O presente trabalho apresenta o relato de uma prática de uma estudante do curso de Psicologia, no papel de Acompanhante Terapêutico de uma criança com diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), na Educação Infantil. A proposta de trabalho como “Acompanhante Terapêutico” (AT) surgiu como uma oportunidade de vivenciar práticas na Educação, após ter cursado a disciplina Educação Inclusiva e foi acolhida por mim com grande interesse e expectativa de aprendizado. Coelho (2007) esclarece que o papel do AT na escola implica transitar entre o discurso pedagógico e o discurso terapêutico. O AT, ao lado da criança acompanhada, tem como objetivo de trabalho a realização de tarefas do cotidiano escolar. Deve perceber, também, as necessidades de amparo terapêutico, que caminham lado a lado com a atitude pedagógica. Essa oportunidade na função de AT para a qual fui selecionada dirigia-se a estudantes de graduação do curso de Psicologia, com algum conhecimento na área da Educação Inclusiva.
Assim, discorro sobre essa prática, que foi orientada por um profissional da Terapia Ocupacional e desenvolvida com uma criança de três anos, aqui nomeada Júlio (nome fictício), em uma escola de Educação Infantil. Essa prática foi abraçada por mim, entrelaçada de inseguranças iniciais e tomada como um desafio que perpassa saberes da prática pedagógica, da Terapia Ocupacional, da Psicologia e de outros saberes. Pode-se dizer que fui capturada pelo desejo de saber, convocada a aprender, a apropriar-me de um conhecimento a ser construído nas relações com as pessoas e os saberes. Charlot (2000, p.72) enfatiza que: “Toda relação com o saber é também uma relação com o outro”; em uma relação consigo próprio sempre está em jogo uma construção reflexiva com as figuras que se apresentam nas relações diversas. Nesse contexto, segue-se numa aventura do aprender e da construção de conhecimentos em uma prática de trabalho como AT na escola.
Entende-se que a escola favorece novas possibilidades de laços sociais, relações com os espaços, com as linguagens expressivas, o brincar, encontros que possibilitam novos posicionamentos da criança em seu processo de desenvolvimento. Nesse sentido, a circulação social compreende em si um campo terapêutico, com a oferta de um lugar na escola, um lugar atribuído à criança no imaginário social, um lugar de sujeito (KUPFER, 1997). Aqui, reforça-se a importância dos processos de inclusão que ofertam às crianças com transtornos graves, condições de participar do universo escolar e de se beneficiar dos processos educativos e da convivência social. A autora chama atenção para a aposta que se faz no movimento inclusivo do poder subjetivante dos diferentes discursos do campo social que circulam na escola. Para a criança com TEA, esse lugar social é especialmente importante.
O objetivo deste artigo é relatar e apresentar reflexões sobre o trabalho de AT, a partir de uma experiência vivida no contexto escolar. O artigo está organizado com os seguintes tópicos: Introdução, Transtorno do Espectro do Autismo, Reflexões sobre uma prática de AT na escola e Conclusão. Buscou-se refletir sobre o papel do AT, o trabalho colaborativo multiprofissional e os saberes e aprendizados adquiridos/construídos nesse trabalho de cooperação e parceria entre escola, profissionais e família. Os saberes das práticas e vivências pedagógicas foram norteadores do trabalho inicial, além dos conhecimentos e leituras desenvolvidas no curso de Psicologia nas disciplinas cursadas e relacionadas ao desenvolvimento infantil como: Neuropsicologia, Psicologia Escolar, Educação Inclusiva, entre outros.
O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA - TEA
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma desordem do neurodesenvolvimento que se configura no comprometimento da interação e comunicação social, acompanhadas de comportamentos repetitivos e interesses restritos. Nota-se que a essência desse transtorno envolve as relações humanas/sociais e raramente apresenta-se no mundo das coisas/concreto (CAMARGOS, 2018).
Conforme Rossi et al. (2018), estima-se, em média, 1 (um) para 58 (cinquenta e oito) o número de pessoas autistas no mundo, conforme pesquisa realizada no ano de 2014, divulgada em abril de 2018. No Brasil, há poucos estudos sobre as estimativas dessa temática; um deles aponta maior prevalência nos Estados de Santa Catarina e São Paulo.
O transtorno do Espectro do Autismo, passadas décadas de novas informações e conhecimentos por meio de pesquisa científica, já permite o diagnóstico precoce e a devida intervenção com equipe multiprofissional. A diversidade de olhares dos profissionais se coloca como dispositivo importante para o tratamento. Paralelamente, caminharam os processos de inclusão e as políticas educacionais que favorecem o respeito à singularidade dessas crianças.
Importante ressaltar que, atualmente, políticas públicas garantem o acesso de todas as crianças à escola e, nesse contexto, o desafio é garantir a transformação das concepções teóricas e práticas dos processos de inclusão. Quando se fala em inclusão escolar, é importante pensar que não se trata apenas de “aceitar as diferenças”; este é apenas o ponto de partida e não deve ser considerado como meta final.
O diagnóstico do TEA é clínico e presencial. Algumas diretrizes, conhecidas na literatura para esse diagnóstico, são relacionadas abaixo:
- Critérios Diagnósticos para Transtorno do Espectro do Autismo no DSM -5:
Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue atualmente ou por história prévia: 1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma conversa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais. 2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso de gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal. 3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse pelos pares (DSM-5, 2014).
- Escala diagnóstica: Childhood Autism Rating Scale – CARS. A escala diagnóstica compõe-se de 14 domínios com os seguintes itens: relações pessoais, imitação, resposta emocional, uso corporal, uso de objetos, resposta a mudanças, resposta visual, resposta auditiva, resposta ao uso do paladar, olfato e tato, medo ou nervosismo, comunicação verbal, comunicação não verbal, nível de atividade, nível e consistência da resposta intelectual e impressões gerais. É indicada para os quadros com prejuízos mais evidenciados (CAMARGOS, 2017).
- Escala M-CHAT: Essa escala tem por finalidade avaliar a possibilidade/risco da criança ser afetada pelo TEA. Possui 23 itens para respostas sim ou não, relacionados à avaliação dos indivíduos que apresentam hipótese diagnóstica de TEA (CAMARGOS, 2017).
- Escala de Observação para o Diagnóstico do Autismo: Autism Diagnostic Observation Schedule – ADOS. Avaliação padronizada e semiestruturada para avaliação da hipótese diagnóstica de TEA. Avalia as áreas da comunicação, interação social, brincadeira simbólica, comportamentos repetitivos e interesses restritos (CRUZ, 2017 apud CAMARGOS, 2017).
- Perfil Psicoeducacional (PEP-3): instrumento para avaliação e acompanhamento - Consiste em um inventário de comportamento e habilidades do desenvolvimento adaptativo do indivíduo, composto de dez subtestes (seis avaliam o desenvolvimento e quatro avaliam comportamentos adaptativos). Também é considerado um recurso para elaboração do Plano Individual de Desenvolvimento (PINHEIRO; ALMEIDA, 2017 apud CAMARGOS, 2017).
Camargos (2017, p.15) é enfático ao elucidar o caráter da classificação de uma doença por seus sintomas: “Diagnóstico com critério não é um rótulo, é como um mapa que mostra a posição da criança num cenário de possibilidades e quais os caminhos para se alcançar o objetivo desejado”. A falta do diagnóstico leva a prejuízos para a criança e para os pais que terão insegurança quanto à direção do tratamento.
A partir da clarificação do diagnóstico de TEA, torna-se possível constituir um percurso para uma intervenção; nesse caso, utilizou-se a perspectiva do Modelo Denver de Intervenção Precoce (ESDM). O ESDM é um modelo que se caracteriza pela intensidade naturalista e está voltado para crianças entre 01 (um) e 05 (cinco) anos de idade, que visa reduzir a severidade dos sintomas de traços característicos do espectro autista e estimular áreas do desenvolvimento infantil, principalmente as correspondentes aos domínios cognitivo, socioemocional e da linguagem (ROGERS, S. J.; DAWSON, 2014).
Entende-se que o atendimento à criança com TEA requer o trabalho de uma equipe multidisciplinar. Na prática em questão, o trabalho foi orientado inicialmente pelos profissionais da Terapia Ocupacional e da Fonoaudiologia que acompanhavam Júlio, com a participação da família e da escola. O processo interativo de Júlio tinha a pessoa do AT como referência. As mediações e intervenções aconteciam em meio à rotina da turma, porém seguia-se o plano de trabalho da classe, organização do tempo e das atividades, uso do material e espaços coletivos. Sempre que necessário, em momentos de maior agitação, havia flexibilidade para utilização de outros espaços e/ou atividades previamente pensadas.
O relato oral da vivência como Acompanhante Terapêutico foi convertido em um texto escrito como registro das situações vividas nessa experiência.
ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO: VIVÊNCIA E APRENDIZADOS
Este trabalho caracteriza-se como relato de experiência de uma das autoras, ainda como estudante do curso de Psicologia, que teve a oportunidade de vivenciar uma prática no papel de Acompanhante Terapêutico (AT) de uma criança com TEA, no contexto da Educação Infantil, em turma de três anos. Trata-se de um olhar qualitativo, que abordou a temática desenhada a partir de métodos descritivos e observacionais, com aporte teórico de pesquisadores como: Camargos (2018, 2017) Sereno (2006), Coelho (2007).
Na função de Acompanhante Terapêutico, foi possível atuar como aprendiz em uma escola - espaço que é palco para o desenvolvimento da infância, conviver com a realidade cotidiana dos processos educativos, transcender os muros da universidade - da teoria à prática, viver a realidade diária de uma escola de Educação Infantil no desenvolvimento de seus processos educativos. Foi possível, ainda, pensar em contribuições junto a outros profissionais da Educação, da Terapia ocupacional e da Fonoaudiologia que trabalharam em equipe, buscando resultados comuns no processo de desenvolvimento de Júlio. Colocar-me como aprendiz e também como ator nessa vivência com outros profissionais trouxe desafios e muitos aprendizados. O trabalho de Acompanhante Terapêutico, após uma breve capacitação, teve sequência e foi mediado por uma terapeuta ocupacional e uma fonoaudióloga que acompanhavam a criança e que trabalhavam numa abordagem colaborativa.
A seguir, o relato do acompanhamento desenvolvido. Para efeito didático, pensou-se em descrever as fases do trabalho como tempos de um percurso.
Primeiro tempo: aproximações
As primeiras aproximações com Júlio aconteceram em sua residência. Foram dois encontros com a família e a criança para conhecimento mútuo. Foi possível ouvir dos pais a descoberta do diagnóstico, informações sobre os acompanhamentos de fonoaudiologia e terapia ocupacional aos quais à criança se submete as expectativas em relação ao trabalho do Acompanhante Terapêutico no processo de escolarização/inclusão do filho. Recebi da mãe de Júlio um livro ilustrado com a sua história de vida, feito por ela, com a participação do filho. Percebe-se que a família sempre investiu no seu desenvolvimento, buscou apoio especializado, fez pesquisas próprias e leituras que ajudaram a criar propostas de estimulação para o desenvolvimento de Júlio. O terceiro encontro foi uma visita à escola para observar o cotidiano, o comportamento da criança e dos seus pares, conhecer a proposta da escola em parceria com os profissionais e, por último, a participar nos atendimentos clínicos dos profissionais, com o intuito de observar o manejo com a criança.
Segundo tempo: singularidades de Júlio
A criança, a partir de um ano e dois meses, começou a regredir e perder as habilidades conquistadas: tinha um bom contato ocular, dava “tchau”, correspondia quando chamado pelo nome, batia palmas, sorria quando alguém lhe sorria. Passou a interagir menos com outras crianças que brincava. Aos dois anos, não tinha linguagem verbal. A família buscou orientação/avaliação com especialistas, recebeu o diagnóstico do Transtorno do Espectro do Autismo.
Conforme Camargos (2017), os atrasos de desenvolvimento na criança com TEA são característicos. Podem-se observar atrasos na interação social, na comunicação, no entendimento das regras sociais, no brincar que se apresenta mais restrito ou escasso, no controle de impulsos (birras inadequadas para a idade), na aprendizagem por imitação. O autor define o Autismo Infantil como “uma desordem neurobiológica caracterizada por um fenótipo comportamental de comprometimento da interação social e da comunicação social acompanhada de comportamentos repetitivos e interesses restritos” (CAMARGOS, 2018, p.17).
Terceiro tempo: a escola e os processos de aprendizagem
Este é o segundo ano do Júlio na Educação Infantil. Já conhecia os espaços da escola (pátio, parque, sala do descanso e outros) e explorava esses espaços em pequenas corridas. Utilizava essa atividade como estratégia de autorregulação; ficava mais tranquilo depois de gastar energia. Sua classe tinha em torno de 21 crianças, uma professora, uma ajudante de sala, além do trabalho do AT, especificamente para a mediação/intervenção nas atividades com Júlio.
Os primeiros meses da vivência na escola tiveram o objetivo de construir um vínculo com a criança, acreditando ser esse um ponto crucial para a realização de atividades de interação. Nesse momento inicial, ficar na sala significava buscar o bem-estar de Júlio nos espaços, sala, parque, pátio. Sempre observava seus limites com relação ao tempo, à sequência das rotinas da sala e ao convívio com os colegas. Na sala, se havia muito barulho, Júlio tampava os ouvidos, às vezes chorava sem causa aparente, gritava, tinha impulsos de arremessar objetos. Havia um colega que, de modo espontâneo, sempre o levava para as atividades (rodinha, lanche, brincar). Às vezes, aceitava ser conduzido.
No início, na adaptação à rotina escolar, Júlio apresentava inquietação, irritabilidade, choro. Aos poucos, observei ganhos de adaptação à rotina e pequena socialização com os pares. Ainda não conseguia ficar o tempo integral nas rotinas em sala, saía muito, tinha necessidade de ação motora. Os tempos das atividades não faziam sentido para Júlio e, por consequência, interagia pouco, permanecia fisicamente distante do que ocorria; pouco participava da dinâmica dos grupos.
A seguir, relato uma cena que foi marcante e me fez refletir sobre a importância do meu papel de AT. Em uma situação de extrema irritabilidade causada por dificuldades de processamento sensorial, Júlio chorava deitado no chão. Foram muitas tentativas sem sucesso para que se acalmasse, saísse da sala. Sentei-me no chão ao seu lado e disse: “Eu estou aqui para te ajudar, você sabe que eu estou com você e eu vou esperar você se acalmar”. Senti-me confortável com minha certeza; fiquei em silêncio do seu lado. Após alguns minutos, Júlio ficou menos agitado, embora ainda estivesse chorando. Levei-o para um banho, ainda chorava. Continuei a repetir de modo tranquilo: “Estou aqui com você”. Após o banho, parou de chorar e enrolado na toalha me olhou nos olhos, me deu um abraço muito apertado. Foi significativo. Não vivi nada que falasse mais que esse encontro de olhar e esse abraço. Percebi que havia estabelecido um laço de confiança e afeto.
Depois da construção de uma relação de confiança, foram estabelecidos objetivos a serem trabalhados, visando ao trabalho pedagógico e terapêutico como ampliar o tempo de permanência em sala de aula, participar com os pares nas atividades, melhorar o contato ocular, brincar em horário de parque, aprender por imitação nas atividades da vida diária: vestir/tirar roupa, abrir a lancheira, alimentar-se, pegar/guardar objetos. Os objetivos foram pensados pela terapeuta ocupacional em parceria com a escola e minha função era mediar as intervenções, intercaladas com as atividades de rotina da sala. Os resultados esperados se estendiam para várias dimensões no desenvolvimento da criança: dimensão social, afetiva, cognitiva, perceptiva etc. Esses objetivos e estratégias pensados eram avaliados periodicamente, em colaboração. Havia idas e vindas, avanços e retrocessos.
A seguir, apresento os itens trabalhados no primeiro ano de acompanhamento e um breve comentário sobre o desenvolvimento de Júlio.
Aumentar o tempo de permanência em sala de aula
Nos primeiros meses, a criança apresentava necessidade de sair da sala. Seu interesse por objetos e jogos era restrito. Ficava agitado. Chorava e saía da sala. Caminhar ou correr em outros espaços o acalmava, ajudava na autorregulação motora. Outras crianças também choravam o que trazia mais desconforto ao Júlio. Sair da sala era terapêutico e tornou-se uma estratégia muito utilizada. Depois da adaptação, ainda no primeiro semestre, iniciou-se uma rotina organizada previamente quanto às saídas da sala, ao se observar sinais de cansaço, desconforto, irritabilidade; era momento de fazer um breve passeio. Aos poucos, as saídas individuais se tornaram breves, ocorrendo uma vez por dia.
Ampliar a participação com os pares nas propostas de atividades
A rotina da sala tinha sempre: rodas de conversa, música, contação de histórias, pegar/guardar objetos, participação de jogos etc. Júlio sentava-se poucas vezes junto às rodas; andava na sala devido à sua necessidade de ação motora. A estratégia utilizada era sentar-se próximo ao Júlio e proporcionar a ele a sensação de movimento, de balanço, ou fazer massagem oferecendo-lhe a sensação de pressão, e ainda, “brincar” com o corpo fazendo a coreografia da música. Para as atividades na mesa de trabalho, pensou-se como estratégias: limitar o espaço, utilizar materiais de seu interesse (algodão, palitos de picolé, lã, cola colorida, giz de cera, tinta, etc.) e realizar atividades que demandassem menor tempo, de curta duração, com a intenção de que a criança concluísse a proposta com os pares. No sentido de trabalhar “início, meio e fim” de uma atividade, foi possível gradualmente aumentar seu tempo de concentração e vivência compartilhada com os pares.
No papel terapêutico de AT, sempre estava atenta ao bem-estar de Júlio. Indicava e fazia solicitações à professora como: abaixar o som ou virar a caixa para o outro lado minimizando a intensidade sonora, cuidar para que a mesa determinada para a criança se sentar estivesse disponível, esperar um tempo maior para o início da contação de histórias, adiantar a aula de “corpo e movimento” para atender à necessidade de autorregulação da criança, necessidade de um ar-condicionado, mudar a organização da sala e a disposição do lanche das crianças (se estivesse à vista ele queria pegar). Solicitei, ainda, materiais para fazer tapetes sensoriais etc. Em cooperação, a professora sempre atendeu às demandas buscando o conforto da criança.
Melhorar o contato ocular.
A estratégia utilizada para minha comunicação com Júlio era me posicionar na altura do seu olhar. Se ele não estivesse olhando, tocava o seu rosto para dirigir seu olhar, pegava objetos do seu interesse. Assim, o olhar seguia a mão de modo instintivo. Utilizava também expressões faciais chamativas ou intensas. A comunicação verbal deve ser clara e concreta, com poucas palavras e deve avançar à medida que se percebe que a compreensão da criança evoluiu.
Brincar em horário de parque
Nesta atividade de brincar, Júlio tinha seus interesses. Gostava apenas de correr, balançar as folhas e subir e descer no escorregador com apoio (segurando a mão). O parque era refúgio em situações de “crises” de choro e irritabilidade. Nesse brincar, a repetição das experiências de expressão de seus afetos, por meio dos movimentos corporais, favorecia a autopercepção e ajudava na autoconfiança. E assim, foi possível reduzir o apoio aos movimentos nos brinquedos de forma gradual. Sozinho começou a fazer novas explorações, desenvolvendo autonomia para utilizar os brinquedos do parque, obtendo prazer e júbilo nos movimentos que criava (saltos, balanços, escorregar). O brincar obedecia a uma sequência, passando pela manipulação do brinquedo (modelo para imitação), pelo brincar funcional (com ajuda física, pegando na mão da criança, criando movimentos) e por último, pela fase da brincadeira simbólica (ANDRADE; COSTA, 2017).
Ampliar a linguagem e a interação com os pares.
Esta atividade se constituía em chamar a criança pelo nome, nomear objetos, relatar atividades do dia com ajuda dos colegas. As crianças falam muito sobre as suas vivências, fantasiam situações. Assim, a interação com os pares se deu por meio do falar do que Júlio gostava, do seu animal de estimação, para onde viajou, brinquedo preferido etc. Isso contribuiu para que os pares também contassem sobre si, encontrando aproximações, como ter um animal de estimação, viagem, jogo etc. Sexta-feira era o dia do brincar livre. Havia maior interação e momento de compartilhar os brinquedos. Nesse contexto, Júlio era convidado para brincar; ele participava mais tempo nessa atividade.
Desenvolver autonomia nas atividades da vida diária
Todas as atividades da rotina da classe eram consideradas: guardar mochila, pegar/guardar brinquedos, pegar lancheira e objetos, vestir ou tirar peças de roupa e calçados. Essas atividades eram realizadas na rotina da classe e em outros horários específicos, ofertando apoio e reforço positivo frente à realização. Havia necessidade do comando verbal, a ação motora para a criança imitar.
Vale ressaltar que os processos de aprendizagem foram múltiplos. Júlio, a escola, os profissionais se inquietavam, inventavam estratégias que nem sempre funcionavam, mas, nas relações entre os saberes e nas relações com as crianças, foi possível perceber as peculiaridades de Júlio e quebrar rotinas, sem criar desorganização no trabalho da classe. Reconheci que primeiro precisava aprender sobre meus limites teóricos e de manejo em situações críticas. Aprendi a ser flexível, a considerar erros e acertos como parte do processo e assim, gradativamente, foi possível construir a direção do meu trabalho e compreender, de fato, o meu papel como Acompanhante Terapêutico.
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DO ACOMPANHANTE TERAPÊUTICO (AT) NA ESCOLA
A vivência como AT me proporcionou muitos aprendizados. Primeiro, o impacto positivo na minha formação, observando e vivenciando, no espaço escolar, relações diversas, que ampliaram meu olhar sobre os processos educativos. Aprendi com as crianças, com os professores, com a família de Júlio, com os profissionais especializados. Tentei ao máximo construir conhecimentos a partir das práticas colaborativas e da rotina da escola.
Nos ideais dos movimentos da Reforma Psiquiátrica, o papel do Acompanhante Terapêutico (AT) foi sendo delineado na década de 70, na Argentina, com as equipes terapêuticas de abordagem múltipla que atendiam pacientes com quadros severos. “A figura do AT se delineia como uma das atualizações dessa necessidade” (RONILK, 1997, p.83).
O trabalho de AT visava ofertar ao paciente, oportunidade de estar e circular no social e sua atuação seria
[...] como um intercessor a favor da constituição de novos territórios de vida e de convivência a partir da estratégia de desvio, de criação/encontro de saídas inéditas, conexões com territórios até então inexplorados na vida social da pessoa e que possam servir para escapar do que está instituído e cristalizado na vida do paciente institucionalizado. Desviando e fazendo desviar almeja-se a abertura para o encontro com o novo, o inusitado (Silveira, 2009, p. 237).
O AT tinha como sua maior demanda o atendimento que se dirigia ao público adulto. Sendo assim, pouco se reservou na literatura sobre o Acompanhamento terapêutico na infância. Um estudo de Batista; Flor; Silveira (2017), em uma revisão bibliográfica a partir de produções brasileiras dos últimos 14 anos, encontrou diferentes práticas do AT com crianças, com destaque para aquelas realizadas no contexto escolar e em outros espaços como centros de convivência, abrigos, atividades especializadas e a cidade como território. Considera-se que o relato desta prática no papel de AT possa contribuir como incentivo para o registro de outras experiências que ampliem a discussão e compartilhamento de saberes.
Com as atuais conquistas da clínica ampliada e as políticas de inclusão social, o AT pode acompanhar crianças nas escolas que se movimentam na direção da perspectiva inclusiva. Kupfer (1997) considera os movimentos de inclusão escolar como filhos legítimos da luta antimanicomial. Se para os adultos esta última representou a queda dos muros dos hospitais e o esforço de integração na comunidade, “para as crianças, a luta antimanicomial representou a bandeira da inclusão escolar e da escolarização da criança psicótica e com transtornos graves” (KUPFER, 1997, p. 56).
Com o avanço das políticas de inclusão, surgem demandas no contexto escolar, com a necessidade de profissionais de apoio ao processo. Dentre as possíveis estratégias para se efetivar a inclusão, o AT se coloca como possibilidade de auxílio na escolarização de crianças com transtornos graves, em trabalho colaborativo com outros profissionais e assim vai delineando seu papel no contexto escolar.
Sereno (2006), no texto “Acompanhamento terapêutico e educação inclusiva”, relata um projeto de inclusão em que o AT se coloca como um dos dispositivos da rede, frequentando a escola e participando de oficinas psicopedagógicas. Com a participação do AT, a rede também realizava propostas de formação com os profissionais da equipe de saúde mental e da equipe escolar.
Coelho (2007) considera que o acompanhamento terapêutico na escola:
(...) exige do acompanhante a capacidade de suportar uma divisão interna a respeito do discurso terapêutico e do discurso pedagógico. Ser acompanhante terapêutico na escola implica ter “jogo de cintura” para saber oscilar entre uma postura mais pedagógica e uma postura mais terapêutica. Por um lado, o at deve estar disponível para ter uma postura mais pedagógica com a criança acompanhada, já que um dos objetivos desse trabalho é auxiliar o indivíduo na realização de tarefas do cotidiano, do qual a escola faz parte. Por outro deve ter sensibilidade para perceber quando o indivíduo acompanhado necessita de um amparo terapêutico que coloca de lado a atitude pedagógica (COELHO, 2007, p.80).
Ressalta-se, que sendo uma prática peculiar frente a outros dispositivos clínicos, o AT deve buscar conhecimentos de intervenção de acordo com a especificidade de cada acompanhado. Dessa forma, o AT, durante a mediação, cria condições para que a criança participe das possibilidades do ambiente escolar e se beneficie do processo educativo que se rege nas relações sociais. Entre as possíveis atribuições do AT estão: apresentar-se à criança como figura ativa, oferecendo uma referência e/ou acolhimento; operar como tradutor da ambiência, nomeando e criando sentido para situações vivenciadas, buscando favorecer o processo de subjetivação da criança, por meio de laços com os elementos da realidade escolar. Em suas práticas e estratégias, o AT apresenta situações cotidianas que até então se encontravam fora do alcance de envolvimento, como: participar de uma conversa sobre si mesma e os pares, partilhar objetos com os colegas, ficar na roda de conversa com a turma. Com essas práticas, o AT busca criar diálogos em múltiplos processos comunicacionais em que a criança tenha voz, se ocupe, conviva com os pares (SERENO, 2006). Considera-se o AT como figura importante no processo inclusivo de crianças com quadros graves e/ou com diagnóstico do TEA, atuando como mediador e facilitador para que a escola cumpra seu papel de ofertar um lugar à criança, um laço social (BATISTA; FLOR; SILVEIRA 2017).
Pode-se refletir que o papel do AT na escola junto à criança com TEA e outros transtornos graves é traduzir a ambiência, os sons, a polifonia, todos os movimentos que acontecem no espaço educativo; tornar-se o outro da linguagem. Ainda nomear e dar sentido às situações do entorno; em muitas situações se oferece como “espelho” no qual a criança possa se reconhecer e operar na constituição do eu e no advento do sujeito, da linguagem, do discurso social. Outro desafio para o AT é despregar-se do diagnóstico e aventurar-se na invenção e criação de laços e possibilidades, afastar-se da cena e encorajar a criança a vencer seus próprios desafios, aceitar pequenos atos de mudança e significações, permitir a flexibilidade dos modos de fazer e ser da criança (SERENO, 2006).
Em meu papel de AT, na mediação dos processos com Júlio, durante sua adaptação ao contexto escolar, foi necessário, primeiro, mediar minhas relações e os processos: relação com a escola, com os profissionais, com os processos afetivos, para lidar com o novo e não sabido e, em seguida, criar uma relação de confiança e bem-estar de Júlio frente à minha presença constante no período escolar. A relação foi bidirecional, construída de modo colaborativo, no passo a passo. Muitos avanços de Júlio foram decorrentes de intervenções feitas anteriormente em sessões com os profissionais que o atendiam, esforços da família e relações com os pares, o que me mostrava que não estava sozinha nesse desafio. O desenvolvimento da infância é isso: uma pessoa planta, outra rega e, talvez, outra possa vir a colher flores no futuro. Posso dizer que colhi muitas flores.
Também ficou claro que a aprendizagem é processual e não se constrói somente com a técnica, o conteúdo objetivo e a intervenção. Os processos de aprendizagem, o manejo de comportamentos e a aplicação de um conhecimento teórico refletem um todo ampliado. Deve-se levar em consideração as relações com o outro, os afetos, outras experiências vividas pela criança em situações da sua singularidade, do significado das suas relações com os colegas de turma, familiares e outros. Kupfer (1997) se refere à escolarização de crianças com transtornos graves, afirmando que a inclusão pode beneficiar a aprendizagem fundamental que é a convivência experienciada no aprender a aprender, a ser e a fazer. Nesse sentido, a inclusão escolar é um modo possível de a criança estar e circular no social e compreende em si um campo terapêutico, pois, ao se ofertar um lugar na escola, atribui-se ao imaginário um lugar social da criança, um lugar de sujeito.
Entende-se que a inclusão escolar é complexa, construída por muitos agentes, tanto da sociedade como representantes do poder público, o que implica somar atuações das instituições, dos setores e agentes sociais, para que aconteçam as transformações estruturais em que o sentido de diferença seja incorporado no cotidiano da Educação (PRIETO, 2006).
Este trabalho é, também, um testemunho dos desafios enfrentados por Júlio para aceitar minha presença diária e sua ambientação na escola, a aproximação com os pares, até atingir um período de tempo maior no compartilhamento de uma atividade. Testemunhou-se os laços de confiança com a pessoa do AT, a ambientação no contexto escolar, o aceite de Júlio à presença e convivência com seus pares, o desenvolvimento em muitos aspectos: motor, maior autonomia no cuidado de si, organização dos seus materiais (com apoio), ampliação de seus interesses, possibilidades de jogos compartilhados, compreender/seguir comandos em situações individual e coletiva. O desenvolvimento de habilidades, de modo geral, teve evolução e foram consideráveis os benefícios alcançados a partir de uma atuação colaborativa.
Cabe ainda refletir sobre o trabalho de escrita. Escrever é um processo penoso, tarefa de transformar percepções, ideias, refazer hipóteses, escutar os próprios pensamentos, revisitar cenas, conceitos não compreendidos, perceber falhas; é processo de elaboração do vivido. À medida que o texto vai sendo construído, toma corpo. As palavras passam a ter uma característica lúdica na busca de sentidos, na construção de parágrafos, no ato de refletir e compreender (SILVA, 2017). Fica, então, um sentimento de gratidão ao vivido que permitiu compartilhar essa aventura do não sabido.
O presente trabalho trouxe o relato de experiência de uma estudante do curso de Psicologia, em uma experiência como Acompanhante Terapêutico de uma criança com diagnóstico do TEA, e breves reflexões sobre o papel do AT no desenvolvimento de uma prática em um contexto escolar.
A partir das notas e registros dessas práticas, sua leitura, da revisita às memórias, das reflexões “ao depois”, foi possível compreender as mudanças ocorridas. Primeiro, no entendimento do meu papel como AT e segundo, vislumbrando a dimensão dessa vivência que revelou facetas antes não percebidas por mim: a realidade escolar no dia a dia, os processos educativos e de aprendizagem e o trabalho colaborativo multiprofissional. No que se refere à família, foi possível constatar uma rotina intensa de cuidados, pois as crianças que apresentam TEA têm uma agenda constante de acompanhamentos multiprofissionais, que exige disponibilidade de tempo e investimento financeiro.
Vale lembrar que esta vivência no papel de Acompanhante Terapêutico não seria possível sem as orientações específicas dos profissionais da Terapia Ocupacional e da Fonoaudiologia, dos diálogos com a família, a escola, e ainda sem o envolvimento e disposição para pesquisar, experimentar, errar, desaprender, aprender, refletir sobre os acontecimentos e práticas do cotidiano. Os saberes acumulados sobre o TEA, sobre a Educação Inclusiva, as práticas pedagógicas e comportamentais foram construídas coletivamente durante o processo, com frustrações e fracassos em algumas propostas, mas também com acertos. Com certeza, essa vivência como AT impactou positivamente minha formação em Psicologia, despertou interesse pela pesquisa dos processos educativos e clínicos de TEA, colocando-se como alternativa de caminhos para as futuras escolhas que farei profissionalmente.
Espera-se que este relato de experiência possa convidar outras escritas, promover outros diálogos, compartilhar outros processos singulares de crianças com TEA e apontar outras possibilidades de um campo de trabalho, além de contribuir com as discussões e reflexões sobre o AT. A partir desta experiência, pode-se reconhecer a importância do trabalho do AT e os diferentes atores no processo de escolarização: #todossedesenvolvem #todossebeneficiam.
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