em todas suas dimensões.
De acordo com Couto (2012, p. 19) citando Manfred Clynes e Nathan Kline "o termo foi criado em 1960 para designar os sistemas homem-máquina autorregulativos". Representa a "mixagem do corpo com os equipamentos tecnológicos" (COUTO, 2012, p. 19). Além disso, Couto (2012, p. 20) citando Haraway (1995, p. 253) diz que "o ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo especiais apropriados para os tempos em que vivemos, um composto biológico-técnico: uma parte é dada, outra é construída; uma criatura de realidade social e também de ficção".
Como podemos perceber através dos conceitos de ciborgue, ao nosso ver, não existe uma separação entre ciborgue e o homem-ciborgue - implicitamente o ciborgue sempre contemplou a figura humana ou animal como forma de existência -, tanto o ciborgue quanto o homem-ciborgue nos parecem ser o resultado da ciborgização do corpo ou do culto ao corpo em termos científicos (ou de ficção). A ciência produz o ciborgue assim como produz o homem-ciborgue também. Paralelamente, ambos são tomados pela fusão do corpo com as mais diversas tecnologias servidas à "La carte" e seus resultados são:
Implantes, transplantes, enxertos, próteses. Seres portadores de órgãos “artificiais”. Seres geneticamente modificados. Anabolizantes, vacinas, psicofármacos. Estados “artificialmente” induzidos. Sentidos farmacologicamente intensificados: a percepção, a imaginação, a tesão. Superatletas. Supermodelos. Superguerreiros. Clones. Seres “artificiais” que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as limitadas qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos. Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. Máquinas de guerra melhoradas de um lado e outro da fronteira: soldados e astronautas quase “artificiais”; seres “artificiais” quase humanos. Biotecnologias. Realidades virtuais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução natural e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humano-elétricos. (SILVA, 2009, p. 12-13).
Mesmo analisando o ciborgue a partir de uma matriz genealógica através das ideias de Hari Kunzru não encontramos nada que possa nos remeter a acusação de uma possível separação entre o ciborgue e o homem-ciborgue. Ambos aparentam ser o homem transformado e com certo grau de aceitação dessa nova realidade incontestável que opera no mundo.
Nesse sentido, é inútil querer compreender os limites conceituais do que seja um ciborgue e homem-ciborgue, eles são condizentes com o discurso científico contemporâneo de que o corpo se separa do sujeito, ou seja, o corpo está à disposição do sujeito para que o sujeito possa modificá-lo. É verdade. Segundo Le Breton (2003, p. 15) "o corpo torna-se um objeto à disposição sobre o qual agir a fim de melhorá-lo, uma matéria-prima na qual se dilui a identidade pessoal, e não mais uma raiz de identidade do homem".
Parece que não podemos identificar o sujeito a partir dos seus traços corporais, pois o corpo é efêmero, é passivo de modificação corrente que transgride o caráter de identidade que poderia ser sustentado pelo formato e atribuições particulares do corpo natural, como simplesmente identificar alguém pela cor dos olhos ou pelo formato dos lábios.
Então o paira no ar das transformações possíveis sobre o corpo já não permite partirmos das premissas ontológicas naturais para identificar o sujeito.
Nós somos o que somos nesse exato momento, ciborgue ou homem-ciborgue; amanhã podemos “ser ou está” totalmente diferente. Nesse ponto, o corpo é "normalmente colocado como um alter ego consagrado ao rancor dos cientistas", (LE BRETON, 2003, 15). Se a ideia do corpo sobrevive separadamente do sujeito onde está o ciborgue ou o homem-ciborgue? Ou melhor, quem é o ciborgue, o homem-ciborgue, o corpo ou o sujeito? Hari Kunzru fala que ser ciborgue tem a ver com o modo de existência humana, ou seja, onde quer que haja um carro, um telefone ou um gravador de vídeo, ou ainda, com o fato de irmos à academia de ginástica ou, simplesmente, observarmos uma prateleira de alimentos energéticos, olharmos as máquinas para malhação e darmos conta de que elas estão em um lugar que não existiria sem a ideia do corpo como uma máquina de alta performance é ser ciborgue, ousamos dizer homem-ciborgue também. Na verdade, ser um ou outro não tem a ver com quantos bits de silício ou próteses mecânicas o corpo humano é transformado. (KUNZRU, 2009a).
Isso nos faz entender que o ciborgue não é somente máquina, como muitas pessoas podem imaginar, tampouco homem-ciborgue é puramente homem. Eles são corpos (tanto um quanto outro) resultantes da "ultramecanização e eletrificação do humano" (COUTO, 2012, p. 22) que se configuram e reconfiguram a todo instante.
Obviamente, porque o ser ciborgue ou homem-ciborgue não se limitam a ter algo apenas incorporado a nós, algo que identifique apenas um pedaço de nós, ao contrário, eles nos incorporam a partir do nosso próprio modo de existir e de se relacionar com as coisas do mundo, com as coisas de que gostamos e que queremos conquistar: beleza, saúde, força, juventude etc. Na prática, essas coisas podem ser um simples desejo de tomar um Milk Shake de chocolate elaborado a partir de mistura de ingredientes com um resultado tecnológico de sabor fantástico que nos penetra e acaricia os nossos sentidos ou um implante dentário que modifica imediatamente a estética de uma pessoa, ou ainda, pode ser um simples ir ao cinema para assistir a um filme em 3D utilizando óculos 3D.
Tais acontecimentos são modos ciborgues de existir que nos tornam homem-ciborgue de todo esse complexo.
Pensar no ciborgue ou no homem-ciborgue em pleno século XXI é assistir de maneira espetacular à capacidade de fabricação de humanos não somente pela implantação de engrenagens ao corpo físico humano, mas pelos seus modos de existir e de se relacionar com as coisas como já falamos anteriormente. É importante dizermos que em cima desses aspectos é cada vez marcante a influência das tecnologias. É fundamental. Sem a presença das tecnologias e de todo seu aparato, o ciborgue (o homem-ciborgue também) perde a sua função de representação.
Dessa forma, todo processo de ciborgização depende diretamente da presença das tecnologias para ampliar e customizar novos modelos de humanos. Estes com corpos melhorados em capacidades ampliadas de força e de beleza que foram remontados através dos tratamentos ciborgues recebidos ou apenas influenciados pela natureza das coisas. O fato é, de uma forma ou de outra, a ciborgização do corpo humano atinge limites perfeitos (ou quase perfeitos) ainda que se conteste a inatualidade dos novos corpos que surgem, eles representam o que há de mais existencial se assim podemos chamar sobre as certezas fabricadas pelas tecnologias. Então, retomando a nossa pergunta: o que significa ciborgue e homem-ciborgue? Os dois têm o mesmo significado? Ou são totalmente distintos? Apesar de termos respondido essas indagações no decorrer do desenvolvimento desse tópico, queremos acentuar que o ciborgue e o homem-ciborgue estão na mesma fronteira entre a máquina, o organismo e o modo de vida que escolhemos para nós.
Homem e máquina, máquina e homem
Por um lado, soa para nós um pouco estranho dimensionar o homem no mesmo nível da máquina e, pior ainda, expor-nos a um julgamento final: quem somos nós? E para onde caminharemos a partir de agora com a tamanha influência das tecnologias incorporadas em nós? Não falamos das simples tecnologias se há de fato tecnologias que devemos considerar simples ou se em algum momento histórico em um tempo específico houve simplicidade tecnológica. Cada tecnologia representa a evolução da sua época (SIBILIA, 2012).
O fato é que as tecnologias revolucionárias estão nos possibilitando construir novos modelos de corpo, de homem-máquina (homem-ciborgue). Para Hari Kunzru se reportando ao pensamento de Donna Haraway, "as realidades da vida moderna implicam uma relação tão íntima entre as pessoas e a tecnologia que não é mais possível dizer onde nós acabamos e onde as máquinas começam" (KUNZRU, 2009a, p. 22).
Por outro, escreve Le Breton (2003, p. 10) "nunca o corpo-simulacro, o corpo-descartável foi tão exaltado como na contemporaneidade". Desse modo, o corpo agora ganha outras feições, deixa de ser um simples corpo e passa ser ciborgizado de forma profunda. Então, cada vez mais o corpo é loteado em partes não só de carne, mas também loteado por métodos e implantes ou engrenagens que lhe dão sentido, afinal, são manifestações e expressões do corpo que sobrepõem as razões naturais do homem. Assim, não pode ser mais estranha para o homem contemporâneo a noção de que todos nós somos passíveis de nos tornarmos ciborgues, homem-máquina, ou simplesmente, homem-ciborgue.
[agora mais do que nunca] o corpo é declinado em pedaços isolados, é esmigalhado. Estrutura modular cujas peças podem ser substituídas, mecanismo que sustenta a presença sem lhe ser fundamentalmente necessário, o corpo é hoje remanejado por motivos terapêuticos que praticamente não levantam objeções, mas também por motivos de conveniência pessoal, às vezes ainda para perseguir uma utopia técnica de purificação do homem, de retificação de seu ser no mundo. (LE BRETON, 2003, p. 16, grifo nosso).
É nesse viés que há o encontro do homem contemporâneo com as possibilidades de transformar-se em homem-máquina. O sentido do homem-máquina está em poder purificar o corpo de suas mazelas, ou seja, livrar o corpo do problema que é ser e ter um corpo imperfeito, impotente e composto de carne fadado à destruição, à doença e à morte. Dessa forma, há o desejo consciente da tecnociência nos dias de hoje de transformar o homem numa máquina implacável de absoluta capacidade biônica de recurso e fortalecimento desejado, planejado, conquistado ou a conquistar. Este é o lema dos últimos tempos.
O homem já não se faz máquina, ele é literalmente uma máquina a partir do consumismo exagerado e sem precedentes das tecnologias modificadoras ou criadoras de novos corpos: sejam elas alimentícias com seus shakes turbinados de remodelagem do corpo, músculo e performance de beleza, sejam elas simplesmente cosméticas com seus cremes de última geração que prometem rejuvenescer o corpo em pouco dias, sejam ainda farmacêuticas com suas pilhas de drogas que oferecem garantir maior prolongamento da vida diante das doenças (degenerativas, congênitas ou imunológica etc.), ou diante dos problemas existenciais ocasionados no fervor da modernidade como as patologias de ordem psicológicas e psíquicas entre outras.
Nessa perspectiva, é difícil dizermos ou apontarmos alguém que ainda não foi atingido pelo fascínio da ciborgização, no mesmo tom, ousamos dizer que aos moldes da sociedade tecnológica em que vivemos, mais difícil ainda é encontrarmos um homem totalmente homem "natural", desprovido de qualquer processo de ciborgização. Sem dúvida, para a ciência somos todos seres ciborgues ou em processo de ciborgização entre homem e homem-máquina. Assim, não existe nenhuma grande separação que possamos fazer do ciborgue com o homem-ciborgue, do homem e máquina, máquina e homem. Todos estão liquidificados no mesmo plano ideológico da ciborgização, das tecnologias à "La carte" de quem pode se transformar e é transformado.
De acordo com a taxonomia proposta por Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera (1995, p. 3) citado por Silva (2009, p. 11-12), as tecnologias ciborguianas podem ser: a) restauradoras: permitem restaurar funções e substituir órgãos e membros perdidos; b) normalizadoras: retornam as criaturas a uma indiferente normalidade; c) (re)configuradoras: criam criaturas pós-humanas que são iguais aos seres humanos e, ao mesmo tempo, diferentes deles; d) melhoradoras: criam criaturas melhoradas, relativamente ao ser humano.
A "ideia do ciborgue, a realidade do ciborgue, tal como a possibilidade da clonagem, é aterrorizante, não porque coloca em dúvida a origem divina do humano, mas porque coloca em xeque a originalidade do humano" (SILVA, 2009, p. 14). Parafraseando Silva achamos que pode mesmo ser aterrorizante, mesmo porque, é estranho dimensionar o homem no mesmo nível da máquina como falamos anteriormente.
Pior ainda, é aceitar que as máquinas engendradas pelo próprio homem (as vezes mais máquina do que homens) passem a governar tudo e a todos: quem nasce, como nasce e para que nasce. Portanto, todo aquele que ainda não se viu como um ciborgue, homem-máquina ou homem-ciborgue, mais cedo ou mais tarde irá plugar-se a esta nova realidade.
O indivíduo e as tecnologias
Muitas coisas já foram ditas sobre o ciborgue, homem-ciborgue e no tópico anterior falamos do homem-máquina (da relação homem e máquina, máquina e homem). As relações das metamorfoses que transformam o homem em outro homem, como um protótipo de si mesmo avançam cada vez mais rápido. Isso porque, "o homem não se define mais pelo natural nem pelo animal, mas pela tecnologia" (COUTO, 2012, p. 26).
De fato, é um processo vivenciado e divulgado a todo instante pelos sistemas midiáticos. Isso nos enche os olhos, nos torna viajantes do desejo, desejo de modificar o corpo, de transgredir a concepção de um corpo natural que se revelou fragilizado, impotente e com inúmeras imperfeições. Nesse sentido, não seria estranho ouvi das pessoas: o desejo de ter um corpo perfeito, sem doenças, sem dobras, um corpo absolutamente admirável, "tesudo" e que possa despertar os mais pulsantes desejos sexuais de verão. Um corpo simplesmente belo.
Este talvez seja o tipo de corpo que se deseja ter nos dias atuais e que até certo ponto é possível tê-lo a partir das tecnologias servidas de modo à "La carte", concebidas pelas mais altas inovações e que a intervenção da medicina possibilita a transformação para o corpo desejado, pois o homem natural parece não fazer mais sentido. O corpo agora passa ser concebido como matéria destinada a metamorfoses frequentes e remodelagens contínuas do processo de ciborgização que aflige a todos nós.
Não temos mais dúvidas sobre essas questões. Trata-se da cultura do ciborgue, exclusivamente, transformado pelas tecnologias servidas à "La carte". Pilar que transforma o homem em um outro homem, dotado de beleza física e consumido pelos padrões sociais e culturais hegemonicamente estabelecidos. Isso pode fazer sentido a partir da liberdade que homem julga ter para dispor o próprio corpo da forma que achar mais conveniente, eliminando tudo aquilo que não o satisfaz ou que não é aceito de forma imparcial pela sociedade do espetáculo. Possíveis imperfeições, ou simplesmente, modificações corriqueiras no corpo na busca por um ideal de juventude e beleza freneticamente sonhado pelo homem podem ser escondidas ou totalmente eliminadas no processo de ciborgização do corpo humano em busca da perfeição improvável do corpo perfeito.
O único modo pelo qual o homem tem buscado e pode de fato tentar conquistar o ideal imaginário para o seu corpo é perpassando pelas tecnologias, fazendo uso delas e, mais ainda, especificamente, das biotecnologias e nanotecnologias etc. com o apoio técnico da alta excelência da medicina contemporânea. Um processo puramente mercadológico e, portanto, perverso na sua essência a partir dos seus alicerces de sustentação.
As tecnologias à “La cartem” provenientes do modelo de organização produtiva em que vivemos nos vende a ideia de que todos podem construir ou reconstruir os seus corpos, modificá-los e transformá-los de acordo com a medida dos seus especiais desejos - o que não acontece. O que pode está faltando para que justamente o processo de ciborgização seja devorado por quem o desejar é exatamente o direito de utilizar as tecnologias, pois, "o corpo concebido fora das tecnologias está em desuso, é algo que não funciona mais de modo adequado às novas exigências performáticas dos tempos atuais; tornou-se obsoleto" (COUTO, 2012, p. 156).
Por tudo que dissemos, consideramos que o processo de ciborgização do corpo humano impõe de fato novos modelos de corpo e uma corrida desenfreada, justamente, para alcançar um corpo perfeito, pouco provável de acontecer. Essa busca que pode ser a de todos tem diversos significados. No entanto, o mais importante agora não é destrinchar tais significados e, sim, ter a convicção que quanto mais o corpo é trabalhado cirurgicamente, quanto mais ele é equipado com próteses e produtos que visam a elaboração sucessiva de novos designs, mais distante permanece do ideal de perfeição. (COUTO, 2012):
Sendo assim, os modelos de comportamento estabelecidos na sociedade tecnológica nos conduzem para outro mundo diferente e imaginário a partir do processo de ciborgização do corpo humano. Tal condição nos faz pensar na evolução da sociedade para um tempo em que todo indivíduo poderá a seu bel-prazer modificar-se, transcender o corpo, passar pelas metamorfoses da ciborgização em ritmos mais acelerados.
O perfeição do corpo é sem dúvida uma ilusão do perfeito. Os apelos que o homem faz por um corpo perfeito livres das imperfeições naturais é uma síntese daquilo que de forma histórica sempre se desejou, a beleza. As ideias filosóficas e, também, históricas que norteiam a beleza sempre estiveram conectadas com o corpo, com a sexualidade. Nos dias de hoje mais do que nunca as ideias de perfeição, de corpo perfeito continuam conectadas ao fenômeno da estética, do sentir-se bem diante do outro, certamente, despertando certo grau de erotismo.
As palavras corpo, beleza sempre estiveram associadas a estética e, principalmente, ao modo de como o corpo e a perfeição desse corpo é construído socialmente. Isso nos dá a ideia do quando a beleza é um conceito que frequentemente é associado a diversos fatores, entre eles: biológicos, sociais e culturais que por sua vez está ligada diretamente como cultivamos a ideia da perfeição do corpo. Transcender o corpo, passar pelas metamorfoses da ciborgização a fim de nos tornarmos ciborgue, homem-ciborgue e conquistar uma perfeição improvável do corpo perfeito é algo que na prática não acontece. Mas, que todos insistentemente almejam alcançar.
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