Considerando a escola como espaço da diferença, sendo um lugar potente para a produção das relações baseadas em pro-posições políticas e sociais, tenho percebido que as diferentes maneiras de ser e viver a roça[i] neste espaço, se colocam como um complicador para aqueles/as que não conseguem compreender os sujeitos a partir das experiências que produzem, por terem configurações outras e destoarem daquilo que a mesmidade toma como padrão numa lógica hegemônica e urbanocêntrica.
Sendo assim, o presente estudo insurge desse contexto anunciado por docentes da Educação Básica nas escolas rurais, motivado por minha história de vida-formação-profissão por compreender a diversidade como um princípio que tem atravessado minhas experiências com variados sentidos, podendo desencadear um movimento formativo a partir da pro-posição de uma ruralidade da presença[ii] que se coloca através da presentificação do ser-na-roça[iii], em que a autobioformação[iv] se apresenta como espaço fecundo para repensar a formação que valorize as pessoas e as experiências que lhe constituem.
É importante ressaltar que Heidegger (2015) utiliza o termo Dasein que significa existência e numa tradução literal para o português temos Ser-aí. A primeira tradutora da obra Ser e Tempo para português achou por bem traduzir Dasein por presença. Sendo assim, entendo que ruralidade da presença neste estudo representa bem uma ruralidade do Ser-aí. Esse ser-aí é abertura de um ser-sendo que traz possibilidade de existir de forma autêntica ou inautêntica e, Desain é um movimento, um transcender como a possibilidade de um ser que se lança no mundo a partir de si mesmo, uma abertura para outros horizontes possíveis.
A proposição de construir um conceito para a ruralidade da presença que institui a categoria ser-na-roça, tem uma forte relação com os estudos das ruralidades contemporâneas que tem considerado os sujeitos que habitam os territórios rurais e os modos de ser, viver e fazer que vão sendo constituídos nestes espaços. Nesse sentido, é relevante pensar numa categoria ou dimensão que se encontre a altura dos sentidos e significados que são produzidos pelas pessoas que vivem na roça, mantendo viva suas tradições que vão sendo representadas numa dinâmica da tradução, difundindo elementos do passado e do presente, re-significando[v] os processos culturais e sociais a partir da construção simbólica que fazem ao habiatr a roça.
Desse modo, a ruralidade da presença insurge aqui como uma condição para se pensar a existência do ente evocada pelo ser-sendo que habita os espaços rurais como forma de compreensão dos modos de ser e viver nestes espaços, a partir da interpretação que esse ser realiza por si próprio.
A ruralidade da presença se coloca como uma condicionalidade para que as pessoas que vivem em territórios rurais possam constituir-se como ser-na-roça a partir da produção de sentidos outros que tenham significância do real vivido. Assim, a categoria ser-na-roça compõe a dimensão da ruralidade da presença por abarcar dois sentidos, um está no âmbito do que o sujeito está envolvido coletivamente e de maneira mais global, desencadeando processos intersubjetivos, o outro se encontra no campo do individual e de cunho da interioridade desse sujeito, insurgindo de sua subjetividade.
Desse modo, tomo minha história de vida como possibilidade inicial para pensar os caminhos dessa pesquisa por compreender que a centralidade desse trabalho está nos modos de viver a roça e habitar a profissão docente em contextos rurais, para entender como as experiências da docência acontecem nas escolas rurais.
Cabe mencionar que o presente texto versa sobre uma pesquisa concluída recentemente no processo de doutoramento, tendo sua centralidade nos processos de vida das pessoas que vivem na roça, propondo-se um movimento de compreensão e interpretação que leve em conta a subjetividade dos sujeitos. Busca-se compreender como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência a partir da ruralidade da presença.
Neste sentido, contemplar os caminhos percorridos no processo de realização dessa pesquisa, considerou pensar narrativamente o movimento que integra as acontecências da pesquisa narrativa, por evidenciar formas do fazer e narrar como possibilidade de desvelamento de ser-docente que se presentifica com as relações que produzimos nos contextos das escolas da roça.
[i] Rios (2011, p. 21) concebe a roça como uma ruralidade específica centrada na semiótica da terra, um território configurado por “[...] uma cartografia que passa às margens das roças, que marca passagens, buscas, fronteiras, fazeres de distintas formas”.
[ii] Esse termo está construído a partir das discussões que realizei com base nos escritos de Heidegger a partir da primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.
[iii] Este termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, se colocando aqui como um constructo que tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).
[iv] O termo autobioformação é reorganizado por Pineau (2016) que desmembra a palavra (auto)biográfica, tendo gráfica substituída por formação e a retirada dos parênteses de (auto) com o intuito de emancipar as narrativas da base do gráfico para pensar possibilidades de superação de um grande desafio: pensar a formação docente parametrizada na “formação da vida e de sua própria vida por si mesmo” (PINEAU, 2016, p. 11).
[v] Ao longo do texto, utilizarei algumas expressões hifenizadas como forma de provocação a partir de atravessamentos em que fui e estou sendo exposto. Também, porque tais expressões nos oportunizam pensar na semântica dos termos hifenizados de maneira mais singular e específica do traço de escrita que busco desenvolver nesta pesquisa, possibilidades para demarcar como estou significando minhas compreensões sobre os estudos de Heidegger (2015) e da poesia de Manoel de Barros (2009 e 2015).
Enveredamentos metodológicos: pesquisa narrativa em contextos da roça
O estudo utiliza como método a Pesquisa Narrativa associada à abordagem qualitativa, estando ancorado nas bases da fenomenologia e hermenêutica por buscar interpretar o ser em seu contexto de vida e a partir dos sentidos que atribuem à sua condição de existir em contextos rurais. Os dispositivos de pesquisa utilizados na pesquisa foram as Entrevistas narrativas e Etnografias na roça configuradas através de textos de campo. O processo de análise das narrativas se deu à luz da proposta interpretativo-compreensiva, por trazer possibilidades de interpretação do que narram professores/as de escolas da roça, considerando os contextos de vida de quem narra.
A pesquisa narrativa se apresenta como possibilidade de abertura para o ser-sendo por congregar valor ao que professores/as da roça narram sobre as experiências logradas na docência em escolas rurais, trazendo à tona seus processos de vida-formação-profissão, demarcando como compreendem os movimentos de interação com suas comunidades, como pensam a respeito de si, do espaço de vida e das relações que são instituídas nesse envolvimento.
Neste sentido, a pesquisa narrativa se coloca como potência neste estudo, por nos oferecer melhores condições para um movimento compreensivo-interpretativo que toma a vida como centralidade para construção de um posicionamento epistemo-político-metodológico em que o ser anuncia-se por si mesmo numa proposição heideggeriana. Isso significa dizer que as narrativas do/a pesquisador/a se cruzam com as narrativas de professores/as participantes da pesquisa.
Então, o que vem à baila são os processos de subjetividade e intersubjetividade que se constituem do e pelo envolvimento que professores/as da roça realizam a partir das experiências constituídas ao habitar a roça e desenvolver a docência em escolas rurais, buscando ancoragem na hermenêutica-fenomenológica para considerar não somente as narrativas recolhidas, mas também todo o contexto de vida de quem narra.
Heidegger (2015, p. 77) institui que a “Fenomenologia da presença é hermenêutica no sentido originário da palavra em que designa o ofício de interpretar”. É com essa perspectiva que tomo as narrativas apresentadas pelos/as professores/as da roça e também as narrativas que apresento no decorrer da pesquisa, como modo de desvelamento do ser.
Neste sentido, tal estudo tem base hermenêutica fenomenológica (GADAMER, 2013), por considerar a necessidade de buscar elementos que possam apoiar-me num trabalho com as subjetividades de sujeitos que têm uma experiência de vida, uma concepção de mundo e um fazer docente permeado de sentidos e significados, adoto uma centralidade no processo de formação docente calcado na vertente compreensiva-interpretativa (RICOEUR, 2010) como proposta de análise das narrativas recolhidas.
Cabe mencionar que a Pesquisa Narrativa que estou tomando, se configurou como campo político e epistemológico, trazendo para este estudo possibilidades outras no movimento formativo das pessoas envolvidas na pesquisa. Clandinin e Conelly (2015, p. 85) apresentam uma caracterização tridimensional que baliza as concepções da pesquisa narrativa no que se refere a termos e espaços da pesquisa narrativa.
"Nossos termos são pessoal e social (interação); passado, presente e futuro (continuidade); combinados à noção de lugar (situação). Este conjunto de termos cria um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao longo da segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira".
Essa tridimensionalidade da interação, continuidade e situação está em consonância com os princípios que ressoam desse posicionamento epistemo-político que mencionei anteriormente, fortalecendo o processo de pesquisa que valoriza o sujeito nos aspectos da individuação e da coletividade a partir das temporalidades desses sujeitos e de suas comunidades.
Nesta perspectiva, as narrativas de vida têm se colocado como um elemento desencadeador de uma multiplicidade de categorias consonantes ao fazer docente num contexto da Educação Básica, por amparar e dar sustentabilidade às experiências vividas pelos/as docentes em suas trajetórias de formação-profissão, já que estas são entendidas por Souza (2006, p. 95) como “experiências formadoras, as quais são perspectivadas a partir daquilo que cada um viveu e vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida”.
Os/as docentes narradores/as desta pesquisa são 3 professores/as de escolas da roça, que desenvolvem a docência na rede municipal de ensino de Várzea do Poço, interior da Bahia. Os critérios utilizados para a seleção de docentes narradores/as da pesquisa foram colocados como: a) ser professor/a do Ensino Fundamental de escolas rurais municipais; b) atuar há mais de três anos em qualquer uma das 3 escolas rurais existentes no município.
Ruralidade da presença
A sobrecarga de sentidos para o termo ruralidade da presença que busco cunhar aqui, traz uma equivalência semântica do ser-aí, ou seja, ruralidade da presença se co-forma com ruralidade do ser-aí. Para Heidegger (1991, p. 186), “as palavras existência, ser-aí, atualidade, designam um modo de ser”.
Neste sentido, são os modos de ser das pessoas da roça que têm, nesta pesquisa, maior relevância, em que posso dizer que são esses modos de ser que significam o fazer docente de professores/as da roça, determinando a compreensão de mundo de meninos, meninas, homens e mulheres que moram na roça.
A ruralidade da presença surge para congregar valor à forma que cada morador e moradora da roça compreendem de si mesmo e do espaço de vida em que estão inseridos. Num sentido mais amplo do que significa ruralidade da presença, entendo-a como assenhoramento de ruralidades diversas que cada pessoa que habita a roça toma para significar sua forma de viver a roça e produzir a vida neste lugar.
Dessa forma, é essa ruralidade da presença que institui o ser-na-roça a partir da presentificação de um ser que já é e quer ser mais, revelando compreensões de como são ao produzirem as redes de significados que dão sentido às suas vidas, sendo condição própria de entendimento sobre a forma como vivem, pensam e se relacionam com a roça.
A ruralidade da presença não significa apenas a compreensão dos modos de vida das pessoas na roça. Representa de maneira muito bem acentuada acon-tecimentos que são construídos nas relações com seu lugar de vida da forma que entendem a vida e veem o mundo. Quero reiterar que, farei o uso do termo acon-tecimento, reestruturando a palavra com um hífen para significar um fazer que se perfaz-se naquilo que (acon-tece) afeta, expõe e o toca.
Neste caso, acon-tecimento traz para a condição do ser-sendo toda a manifestação desse ser-na-roça reverberado pela ruralidade da presença. Ao viver a roça, cada pessoa vai produzindo sentidos que demarcam quem são e o que pretendem ser neste lugar. Isso está muito relacionado aos acon-tecimentos provocados pelo produzir. Nesse movimento de produção que cada pessoa da roça realiza, vão sendo tecidas inúmeras maneiras que tornam essas pessoas clareira para o ser.
O professor Sebastião-Acauã de-marca o envolvimento com o outro para representar como constrói suas relações com sua comunidade a partir do espaço da escola, dizendo: “Conheço todo mundo aqui, brinco com todo mundo. Eu acho que o colégio é nossa escola, que hoje em tudo que tem a comunidade toda participa. Então o nosso colégio aqui, graças a Deus, é inserido na comunidade e, é referência”. (Sebastião-Acauã, Entrevista narrativa, 2020). O ser-na-roça vai sendo desvelado com a maneira que as pessoas da roça se envolvem com seu espaço habitado, permitindo-se a uma produção provocativa da co-presença que vai sendo desencadeada da ruralidade da presença como possibilidade de representação do lugar habitado e das relações oriundas do envolvimento com o outro.
Com isso, entendo que a ruralidade da presença abarca toda significação que as pessoas da roça produzem a partir do afeto com as pessoas de sua comunidade e com a forma como isso vai sendo representado, provocando constantemente um desvelamento do ser-na-roça numa condição instituída pelos modos de como os acon-tecimentos envolvem as pessoas com seus espaços de vida, numa proposição que reune possibilidades que compõem as existencialidades de professores/as da roça. Como narra o professor Geni-Acauã.
Nasci e me criei aqui, minha família é totalmente daqui de Várzea do Poço, tanto a família paterna quanto a materna, meus pais são os primeiros moradores da comunidade. O velho Chico e Venância, uma vizinha aqui são os moradores mais velhos daqui e, meu pai são os primeiros fundadores daqui que ainda estão vivos, com isso a gente acaba tendo aquele amor pelo lugar de vivência, a gente criou nossos laços afetivos com amigos e familiares, na escola. Então, vejo a minha comunidade hoje como um lugar muito bom de se viver, acredito que poucos lugares no mundo eu vou trocar por Nova Esperança, São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Roma, Tóquio, jamais vou querer abandonar Lagoa da Roça. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Compreender e significar as relações com as pessoas da comunidade, situando historicamente os processos e condições de envolvimento na composição do espaço habitado, são decorrências de um processo que se efetiva das possibilidades instituídas no movimento de demorar-se junto às coisas e ao lugar, fazendo-se clareira e morada do ser-na-roça.
Esse processo desencadeado do demorar-se juntos às coisas e ao lugar representa, circunstancialmente, o tempo das coisas e dos acon-tecimentos necessários para a produção de sentidos e significados existenciais, conforme cada pessoa da roça toma para compreender-se no lugar habitado.
Neste sentido, são os modos de viver e se relacionar com o lugar de vida, que fazem emergir as formas de habitar comunidades rurais, em que professores/as trazem à tona como constituem a presentificação do ser-na-roça, evidenciando como produzem suas existencialidades neste lugar habitado – ruralidade da presença, ruralidade do ser-aí que apresenta e afirma o que é viver nesta comunidade.
Ao viver a roça, meninas, meninos, homens e mulheres se lançam como entes nesse lugar, provocando e sendo provocados por um tempo das coisas que se coloca como elemento que a-colhe esses acon-tecimentos na roça. Na obra de Heidegger (1991, p. 206), tomo como provocação para compreender a roça e o que o tempo das coisas se apresenta como oportunidade de acon-tecimentos neste lugar a partir do que estou chamando de ruralidade da presença.
Cada tentativa de pensar satisfatoriamente a relação entre ser e tempo com o auxílio das representações usuais e aproximativas de tempo e ser embaraça-nos imediatamente numa rede inextricável de relações não pensadas em todo o seu alcance. Nomeamos o tempo quando dizemos: “cada coisa no seu tempo”. Isso quer dizer: cada coisa que sempre é a seu tempo, cada ente vem e vai em tempo oportuno e permanece por algum tempo, durante o tempo que lhe é concedido. Cada coisa tem seu próprio tempo.
Esta relação não pensada que aparece entre ser e tempo pode ser considerada como acon-tecimento que vai sendo produzido no tempo e com as coisas. Assim, é o tempo de cada coisa que determina os acon-tecimentos de um processo de vida na roça. Esse tempo das coisas na roça é o tempo que cada ente aparece, é o tempo que institui a abertura para o ser.
Tomando o tempo por esta perspectiva, compreendo que o ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença possibilita a cada pessoa um modo de ver a si mesma e a roça através do modo como interpretam-se como ser-aí e entendem o movimento que estão produzindo ao construírem as relações simbólicas que carregam os significados de ser quem são.
O lugar de vivência a gente cria uma relação muito forte com ele, é onde a gente cria os laços familiares, com amigos. Então, venho desempenhando esse trabalho aqui e me dando muito bem com isso. Em todo lugar que a gente mora, existem os nossos amigos e inimigos também, mas a amizade que a gente construiu aqui é muito boa dentro desse espaço, tem pessoas que ajudam a comunidade a viver melhor. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Com as narrativas do professor Geni-Acauã, posso evidenciar que, são os acon-tecimentos de um processo de uma vida na roça que vai se dando na constância conforme cada pessoa se lança, em que o ser-aí, como provocação da abertura para o ser-sendo se vale desse tempo das coisas para significarem as relações produzidas em seus espaços de vida, seja numa perspectiva de afetos ou desafetos, ambas perspectivas são produzidas a partir de como o envolvimento de cada pessoa se dá em seu contexto de vida.
Entender que o demorar no lugar propõe um movimento con-vocativo para uma compreensão de si, bem como, daquilo que desempenha no demorar-se que se apresenta como fator instituinte de processos intersubjetivos que direcionam as maneiras de ver, sentir, fazer e pensar as coisas da roça. São essas relações dos processos intersubjetivos produzidos no envolvimento com a roça e com quem vive neste espaço, que a ruralidade da presença se coloca como condição para o desvelamento do ser-na-roça, possibilitando a produção da experiência.
Com os processos de intersubjetividades que professores/as da roça produzem, são potencializadas as condições de ser-sendo, convocando um ser que já é como possibilidade de afirmar uma vida autêntica com todos os significantes que isso inclui. Como fica exposto na narrativa da professora Di-Acauã.
Para mim a roça traz todos os valores, hoje sou o que sou agradeço aos meus pais, meu pai analfabeto faz apenas um nome e minha mãe estudou só até a quarta série, mas me ensinaram os valores que eu precisava, eles transmitiram para mim. Tento a todo momento transmitir esses valores também para todos os meus alunos, como morar na roça e não se envergonhar, porque nós somos da roça, mas somos pessoas, somos profissionais, somos cidadãos. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Como posso notar, a narrativa da professora faz uma apresentação de como ela significou e re-significa suas compreensões a partir dos vínculos estabelecidos com seu espaço de vida, com sua família e alunos/as. Há uma apropriação da condição e nível de escolaridade decorrentes da falta de oportunidade em usufruir o direito à educação por habitarem a roça, como possibilidade de insurgência para afirmar processos que representam as existencialidades das pessoas da roça.
Entendo que os valores mencionados na narrativa da professora, se mostram como modos de ser-na-roça, disso são tecidos os significados para resistir às situações impostas por um sistema capitalista que subalterniza a roça e quem mora nesse lugar. Na roça, produzimos experiências que são constituídas de um ser-na-roça que nos propõe pensar caminhos e possibilidades de existir nesse lugar, entendendo que a presentificação desse ser que se manifesta em nós-entes, nos ajuda a perceber a sobrecarga de simbologias e sentidos que carregamos como modo de ser-na-roça.
Des-ver a roça e o mundo das coisas
Me sinto mobilizado a narrar sobre minha experiência com a lua nos espaços da roça. Pois a lua se coloca como elemento místico e simboliza tempo. Tempo das coisas na roça. Tempo de aparecimento e, também, de ocultamento. A lua influencia em tudo que compõe o espaço da roça. De-marca o brotar das plantas, o colher dos frutos, o cio dos animais, a mudança do estado físico das coisas.
A lua para as pessoas da roça representa ciclos de vida, determinando cada estação e como cada lavrador e lavradora precisará cuidar da terra. Além de todas essas relações que a lua significa em minha vida e na vida das outras pessoas da roça, ela traz consigo o mistério da noite e o misticismo que alimentamos a partir das narrativas das pessoas mais velhas de nossa comunidade.
Isso, significa dizer que, em noite de lua podemos sair até determinado horário sem se pre-ocupar com o perigo que a escuridão pode reservar, pois sem lua clara no céu, fica difícil ver o mundo e as coisas. Por não conseguir ver com nitidez as coisas físicas da roça à noite, criamos lendas e histórias para explicar algumas coisas quando não as entendemos.
A noite na roça propõe recolhimento, aquietamento, solidão na minha roça e no meu coração. Isso, significa para mim proposição de isolar-se, abrir distância como possibilidade de pro-duzir arte, escrever (FOGEL, 2012). Sendo assim, a lua tem grande influência em minha vida na roça, por se colocar como elemento de um tempo que me permite recolhimento para escrever e sentir meu ser-na-roça numa outra dimensão.
Tomo essa narrativa para buscar compreender que cada coisa é de um tempo e o ser que se manifesta em meu ente me pro-voca a pensar o movimento de des-ver a roça e o mundo das coisas como proposição de uma compreensão outra da vida e dos modos de perceber as relações que são construídas nos contextos desse espaço.
Des-ver para ver as coisas da roça, está ancorado aqui, pelo movimento de deslocamento que sou provocado a fazer a partir de meu processo de distanciamento daquilo que durante muito tempo se colocou para mim como conhecido e familiar e, não mais possibilita desafio para entender a vida na roça por outros modos de olhar, ouvir e sentir.
Então, me apoio na poesia de Manoel de Barros (2015, p. 141), para explicar o que significa des-ver a roça, de maneira a compreender meu movimento de vida neste lugar, entendendo que cada pessoa significa para si seu lugar de vida a partir da forma como vê a roça e sua vida na roça, isso tem a ver com aquilo que vive e já viveu, com aquilo que se tornou experiência constituída pelo que nos afetou, nos tocou, nos provocou ex-posição.
[...] Ali a gente brincava de brincar com palavras
tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!
A mãe que ouvira a brincadeira falou:
já vem você com suas visões!
Porque formiga nem tem joelhos ajoelháveis
e nem há pedra de sacristias por aqui.
Isso é traquinagem de sua imaginação.
O menino tinha no olhar um silêncio de chão
e na voz uma candura de Fontes.
O pai achava que a gente queria desver o mundo
para encontrar nas palavras novas coisas de ver
assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do
rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão
de uma pedra.
Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras.
Então Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um
sapo com olhar de árvore.
Então era preciso desver o mundo para sair daquele
lugar imensamente e sem lado.
A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas
pela inocência.
O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias
para a gente bem entender a voz das águas e
dos caracóis.
[...]
São as traquinagens de minha imaginação que significam a roça e meu ser-na-roça. Assim, entendo que para as outras pessoas que moram nesse lugar são também suas traquinagens de imaginação que produzem condições para compreenderem seus espaços de vida da maneira como compreendem. Não há aqui, nenhuma intenção de fazer avaliação de como cada pessoa da roça se utiliza dessa “traquinagem de imaginação” como apresenta a poesia de Manoel de Barros (2015), mas o que a-parece como entendimento é que essas formas de ver a roça, pode ser provocações para que no acon-tecimento que cada pessoa desse lugar produz, seja condição de deslocamento.
Essas provocações que estou fazendo referência, são aqui, o movimento que nos propomos a desenvolver a partir desse deslocamento que institui o des-ver a roça como possibilidade de valorização dos diferentes jeitos de ser, viver e fazer em contextos rurais. Isso, desencadeia uma forte relação entre cada pessoa que se propõe a des-ver a roça com as experiências constituídas neste lugar.
Significa mencionar que cada menina, menino, mulher e homem, tomará como condição para esse des-ver maneiras próprias de como entendem-se ser-na-roça, contestando-se, coformando-se e reinventando-se numa proposição de ser-mais através de um ser-aí que se coloca como transformador de cada ente que o ser pode se manifestar.
Pensar o ser-aí que se presentifica conforme provocações que fazemos a nós mesmos no envolvimento com a roça e as coisas que significamos para des-ver a roça é uma possibilidade de ser-mais desvelada numa presencialidade de um ser-sendo, que mobiliza suas formas de compreender e habitar sua roça, como a professora Di-Acauã ex-põe.
A liberdade da roça é uma grande característica, sinto aqui na minha roça uma liberdade, geralmente a vida no campo estimula uma existência mais saudável, principalmente por conta dessa interação do cotidiano com a natureza, acordar pela manhã respirar um ar puro, ouvir o canto dos pássaros, me traz tranquilidade, essa é a palavra que melhor define minha vida na roça, tranquilidade. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020)
Compreendo que a liberdade mencionada pela professora Di-Acauã, representa a re-união que esta faz com as traquinagens de sua imaginação, sendo uma maneira de atribuir sentidos e significados ao que se a-presenta em seu espaço habitado, provocando-as a des-ver a roça conforme suas interações com as coisas do lugar.
As experiências que são constituídas desse movimento de des-ver a roça que cada pessoa se propõe a fazer, tem uma relação de intimidade com os modos de lançar-se na roça para contemplar cada elemento e movimento que se instaura no lugar habitado, para isso, é necessário entender-se abertura e clareira para o ser-na-roça.
Reitero que as condições de des-ver a roça, estão vinculadas ao desvelamento do ser-na-roça que cada ente da roça se predispõe como morada do ser. Isso é a convocação de um habitar poeticamente a roça, por mobilizar uma ampliação das condições de ver, sentir, ouvir e pensar o lugar e as coisas do lugar. Essa é uma proposição constituída no processo de coformação que nos propomos fazer fazendo-se roça.
Des-ver a roça, é proposição em que encontramos novas possibilidades de ver. Nessa proposta de des-ver a roça está a concepção de sentir e auscultar (FOGEL, 2012), duas novas condições para a apreensão daquilo que se manifesta na realidade em que estamos imersos. Mas esse movimento de des-ver somente pode ser descoberto por quem se propõe a formas outras de compreender seu ser-na-roça.
Muitas vezes, serão necessárias criar novidades com palavras, desencadeadas do processo de traquinagem da imaginação. As traquinagens da imaginação nos darão oportunidade de sair desse lugar de vida para que possamos entender quais os sentidos e significados ele tem para cada habitante.
Entender o ser-na-roça que é instituído pela ruralidade da presença é um lançar-se no desconhecido, tomar a poesia e a arte como perspectiva do ver, sentir e auscultar (FOGEL, 2012). É também, fazer da escrita uma arte, pois com ela sou mobilizado a des-ver minha realidade, buscando encontrar novas palavras de ver a roça. Essa compreensão que busco para des-ver a roça, me provoca a escrever com a mesma intensidade e comprometimento, em que um pintor pinta sua tela, como um poeta que desnuda realidades com sua poesia e mostra abertura para o ser.
Conforme Fogel (2012, p. 184), busco com essa proposição de des-ver a roça um movimento de olhar, sentir e dizer que se mostre para além do que está sendo mostrado. Um movimento que intenta para o desnudar as formas de olhar a roça que nos ensinaram, ou seja, instaurar nesse movimento formas de afastamento de um “olhar simples, seco, que vê e se satisfaz com o pouco e o parco do possível tornado necessidade (lei) e que não é, pois o olhar típico, próprio da concupiscência do e no ver, que é justo o ver sem medida, sem contenção, sem forma. Sem pudor”.
A ruralidade da presença é condição e abertura para ver a roça como potência e um lugar de vida, sobrecarregado de sentidos para os que a vivem e buscam possibilidades de existir e resistir, na insistência de compreender que são as formas diversas de perceber os significados construídos nas relações que são estabelecidas neste lugar que pro-movem modos específicos de vinculação com o espaço e nos pro-voca a produzir experiências responsáveis por redes de afeto que, simbolicamente nos mobiliza a ser-mais conduzidos/as pelo ser-na-roça.
A narrativa se colocou como a configuração da presença do ser por possibilitar a representação da condição de provocação de como compreendemos as temporalidades do narrar e do narrado, como potência da ruralidade da presença, do ser-aí, que nunca está dado e que vai se fazendo no fazer-se. A partir disso, compreendo que a narrativa significou uma trama que foi sendo enredada e logrou uma estrutura construída e reconstituída numa temporalidade própria que insurgiu do movimento significado nas relações subjetivas e intersubjetivas produzidas por professores/as da roça.
É com estas relações que o ser-na-roça se institui, numa significação e simbolização que as pessoas da roça constroem com seus modos próprios de existencialidades no lugar, considerando o que é vivido e se constitui como experiência na e com a roça. Dessa maneira, a roça representa uma presencialidade do ser que vai sendo manifestado nos entes que somos, instituída numa espacialidade de nosso ser-no-mundo, que também representa nosso espaço de vida.
O ser-na-roça, neste estudo, significou uma construção importante, tendo centralidade no processo de apresentação de minhas ruralidades e das ruralidades de outros/as professores/as da roça, representando como produzimos nossas existências como possibilidade de ser e habitar a roça, convocando as singularidades das relações que produzimos neste espaço, mostrando como reconfiguramos os modos de ver, ouvir, pensar e sentir como proposição de abertura apresentada através das circunstancialidades de um ser que se mostra e é des-velado com os acon-tecimentos que constituem as experiências das pessoas da roça.
A ruralidade da presença que institui o ser-na-roça é a compreensão que tenho, conforme a pesquisa desenvolvida, como assenhoramento de ruralidades diversas que cada pessoa que mora na roça toma para representar e significar seus modos de existir no rural e produzir a vida e suas experiências com e na roça. Isso vai sendo evidenciado a partir das narrativas e etno-grafias da roça como elementos relevantes na compreensão do ser-na-roça relacionados ao entendimento de que a ruralidade da presença possibilita des-locamentos provocados por acon-tecimentos.
A ruralidade da presença se mostrou como possibilidade de tradução de sentidos do viver a roça e reunir condições do ser-sendo que vai se desvelando conforme as condições de des-ver a roça que cada pessoa produz. O ser-na-roça é instituído pelo movimento de habitar poeticamente a roça e vai sendo des-velado conforme o ente de-mora-se junto as coisas e a roça.
[1] Rios (2011, p. 21) concebe a roça como uma ruralidade específica centrada na semiótica da terra, um território configurado por “[...] uma cartografia que passa às margens das roças, que marca passagens, buscas, fronteiras, fazeres de distintas formas”.
[1] Esse termo está construído a partir das discussões que realizei com base nos escritos de Heidegger a partir da primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.
[1] Este termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, se colocando aqui como um constructo que tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).
[1] O termo autobioformação é reorganizado por Pineau (2016) que desmembra a palavra (auto)biográfica, tendo gráfica substituída por formação e a retirada dos parênteses de (auto) com o intuito de emancipar as narrativas da base do gráfico para pensar possibilidades de superação de um grande desafio: pensar a formação docente parametrizada na “formação da vida e de sua própria vida por si mesmo” (PINEAU, 2016, p. 11).
[1] Ao longo do texto, utilizarei algumas expressões hifenizadas como forma de provocação a partir de atravessamentos em que fui e estou sendo ex-posto. Também, porque tais expressões nos oportunizam pensar na semântica dos termos hifenizados de maneira mais singular e específica do traço de escrita que busco desenvolver nesta pesquisa, possibilidades para de-marcar como estou significando minhas compreensões sobre os estudos de Heidegger (2015) e da poesia de Manoel de Barros (2009 e 2015).
BARROS, Manoel de. Compêndios para uso dos pássaros. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
BARROS, Manoel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo. 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior que o mundo. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
CLANDININ, D. Jean. CONNELLY, F. Michael. Pesquisa narrativa: experiência e história em pesquisa qualitativa. Tradução Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores ILEEL/EFU. 2. ed. Uberlândia: EDUFU, 2015.
FOGEL, Gilvan. Sentir, ver, dizer: cismando coisas de arte e de filosofia. 1 ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I. 13 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas Ernildo Stein. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácil de Emmanuel Carneiro Leão.10 ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
PINEAU, Gaston. Narrativas autobioformativas. In: SOUSA, Elizeu Clementino de; DEMARTINI, Zelia de Brito Fabri; GONÇALVES, Marlene. Gênero, diversidade e resistência: escrita de si e experiências de empoderamento. 1. ed. Curitiba, PR: CRV, 2016. p. 11-16.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: a configuração do tempo na narrativa de ficção. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. V. 2. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. Ser ou não ser da roça, eis a questão! Identidades e discursos na escola. Salvador: EDUFBA, 2011.
SOUZA, Elizeu Clementino de. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A; Salvador, BA: UNEB, 2006.