O início da caminhada
Vivenciar a experiência de ensinar no ano de 2020 foi algo, no mínimo, desafiador. Em meio ao medo da doença e da inexperiência com os processos de ensino a distância, em um primeiro momento ficamos paralisados, acreditando que reduzir nossa movimentação e respeitar o isolamento social seria algo difícil, mas que, com um pouco de esforço, conseguiríamos cumprir com os compromissos educacionais, pois afinal, seria somente um período de quarentena e, como a palavra exprime, se estenderia no máximo por quarenta dias. Assim, a decisão tomada pelos governantes foi fechar as escolas e esperar a “poeira” de inseguranças e incertezas trazida pelo Covid-19 baixar.
Não foi assim, contudo; 40, 60, 90 dias se passaram e os casos de contaminação e mortalidade continuavam em número elevado. Ao perceberem que o isolamento social necessitava ser mantido e que se nada fosse feito o ano letivo seria perdido, os governantes do Estado de Sergipe optaram por autorizar que escolas públicas da Educação Básica fossem orientadas a realizar processos de ensino a distância e/ou remotos.
Essas diretrizes, ao mesmo tempo em que requisitaram a construção de um novo cenário no contexto educacional, provocaram sentimentos controversos em familiares, discentes e docentes. No início, sensações de incapacidade e despreparo se fizeram presentes na maioria desses sujeitos, a cada desafio que surgia.
Dentre esses inúmeros desafios, sem dúvida, planejar aulas visando a explicações claras para estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, que residem em pequenos povoados e que não têm acesso à internet, pode ter sido o maior de todos. Por isso, neste texto, trazemos para discussão relatos de professoras que compartilharam conosco a forma como enfrentaram as incertezas e as inseguranças, geradas pela necessidade da realização de um ensino remoto ou a distância para que fossem mantidas as regras do distanciamento social.
Os dados aqui em debate fazem parte de uma pesquisa mais ampla, do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC, com bolsa CNPq, e que tem como objetivo analisar o processo de ensino remoto de conceitos aritméticos, geométricos, estatísticos e probabilísticos executado por professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
A incerteza da ação de ensinar durante um período de pandemia
Para Morin (2020), a epidemia e suas consequências nos colocaram frente a frente com um cabedal de incertezas que ainda hoje, dez meses depois, permanece presente. Ainda que as campanhas de vacinação tenham sido iniciadas, não se tem garantias do real potencial de imunidade das vacinas e, por conta disso, as escolas públicas, apesar das ideias controversas, mantêm os procedimentos de ensino a distância, e os docentes conduzem esse processo de ensino sempre com a incerteza do amanhã. Para o autor, “isso nos incita a reconhecer que, mesmo escondida e recalcada, a incerteza acompanha a grande aventura da humanidade [...]. Pois toda vida é uma aventura incerta” (Morin, 2020, p. 26).
À vista disso, mesmo quando os professores desenvolviam suas aulas de um modo rotineiro, em que tudo estava organizado de forma a os levar a crer que os problemas estavam sob controle, por também fazerem parte da rotina, ainda assim existiam muitas incertezas, em sua maioria relacionadas ao desenvolvimento das competências pelos discentes.
Oportunizar o desenvolvimento de habilidades dos discentes é uma competência docente que durante o período de pandemia trouxe preocupação aos professores por conta do distanciamento com os estudantes. Ao se pensar como se desenvolvem as competências docentes, nos reportamos à atividade de docência, pois ela está alicerçada em um repertório de ações oriundas da prática pedagógica de cada aprendente, que os ampara na (des)construção de crenças relativas aos atos de aprender e de ensinar, presentes não apenas no cotidiano da escola, mas em todos os grupos sociais.
Morin (2020, p. 32) afirma que “a crise em uma sociedade suscita dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de soluções novas. O segundo é a busca do retorno à estabilidade passada”. A escolha por um caminho antes não percorrido, como salientado pelo autor, embora permeado pela insegurança, estimula a criação de novas estratégias que permitem a construção de conhecimentos que excedem as fronteiras da academia.
Em razão disso, a postura ousada de enfrentamento do novo ou até mesmo do desconhecido, por meio da criação de novas metodologias ou do reajuste nas antigas, tal como a inclusão ou o uso dos recursos digitais, permite que alguns docentes também se reinventem ao se descobrirem capazes de criar uma ação docente diferenciada, nunca antes sequer imaginada.
Polettini (1998) reconhece que os desafios externos, neste caso, a necessidade de ensinar a distância, podem influenciar para que haja uma mudança na forma de ensinar do professor. Para o autor, entretanto, a mudança na forma de ensinar ocorre em resposta às inquietações dos docentes, mesmo que estes ainda não estejam convencidos de que os resultados serão positivos.
No caso desta investigação, a variação na forma de conduzir o processo de ensino surgiu de um desafio externo – a necessidade do afastamento social –, que possibilitou a vivência de práticas ainda não experienciadas. Para que essas práticas resultem na construção de saberes se faz mister que, ao se sentirem desafiadas à realização de uma proposta de ensino, para elas inusitada, as docentes sejam também apoiadas para ganharem coragem e superarem, aos poucos, as inseguranças inerentes ao enfrentamento de algo novo (Zeichner, 2008).
Ainda, importante salientar que a troca de experiências com os pares oportuniza a construção de saberes advindos da reflexão sobre a experiência dos colegas, o que, na opinião de Zeichner (2008), possibilita a compreensão e a melhoria do processo de ensino realizado.
Por outro lado, a postura de espera pela estabilidade revela fragilidades de uma formação docente baseada em métodos de aprendizagem nos quais os conhecimentos são trabalhados de forma compartimentalizada. Esse processo “limita-se a prever o provável enquanto o inesperado surge incessantemente” (Morin, 2020, p. 34). Ao se negar a oportunidade de mudar a forma de pensar sobre o ato de ensinar e buscar, de todas as formas possíveis, realizar um trabalho semelhante ao que realizava antes da pandemia, alguns professores vivenciaram de forma mais intensa a insegurança presente no período de afastamento.
Não há a menor dúvida de que vivenciar qualquer que seja desses processos não foi nada simples e continua não o sendo, pois ainda hoje, março do ano de 2021, nós, brasileiros, escutamos um noticiário que aborda diariamente o aumento do número de casos e mortes pela pandemia, e continuamos submetidos às restrições do afastamento social.
Lidar com as crises pessoais, políticas e econômicas que foram deflagradas causou um grande desgaste emocional em algumas pessoas. Em muitos momentos, surgiu o sentimento de indignação ante a forma como as autoridades conduziram a situação, neste caso em específico, como estavam sendo administradas as questões educacionais. Assim, no ano de 2020, incertezas e perguntas sem resposta permearam o processo de ensinar. Cada docente teve que agir, preparar aulas e pensar em como faria para que aquelas atividades chegassem aos estudantes. O que mais causou angústia foi a dificuldade em saber se os estudantes acompanhavam o que estava sendo proposto, ou seja, se conseguiam compreender o conteúdo e construir algum conhecimento.
As ideias de Perrenoud (2001) nunca estiveram tão atuais, pois, para ensinar, o professor passou, literalmente, a “agir na urgência e decidir na incerteza”. Sem nunca ter pensado na possibilidade de ensinar crianças de 6 a 10 anos na forma de educação a distância ou remota, as docentes dos anos iniciais tiveram que preparar suas aulas com esse propósito sem possuir, muitas vezes, o domínio e o acesso a um recurso tecnológico mais avançado. Muitos questionamentos surgiram em suas mentes: Por quanto tempo faremos isso? Quais conteúdos deverão ser contemplados nas atividades? Como será feito esse planejamento, somente atividades ou também explicações? Como fazer as explicações? Como gravar um vídeo? Quais recursos tecnológicos usar? Como usá-los? Como orientar os pais para que ensinem seus filhos? Quanto mais o tempo passava e o final do ano 2020 se aproximava, surgiam outras perguntas: Este ano letivo terá um fim? Como os alunos serão avaliados? Será que os alunos aprenderam alguma coisa?
Assim como destacou Sá-Chaves (2001), tornou-se imprescindível a reflexão, por parte de cada docente, sobre quais tipos de saberes e conhecimentos poderiam ser considerados valiosos, para que seus planejamentos fossem voltados para esse foco. Nesse sentido, por meio de atividades que cumprissem com as exigências dos direcionamentos curriculares e, ao mesmo tempo, estivessem ao alcance de uma orientação leiga, efetivada pelos familiares que, durante esse período assumiram o papel do professor, o trabalho foi realizado.
Como tudo era novo para todos, não havia respostas ou experiências anteriores que pudessem servir como orientação. Na forma anterior de ensinar, as decisões sobre o cotidiano da sala de aula, as escolhas sobre o que e de que forma ensinar, como e quando avaliar eram prerrogativas do professor. Os riscos, embora existissem, de certa forma estavam sob controle, pois tudo era decidido em um contexto que tinha por base o conhecimento anterior do professor, ou seja, um passado conhecido. No ano de 2020 a pandemia proporcionou o experimento de se decidir o que e como ensinar em um contexto desconhecido, no qual os resultados eram imprevisíveis e indeterminados. Em turmas dos anos iniciais de escolas situadas no campo, principalmente, por conta do difícil acesso às residências de alguns alunos, não era possível um retorno efetivo do trabalho realizado e, por conseguinte, as docentes não conseguiam reajustar a prática de acordo com as dificuldades identificadas no processo de aprendizagem. Assim, os riscos de que a aprendizagem não se efetivasse tornou-se maior.
Em virtude dos aspectos aqui mencionados, e de outros que não foram destacados, por serem parte da vida pessoal de cada professor, a atividade docente desenvolvida no ano de 2020 aconteceu em meio a um clima de incerteza e insegurança.
O contexto metodológico
Este trabalho tem natureza qualitativa, voltada para a compreensão das mudanças ocorridas no processo de ensino realizado por professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental, no ano de 2020, durante o período de afastamento social imposto pela pandemia do Covid-19 (Bogdan & Biklen, 1994). Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas, via telefone, com cinco docentes que atuam em turmas dos anos iniciais de escolas do interior do Estado de Sergipe, Brasil. As escolas estão localizadas em três municípios diferentes do agreste sergipano: Malhador, Campo do Brito e Itabaiana. Cada professora entrevistada atua como docente em turmas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental em diferentes escolas da rede pública, 3 delas localizadas em pequenas comunidades da zona rural e 2 na sede do município.
Os dados foram coletados nos meses de dezembro de 2020 e janeiro de 2021. Por esse motivo, algumas falas das professoras estão no presente, porque a entrevistada ainda estava lecionando, e outras estão no passado, porque a docente já havia encerrado o trabalho com as crianças. As entrevistas duraram em média 30 minutos, e aconteceram no horário disponibilizado pelas docentes que, neste texto, estão identificadas por nomes de flores, a saber: Orquídea, Alfazema, Lírio, Tulipa e Girassol.
A análise das informações contidas nas transcrições das entrevistas de deu pelo método de Análise Textual Discursiva, no qual a desconstrução dos discursos em unidades de sentido deu origem à construção de uma possibilidade de compreensão do fenômeno ocorrido naquele contexto (Moraes & Galiazzi, 2007).
Reflexões sobre os caminhos escolhidos para ensinar durante a pandemia
Ao interagir com as falas das professoras, buscamos identificar aspectos que mostram como aconteceu o processo de ensino durante a suspensão das aulas presenciais pelas autoridades educacionais, no período de afastamento social imposto pela pandemia da Covid-19, no ano de 2020. Assim, trazemos para discussão indícios que revelam os impactos da pandemia na organização escolar, na participação dos estudantes nas aulas e nos níveis de aprendizagem dos alunos.
A condução da ação pedagógica escolhida pelas docentes participantes dessa pesquisa esteve vinculada ao recurso tecnológico disponível para cada uma e ao ano escolar no qual atuavam. Orquídea trabalha em uma escola situada em uma pequena comunidade rural localizada longe da sede do município, e no ano de 2020 era responsável por ensinar crianças do 5º ano. Ela diz: “Eu ensino o 5º ano, mas é um 5º ano a nível de 3º, isso tanto na questão da matemática, como leitura e interpretação. [...] o local onde eu trabalho é ruim de sinal, e eles (alunos e familiares), às vezes, não têm um aparelho que tem internet”. Por esse motivo, sua escolha foi pela entrega de atividades impressas. Orquídea conta que “as atividades estavam sendo digitadas e entregues na escola onde a Diretora entrava em contato com os pais para buscarem na escola as atividades”.
Alfazema, nesse ano, ensinava em uma turma do 2º ano de uma escola situada na zona rural desse mesmo município, porém, mais próxima da sede. Ela também fazia o envio quinzenal das atividades impressas e, além disso, “todos os dias eu tenho por obrigação, dever no caso, explicar as atividades (via áudio) para os meninos, já que não têm como eles estarem on-line, porque os pais necessitam trabalhar e quem utiliza geralmente o celular são os pais”.
A professora Lírio ensinava uma turma multisseriada, que atendia estudantes do 4º e do 5º ano de uma escola localizada em uma pequena comunidade rural de outro município. Na escola dela, além da entrega das atividades impressas, “foram criados grupos de WhatsApp”. Conta ela:
[...] a gente faz a entrega desse material que a gente pesquisa e imprime, entrega aos pais; eles vão na escola em dia marcado, pegam essas atividades e aí a gente, durante a semana, no dia de aula, a gente vai dando aula on-line (áudios explicativos no WhatsApp), mas esse material impresso é para aqueles que não têm acesso à mídia e também pra ficar uma ajuda melhor pra eles (Lírio).
Tulipa ensinava para uma turma do 5º ano de uma escola localizada na sede do município de maior índice populacional. Nessa escola, além da entrega quinzenal das atividades impressas, também foram formados grupos no WhatsApp, por turma, e esse novo contexto educacional provocou questionamentos. Diz ela:
[...] antes da pandemia, celular na sala de aula só no horário de recreio. Vem a pandemia, e o que é que acontece? Celular se tornou a ferramenta principal; aí o que eu faço? Fiz um grupo dos alunos da escola, um grupo com os pais, para estar dialogando com os pais (Tulipa).
O questionamento de Tulipa estimula uma reflexão quanto aos recursos e sobre as maneiras de como estes são utilizados no processo de ensinar. É possível que após a pandemia a proibição do uso do celular na sala de aula seja revisada, pois a mesma está permitindo que esse recurso saia do papel do “vilão” que atrapalha o processo de ensino-aprendizagem e passe a ser visto como o “aliado”, que contribui com informações e atividades na construção de conhecimentos. Para Sá-Chaves (2001), cada vez mais somos direcionados para espaços diversificados e flexíveis de aprendizagem, tendo como recursos as linguagens multimídias. Hoje se percebe que a pandemia veio para consolidar esses espaços.
Como os estudantes são crianças, e a maioria mora em comunidades rurais, entende-se que com eles os recursos tecnológicos devem ser usados de maneira diferente, porém, mesmo que em momentos esporádicos, essa utilização é necessária.
Nas turmas das professoras entrevistadas, a maioria dos alunos não possuem celular e nem acesso a computadores com internet; por esse motivo, em algumas famílias, as professoras contaram somente com os celulares dos pais ou dos professores contratados pelos responsáveis para ajudarem as crianças na realização das atividades, nesta região do país chamados de “professor de reforço”. Contando com esse recurso, a professora Girassol, nesse ano responsável por ensinar uma turma de estudantes do 1º ano, em uma escola localizada também na sede do município com maior número de habitantes, afirma: “vídeos do YouTube costumam gastar um pouco mais da internet dos pais, e muitos pais alegam que não têm tempo. Então, eu tento simplificar em videozinhos criados, feitos por mim, vídeos curtíssimos”. Ela utilizou, contudo, principalmente áudios, que eram ouvidos pelos estudantes por meio dos “celulares dos adultos, pais ou professores de reforço, porque tem alguns casos de alunos meus que estão no reforço”.
Durante esse período, a ação de ensinar, antes responsabilidade somente dos professores, passou a ser compartilhada com os pais. Para além de emprestar o celular para os filhos assistirem os vídeos ou áudios enviados pelas docentes, pais e mães assumiram a tarefa de buscar as atividades na escola e de ensinar o assunto presente nelas, ajudando seus filhos na resolução das mesmas.
Algumas mães filmavam seus filhos fazendo as tarefas e enviavam às professoras. Girassol conta: “ainda essa semana uma mandou e disse: Olha que lindo, ele já sabe contar. Mas é aquela coisa, aprender por repetição”. Os pais buscavam ensinar da forma como aprenderam, e usavam o espaço do grupo do WhatsApp para interagir com a professora, porém, “tinha pais que preferiam entrar no privado, talvez com vergonha de fazer alguma pergunta e a resposta ser fácil e eles não terem sabido a resposta” (Alfazema).
Também havia as mães que faziam chamadas de vídeo para que os filhos conversassem com a professora.
Olha, confesso a você que essa semana eu estava rindo de uma mãe. Era a criança de lá conversando comigo e eu vendo a participação da mãe. Isso eu estou achando bom nessa pandemia, porque elas ficam ali acompanhando, e dizem que estão aprendendo, ao ponto de elas ligarem pra me dizer: “Professora, não estou entendendo essa questão, e ali eu explicar pra ela várias vezes, e querer que o filho esteja perto, e ela diz que depois passa a explicação para ele que ela estava acompanhando ele (Tulipa).
Tulipa destaca o interesse da mãe em compreender o que estava sendo ensinado ao seu filho. Esse entrosamento entre família e docentes via mensagens, telefonemas e chamadas de vídeo não aconteceu em todas as escolas e tampouco com todas as famílias. Para Lírio, “aqueles que já participavam presencialmente, antes da pandemia, continuaram participando, e os outros, da mesma forma, não participaram”. Na turma de Tulipa também aconteceu assim, contudo, ela reconheceu essa participação como algo positivo dentro do contexto incerto em que se encontravam. Diz ela:
O importante é que eu estava vendo a participação da família, não de todos, infelizmente, mas de uma boa parte. E sempre estou enaltecendo isso: a importância da família nesse momento; eles que estão em casa veem o desenvolvimento deles (alunos). Um ano parado sem o contato com os colegas, com a escola e com o professor, e a família teve que suprir tudo isso (Tulipa).
Na turma do 1º ano, algumas vezes a falta de estudo e preparo dos pais fez com que a docente optasse por tarefas com menor complexidade metodológica, ou seja, que escolhesse trabalhar com exercícios mais rotineiros, conhecidos dos pais.
Eu tentei simplificar o máximo, principalmente pela falta de conhecimento da família. Eles alegavam que não conseguiam entender. Se fosse problema, por exemplo, a família às vezes alegava que não conseguia entender qual o problema. O problema tinha que ser direto, não podia ser um problema assim com texto, uma historinha, vamos dizer uma fábula, e depois ali entrava no problema. Tem mães que não conseguem acompanhar (Girassol).
Da mesma forma, foi destacada a situação dos pais que não se envolveram com o processo de aprendizado dos filhos e que, por conta disso, não se comunicavam com as docentes e nem compareciam na escola para receber as atividades.
Eu sempre pedia que os pais se comunicassem, embora soubesse que muitos pais não estavam preocupados. É tanto que as atividades no colégio para os pais buscarem, passa até mesmo o prazo de ir pegar. Se é para quinze dias, vamos supor, começa atividade amanhã, aí, hoje, os pais têm que ir até a escola para buscar. Só que tem pais que deixam passar duas, três semanas! Aí, então, a gente teve que levar as atividades, entendeu? Já que os pais não vinham buscar. É complicado... (Orquídea).
Além da preocupação em relação à retirada das atividades pelos familiares dos alunos, igualmente o retorno ou não dessas tarefas e a incerteza quanto ao real aprendizado dos estudantes instigaram questionamentos. A professora Orquídea confidencia: “Minha grande preocupação é: Eles estão fazendo realmente? Por que as atividades não estão retornando? Quem será que, realmente, está fazendo? Será que são eles? Será que eles têm algum irmão mais velho fazendo?“. Segundo Pimentel (1994), ao percorremos um caminho, neste caso, antes desconhecido, temos a oportunidade de fazer paradas para refletir sobre a prática educativa que estamos realizando, e de que forma essa prática está sendo absorvida pelo contexto social na qual está inserida.
Ainda, Giovanni (2003) acredita que as situações vivenciadas pelos professores no cotidiano escolar podem gerar interrogações capazes de desencadear movimentos, individuais e/ou coletivos, na busca de uma solução, o que, por outro lado, pode promover algum tipo de mudança, neste caso, na maneira pela qual os estudantes retornavam as tarefas propostas.
Questionamentos e preocupações desse tipo também permearam o dia a dia das outras professoras, sobretudo no caso de Alfazema, ao identificar que algumas tarefas voltavam com uma letra que não era a do aluno. Diz ela:
[...] a gente tá recebendo assim, a cada quinze dias que a gente envia uma atividade pra eles entregarem, a gente recolhe e eu corrijo, e eu vejo que tem atividades que a caligrafia é do aluno e outra não é, é dos próprios pais. Como já questionei com o pai: Olha, quem tem que fazer é o menino viu?! Você ajuda (Alfazema).
Por conta desse fato, ela afirma: “às vezes, peço alguns áudios ou fotos pra ver eles fazendo as atividades. É assim...” (Alfazema). Essa dificuldade relacionada ao retorno das atividades impediu as docentes de fazerem uma avaliação real do aprendizado dos alunos, de verificarem se houve algum avanço e aprendizado em se tratando dos assuntos presentes nas atividades, pois as tarefas retornadas sempre estavam corretas. Dizem elas:
Eles fazem de acordo com o que a gente vai explicando tal, mas é muito difícil dar essa resposta, mas eu não consigo ver avanço não (Lírio).
Então, e se eu te disser que eu nunca tô sabendo se eles entenderam? Vou te explicar o porquê. Porque como o adulto está próximo e acompanhando, o adulto nunca me deu uma resposta. Então, às vezes eu ligo para perguntar se está conseguindo fazer as atividades, se está tendo acompanhamento. Mas, assim, uma mãe ou outra diz: não Gilza, eu consigo ajudar, tal e tal. Sabe? Mas no geral, eu não tenho como responder, eu não consigo lhe dizer se a criança está evoluindo (Girassol).
Eu não consigo avaliar a aprendizagem deles, se eles estão aprendendo ou não, eu não consigo não (Alfazema).
A fala das professoras nos mostra que o retorno com as atividades resolvidas não sinaliza para elas que houve aprendizado, porque observaram que em algumas famílias foram os irmãos ou os próprios pais que fizeram a tarefa. Entende-se que, dessa forma, esses familiares não assumiram o papel necessário de substituir o professor e ensinar as crianças a pensarem sobre a solução do que estava sendo proposto. É importante considerar que muitas famílias enfrentaram a dor da perda de parentes e também a perda do emprego, o que gerou preocupações com o sustento e a saúde da família, fazendo com que as atividades disponibilizadas pela escola aos filhos não estivessem na lista de prioridades. Por conta disso, em algumas turmas o número de alunos que retornou as atividades foi muito pequeno.
Girassol manifestou que, em sua turma do 1º ano,
[...] o que acontece é o seguinte: eu tenho 20 alunos. Vamos dizer que de 8 alunos eu tenho sequência de atividades, mas é somente 4 que diariamente me repassam, me dão esse feedback. Aí, esses quatro estavam em aula de reforço. E essas professoras de reforço, uma, por exemplo, é professora de dois, dá pra sentir até no vocabulário delas que são pessoas preparadas, por sorte né. Eu penso assim, de que 40% da turma tá conseguindo entender, mas isso é uma ideia nada concreta (Girassol)
Da mesma maneira, na turma de Lírio poucos alunos davam retorno ou interagiam com ela.
No total, eu tenho 16 alunos, mas é dividido em 4º e 5º ano. Oito alunos são do 5º ano. Essas perguntas que eles fazem é bem raro, é uma coisa muito rara, somente dois. Ainda esses dois, vou colocar, bem raro mesmo eles perguntarem alguma coisa tipo, sei lá, dizerem: ‘eu não entendi o que a senhora explicou’, de forma nenhuma (Lírio).
Já na turma de Alfazema, entretanto, dos 17 alunos matriculados, somente dois não davam retorno, e para ela isso estava relacionado à “muita dificuldade devido o aprendizado da mãe. No caso, ele só mora com a mãe”. Nessas comunidades rurais, é muito comum ainda hoje encontrarmos pessoas adultas que não são alfabetizadas, pois desde crianças trabalharam em atividades campesinas para ajudar no sustento da família. Levando em conta as 15 crianças que estavam dando retorno das atividades e interagindo com ela, em relação ao índice de aprendizado de seus estudantes, Alfazema comentou: “Com relação à minha turma eu tô achando assim: vou colocar uns 60%, porque tem pais que realmente se empenham, entendeu?! Até que os pais sempre ligam pra mim, comentam alguma coisa, já outros você percebe que não”.
A participação exígua dos familiares não foi a única dificuldade enfrentada pelas professoras, mas também o despreparo tecnológico, que influenciou na escolha dos encaminhamentos e metodologias para lidar com a nova forma de ensinar.
[...] tem uns professores que elaboram a aula de uma forma bem interessante, e eu não tenho essa prática, só tenho mal o de digitar mesmo, mas de colocar figuras para ficar aquela coisa bonita e organizada não tenho. Daí eu vou lá, pego as atividades que encaixam, copio e colo, e depois de montada a apostila, faço uma folha que tem as instruções de como responder (Orquídea).
Se pensarmos que, muitas vezes, o ensino em turmas dos anos iniciais do Ensino Fundamental ainda é extremamente baseado na cópia de atividades do quadro e no uso das atividades do livro didático adotado por cada escola, é esperado que o planejamento de uma aula remota ou a distância tenha sido um grande desafio para as docentes. Girassol conta que a Secretaria de Educação de seu município ofereceu a elas um curso de capacitação digital, e que em sua escola a coordenadora pedagógica se prontificou o tempo todo para ajudar quem tinha dificuldade. Diz ela:
Eu mesmo tenho imensas pra fazer, imensas mesmo. Ela se prontificou até mesmo de me receber na escola e a fazer o planejamento. Meus primeiros planejamentos foram feitos junto com ela. Levei o conteúdo; ela perguntou o que eu gostaria e aí eu especifiquei o quê, quais seriam minhas metas, o que é que eu desejava desenvolver. Aí ela fez vários, pra que eu conseguisse entender como era que funcionava essas aulas remotas (Girassol).
Esse apoio disponibilizado pela coordenadora pedagógica da escola de Girassol, para a troca de ideias e orientações quanto ao uso de sites da internet ou dos recursos tecnológicos, não aconteceu em todas as escolas. Na escola de Lírio, por exemplo,
[...] teve reuniões on-line, mas não para passar essas coisas assim de formação não; foi para a gente debater mais assuntos de entrega das tarefas, de como organizar as coisas da escola para o andamento das aulas on-line. Agora, para a gente debater mesmo como seria as nossas aulas, essas coisas assim de materiais, não.
Após, Lirio complementa que “a Secretaria de Educação [do município] promoveu dois encontros presenciais pra ensinar como a gente planejar, como utilizar essas outras formas tipo esses vídeos, outros aplicativos, como fazer os planos de aula”.
Na escola de Alfazema ocorreram “reuniões para poder debater como seria o ensino, como a gente faria planejamento, essas coisas, e passou algumas orientações como esse “vídeo das mãozinhas”. Ela nos ensinou essas coisinhas assim”. O “vídeo das mãozinhas”, destacado pela professora, é um recurso que possibilita ao professor fazer uma gravação de uma explicação, por exemplo, de um exercício de matemática, na qual aparecerá somente a voz e as mãos do professor, pois o celular fica posicionado sobre um vidro que está acima das mãos do professor. Ela ainda relatou que a escola disponibilizava o material para a impressão das cópias das atividades, realizava a impressão e fazia a entrega aos pais que iam lá as buscar. Apesar de a escola dela não ter oferecido um curso de formação direcionado para o uso de multimídias, ela tomou essa iniciativa. Contou ela: “Eu participei de curso de formação, mas assim, por mim mesma” (Alfazema).
Em outros municípios a situação foi diferente: a própria Secretaria de Educação buscou prover essa necessidade dos professores e, articulada com a universidade, promoveu um curso de formação tecnológica. Tulipa conta que “o que foi proposto na rede, não só para a minha escola, mas para todas, foi um curso em parceria com a UFS (Universidade Federal de Sergipe), de formação sobre o uso da tecnologia”.
É importante salientar que, apesar das professoras terem acesso ao recurso tecnológico por meio de smartphones, tablets e computadores, o uso que faziam deles para suas aulas estava restrito à busca esporádica de alguma atividade. Durante o período da pandemia, contudo, houve a necessidade de aprenderem a usar outras ferramentas da internet, tais como a gravação de vídeos e áudios e a interação com aplicativos educativos. Para tal intento, algumas buscaram aprender por conta própria; outras participaram dos cursos oferecidos pela rede municipal de ensino, e outras buscaram a ajuda de seus amigos, também professores.
A gente teve grande dificuldade no início, a gente ficava de mãos atadas. A palavra era essa: sem saber o que fazer. Então, eu tenho uma amiga que é professora e a gente conversava muito pra desabafar. Ela é de outro munícipio, de outra escola, aí ela sempre ia passando pra mim cursos de tecnologia que podiam nos ajudar, e a gente também ia falando sobre as nossas dificuldades, desabafando, porque foi um período muito difícil para nós como professoras. A gente ficava conversando muito sobre isso e trocando experiências, de como reduzir tamanho de vídeo, cursinhos que estavam on-line, uma passava para outra pra ir podendo melhorar (Lírio).
Para além da superação das dificuldades tecnológicas, a fala de Lírio revela as inseguranças presentes na sua vivência docente no ano de 2020. Mesmo quando não se está vivendo em um período de pandemia, “ensinar é uma profissão difícil, na qual nada é estável” (Perrenoud, 2001), pois a cada começo de ano letivo as docentes enfrentam o desafio de ensinar turmas em níveis de aprendizados diferentes, compostas por alunos com especificidades particulares, que provocam incertezas sobre qual o melhor caminho metodológico para aquele contexto ou para aquele indivíduo.
O clima de incerteza desencadeado pela necessidade do desenvolvimento de um ensino a distância, algo nunca antes experienciado por essas professoras, deixou transparecer o despreparo tecnológico das docentes para lidar com as aulas nessa dinâmica. Sá-Chaves (2001), ao abordar sobre a necessidade de se formar profissionais para o exercício constante da mudança, aponta como condição indispensável a necessidade de que permaneçam em processo de formação constante, algo que foi muito necessário durante o ensino a distância realizado no período da pandemia.
Da mesma maneira, Morin (2020) ressalta que a pandemia acabou por revelar nossas insuficiências e carências de conhecimento e pensamento. O autor argumenta que a crise causada pelo Covid-19 nos mostrou que precisamos construir conhecimentos e pensamentos capazes de nos tornar competentes para os desafios das complexidades e incertezas.
Algumas considerações e contribuições
Ao relatarem sobre a condução da ação pedagógica realizada durante o período da pandemia no ano de 2020, as professoras entrevistadas revelaram que suas escolhas estiveram relacionadas ao acesso à internet e ao tipo de recurso tecnológico disponível para as famílias de seus alunos, considerando-se que eles são crianças. Em razão disso, as cinco docentes optaram pela entrega quinzenal de atividades impressas na escola, sendo que quatro delas complementavam essa ação com o envio de áudios e pequenos vídeos explicativos no grupo da turma criado no WhatsApp, e atendendo as chamadas telefônicas, via vídeo, feitas pelas mães.
Ao abordarem sobre o envolvimento das famílias nesse processo, as docentes comentaram que algumas famílias não corresponderam ao retorno esperado, ou seja, demoravam ou nem iam buscar as atividades dos filhos na escola, não interagiam no grupo do WhatsApp, não davam retorno das atividades realizadas pelos filhos. Esse exíguo entrosamento família-escola, ocorrido em algumas turmas, gerou preocupação nas professoras, juntamente com a incerteza sobre o fato de os alunos estarem aprendendo ou não.
O fato de as atividades retornarem sempre corretas provocou insegurança nas professoras, pois isto as impedia de perceber quais eram as dificuldades de aprendizagem que os alunos estavam enfrentando. Em alguns casos, foi possível verificar que outras pessoas haviam feito a tarefa. Essa conduta por parte de algumas famílias dificultou o (re)planejamento das aulas, por não deixar transparecer os conceitos e habilidades que necessitavam ser retomados. Ainda, o despreparo tecnológico influenciou no momento da preparação das aulas. Para superar essa dificuldade, algumas Secretarias de Educação dos municípios promoveram cursos on-line sobre o uso das tecnologias e, também, as docentes buscaram a ajuda de seus pares.
Durante a conversa, as professoras expressaram sentimentos de insegurança, incapacidade e despreparo para lidar com a realidade que estavam enfrentando, entretanto, vivenciar a experiência de ensinar a distância pode permitir que, ao retornarem para o ensino presencial, as formas e espaços de aprendizagem sejam repensados e os desafios da ação docente sejam encarados a partir de um novo olhar.
É válido mencionar que instituições formadoras, Secretarias de Educação e equipes diretivas das escolas são peças fundamentais na efetivação desse processo de mudança, que terá como apoio as experiências individuais e coletivas vivenciadas dentro dos contextos escolares, o que favorecerá um melhor exercício profissional dos docentes.
Referências
Bogdan, R. C., & Biklen, S. K. (1994). Investigação Qualitativa em Educação. Porto: Porto Editora.
Giovanni, L. M. (2003) O ambiente escolar e ações de formação continuada. In: Tiballi, E. F. A; Chaves, S. M. (Org.). Concepções e práticas em formação de professores: diferentes olhares. Rio de Janeiro: DP&A, p. 207-224.
Moraes, R., & Galiazzi, M. C. (2007). Análise Textual Discursiva. Ijuí: Ed. Unijui.
Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus. Trad. Ivone Castilho Benedetti. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Perrenoud, P. (2001). Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. Trad. Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed Editora.
Pimentel, M. G. (1994). O professor em construção. Campinas, SP: Papirus.
Polettini, A. (1998). Mudança e desenvolvimento do professor: o caso de Sara. Revista Brasileira de Educação, n. 9, pp. 88-98, Anped. Disponível em http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE09/RBDE09_06_CARLOS_MARCELO.pdf.
Sá-Chaves, I. (2001). Informação, formação e globalização: novos ou velhos paradigmas? In: Alarcão, I (Org). Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed, p. 83-95.
Zeichner, K. M. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 29, n. 103, p.535–554, Maio-Ago. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br.