Introdução
Tais vazios não tem luz, mas chama.
(Helena Bastos, 2020, p.17)
Quando Katz e Greiner (2001) apontam que tudo que surge no mundo luta para permanecer, as autoras nos fazem compreender que a ideia de compartilhar informações, sentimentos e sensações busca reverberar na ligação entre percepção/ação/visualização, de modo a explorar a transformação de consumidores em colaboradores, participantes e realizadores de tarefas como ações para vida, ou como gerar outros modos de existir. Embora pareça muito evidente, pois nas redes sociais tudo pode se tornar visível, protagonizado e facilmente associável com transparência, “devemos nos dispor a perceber não somente as luzes, que são tão evidentes, mas o escuro que faz parte delas, e não identificamos de imediato” (KATZ, 2010, p.122). Ou seja, a hipótese é a de que embora façam parte do que Shirky nomeia de “cultura da participação” (2011), existem fissuras que indicam que as maneiras da colaboração ao atuar no mundo indexado, digitalmente enfrenta as dificuldades/impossibilidades que Espósito (2009, 2012) aponta para o “fazer junto”, ou seja, em coletivo.
Para sobreviver, a comunidade, qualquer comunidade, vê-se obrigada a interiorizar a modalidade negativa do seu oposto; mesmo se tal oposto permanece um modo de ser, justamente privador e contrariante, da própria comunidade (ESPOSITO, 2010, p.82)
Para pensar sobre isso, Paolo Virno (2013) nos aponta que as transformações em torno do espaço/tempo são formas de sentir e ser (ontologia) e que caminhamos para buscar formas de conhecer e ajustar, exercitando maneiras e estratégias de sobreviver principalmente nos tempos de agora. Estamos passando por um momento de grandes mudanças em relação ao que nos assola, o Covid-19. Permanecemos impedidos e distanciados fisicamente, mas, não socialmente. Impossível tentar se manter firme diante do descompasso de ação com essa doença que nos atravessa diariamente, impossibilitando o que mais gostávamos de fazer, como estar juntos, encontrar pessoas e sair em grupos.
No meio disso tudo não podemos esquecer-nos dos momentos importantes que foram as ocupações e os movimentos/agrupamentos que se organizaram em praças públicas, todos eles contribuindo para a reformulação dos espaços da cidade quando os transformam em campos de ação.
Esses modos de atuar confluem no exercício e maneira de organizar a partir de uma motivação que se propaga nas redes a conclamar por pessoas nas ruas, motivando-as politicamente. Trata-se de um comportamento produzido por um modo de existir nas telas no qual o convívio tem um tempo demarcado para durar, como forma de expressão e atualização informal, tendo seu ritmo cada vez mais acelerado e crescente promovendo trocas e reciprocidade.
Pensar processos de criação em ambiente digital nesse atual momento me fez retornar a 2013, ano de muitos atravessamentos e ajuntamento nas ruas. Fica a imagem de todos gritando em multidão e ressoando insatisfações, capazes de provocar chamamentos, ao mobilizarem as redes sociais na tentativa de se tornarem protagonistas nos seus discursos, com suas manifestações nesses espaços públicos. Estava em pauta outros modos de existir, ou como posicionamentos proferem ideias, pois, como se sabe, “discursos proliferam sem o controle de quem os emite” (KATZ, 2010, p.123).
Esses discursos nos meios virtuais promovem oportunidades e constrói uma compreensão do que seja o contato social. Assim, o que se pratica como ativismo civil na internet também passa a regular o que se faz como ativismo fora dela. E, nos meios virtuais, o exercício mais praticado é o de conexão, o sujeito social faz da imagem midiática uma tecnologia eficaz de um espaço político de atuação. Pensar sobre isso enquanto docente de uma instituição pública de nível superior de um curso de Licenciatura em Dança, se faz como provocação, principalmente quando os espaços se fazem limitados diante de um vírus.
As proposições em dança se tornam cada vez mais desafiadoras quando expectativas se tornam e geram modos de existir nesse ambiente em rede nos tempos atuais. Quando Shirky (2011) e Serres(2013), falam sobre a habitualidade e as características que se disseminam nas telas, fazendo desses atores “faladores” e empreendedores, esses modos de existir citados anteriormente, pareciam profetizar o que estaria por vir. Ou seja, nessa atual crise e confinamento, os sentimentos e as sensações parecem intensificar os olhares às manifestações de abuso, racismo, homofobia, xenofobia, assim somos tomados pelo desejo de agir, um desejo reativo que parece potencializar e se intensifica nesse atual quadro negacionista que estamos sendo governados.
Não posso deixar de citar algumas lembranças que estão em minha memória nessa ordenação espaço-tempo das redes sociais, que faz emergir imagens e narrativas diárias também de companheirismo e apoio. Um exemplo é o caso ocorrido com a jornalista Maria Julia Coutinho, no qual o formato de existência da rede mais uma vez permitiu a organização de um “corpo” de pessoas de várias culturas na defesa de uma ação racista em uma plataforma virtual. Somente para relembrar o episódio, no dia 3 de julho de 2015 (Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial), Maria Júlia Coutinho, jornalista que na época comentava o tempo no Jornal Nacional da TV Globo, recebeu uma imensa demonstração de apoio. Milhares e milhares de pessoas manifestaram a sua indignação e repúdio aos 50 criminosos que publicaram comentários racistas contra ela, de maneira coordenada, na página do Jornal Nacional no Facebook.
Fica explicado, nesse exemplo, como o movimento de pessoas pode fazer não apenas a proliferação de vozes, mas também pode conectá-las livremente entre si, sendo nessas experiências que despontam insurgências nas redes que se configuram por promover discursos em consonância com a dinâmica dos processos coevolutivos, sujeitos de sua própria vida. Esse movimento insurrecional (Rolnik, 2018, p.103) apresenta no exercício de compartilhar situações traumáticas, apoio, indignação e/ou protestos a essa ação que promove um movimento do si para todos.
No caso da jornalista, sua resposta a tal agressividade arremata:
Estava todo mundo preocupado. Muita gente imaginou que eu estaria chorando pelos corredores. Mas a verdade é o seguinte, gente. Eu já lido com essa questão do preconceito desde que eu me entendo por gente. Claro que eu fico muito indignada, triste com isso, mas eu não esmoreço, não perco o ânimo, que é o mais importante. Eu cresci em uma família muito consciente, de pais militantes, que sempre me orientaram. Eu sei dos meus direitos. Acho importante essas medidas legais serem tomadas, até para evitar novos ataques a mim e a outras pessoas. Isso é muito importante. E quero manifestar a felicidade que fiquei, porque é uma minoria que fez isso [sic]. Eu fiquei muito feliz com a manifestação de carinho, recebi milhares de e-mails, de mensagens. Isso é o mais importante. A militância que faço é com o meu trabalho, sempre bem feito, com muito carinho, com muita dedicação, com muita competência, que é o mais importante. Os preconceituosos ladram, mas a caravana passa.
(Entrevista de Maria Júlia Coutinho¸ 2015).
A subjetividade política na rede digital é um modo de, ao mesmo tempo, pode dividir e compartilhar a experiência sensível comum em relação à ação que conecta (aproximando ou afastando) aqueles que tomam decisões que não são fruto de uma liderança. Segundo Jacques Rancière (2005), na base da política ocorre uma estética primeira, ou seja, um modo de, ao mesmo tempo, dividir e compartilhar a experiência sensível comum. E essa estética primeira – a “partilha do sensível” – parece ser uma espécie da citada subjetividade política, uma distribuição conturbada de lugares e ocupações, um modo negociado de visibilidade. De partida, essa é a lógica das redes: descentralização, interações complexas e relações rizomáticas, no qual o conceito de rizoma aqui citado se refere a um mapa sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga, segundo o referencial epistemológico de Deleuze e Guattari. Ambos, pensadores franceses, autores, dentre outros livros, de “O Anti-édipo – Capitalismo e Esquizofrenia” (2010).
Muitas vezes, essas relações que se estabelecem e os saberes que promovem são fruto de um tipo de prática de compartilhamento que se transformou no comportamento padrão na internet, pois cada ação que fazemos é observado e registrado ficando salvo. Consequentemente nos tornamos “outros” na rede, pois nossa vida é completamente reproduzida. Esse tipo de comportamento se estende fundado na socialização das informações, que passou a ser sinônimo de autorização, com consequências importantes para além do ambiente da internet, uma vez que a delimitação nesse ambiente faz cada vez mais borrada.
Segundo Lazaratto (2013), a comunicação no ciberespaço articula afetos e espacialidades, e reforça os sentimentos de segurança, liberdade pessoal e influências. A prática de se fazer conectado se torna produtores de sentimentos para compartilhamentos, sejam de indignação, esperança ou luta.
As pessoas constituem redes para estar com outras, e para estar com as quais desejam estar, com base em critérios que incluem aquelas que já conhecem ou as que gostariam de conhecer (LAZARATTO, 2013, p.169).
Esse entendimento citado pelo autor se organiza de forma permanente, somos/estamos em rede e em cada dimensão de nossa experiência, que coevolui em processos de trocas constantes, multiplicando, desse modo, o volume do que lá se pratica em termos afetivos. Uma conectividade que potencializa e perpetua uma conexão entre as redes da vida, nos tornando mídias de si mesma. Segundo KATZ&GREINER (2005), o entendimento do corpo se faz a partir de sua existência processual, sendo a ideia de mídia aqui proposta referente a um sistema vivo, em trânsito contínuo de trocas de informações com o ambiente, como um corpo que nunca é, porque está sempre sendo um momento recortado em fluxo.
Atravessamentos nas telas que se fazem dança: processo artístico como ações para vida.
A grande questão para mim é que o que essas manifestações fizeram foi dar corpo físico ao que já existe no nosso modo de viver online[sic]. Os corpos foram para as ruas do mesmo modo como estão online[sic], com o mesmo tipo de rapidez de comunicação, superficialidade de comunicação, impossibilidade de discutir longamente qualquer um daqueles assuntos. Estamos nos treinando já há muitos anos a um ativismo online[sic], que é um ativismo que você faz uma assinatura numa petição e nunca mais toma conta se deu certo ou se não deu certo (KATZ, 2013).
Sobre as reflexões de Katz acima numa entrevista para um site em 15 de julho de 2013, e ao acontecido com a jornalista Maria Julia Coutinho na página do Jornal Nacional no Facebook, cabe à pergunta: o que eles têm em comum, nesse processo pelo qual estamos passando de confinamento e como isso reverbera em processos de criação em Dança? Como não lembrar o uso da palavra “amigo”, que junta pessoas e grupos em uma tentativa de permanência nesse espaço, mesmo promovendo relações ambíguas? Com outra reflexão proposta por Katz (2005) de “não continuar a falar com o mundo de agora com as lógicas que já existiam antes”, pode-se pensar que nossos passos, hábitos, costumes e andarilhagens nesse espaço exibem uma representação exata de nosso caráter de forma precisa e completa, mais do que imaginamos ser.
A fala da jornalista Maria Julia Coutinho, divulgada via meios digitais, é apenas um exemplo para que nos perguntemos sobre os valores que o seu comportamento propagou, pois todos sabem que uma figura midiática contamina com facilidade aqueles com quem entra em contato. Ela, atuando como jornalista de um programa de TV de ampla popularidade (Jornal Nacional), adotou uma fala que entendia que não lhe não cabia conduzir polêmicas sobre o tema do racismo. Ou seja, estamos literalmente entre o panóptico benthaminiano e a eficiência de um pan-óptico (HAN, 2020) digital criando hábitos cada vez mais disciplinadores, sendo comercializados e monitorados como valor de mercado, no caso dela, linda, simpática e inteligente apresentadora.
A proposta aqui é a de lidar nesse ambiente com estudantes do curso de Licenciatura em Dança e Teatro da UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, iniciantes no componente curricular “Práticas do Corpo na Cena” apresentando um trabalho de final de semestre refletindo sobre quais implicações e atravessamentos atualizam nossa prática corporal enquanto colaboradores, buscando tecer uma postura menos dicotômica do que a habitualmente praticada em relação ao corpo/ambiente digital. A ideia é criar a partir de leitura de textos, práticas corporais de movimento, videodocumentários, lives, provocações arte-política, reverberações sobre ações cotidianas e reflexões responsáveis sobre arte-vida-natureza, desembocaduras artísticas como: videoimagens, textos fluxos, uma página no instagram, uma performance em tempo real e uma vídeoperformance.
A partir desse tema arte-vida-natureza em conjunto com essas transformações do dia-a-dia no confinamento que estamos nos atualizando e que geram impactos diariamente nos modos de vida, começamos a investigar quais transformações foram ocorrendo de forma processual no corpo e assim transduzir, ou seja, materializar em movimentos/paisagens camadas e atravessamentos diários nesse atual momento de COVID -19. Nosso atual espaço de ação/vida confirma o seu papel de informar e reproduzir as visões de mundo que nele são postadas.
Podemos estender a reflexão nas escolhas do que se protagoniza nas redes para pensar os sujeitos colaboradores, quando a proposta de compartilhamento é a de um processo de criação, que tem o corpo e dança o seu eixo estruturante, lembrando que “é nessa re-partilha [sic] do sensível que consiste sua nocividade, mais ainda nos simulacros que amolecem as almas” (RANCIÈRE, 2005, p. 65). Os impactos que ocorrem durante as trocas podem confirmar a questão central desse artigo que trata sobre a Prática de criação artística como reapropriação de ações de/para vida.
O compartilhamento, ou deslocamento a esse espaço de atuação inspira um modo de viver que já existia e tornou-se um recurso que pode servir como ampliação das possibilidades criativas em dança, a partir da grande quantidade de informações a que todos têm acesso diariamente. Hoje somos sujeitos que entendemos que compartilhar/gerar conteúdo/polemizar e ser protagonista é a condição para ser lembrado em alguma rede social.
Deslocar ou buscar maneiras de ser em uma prática artística “faz do trabalhador um ser duplo”, dando tempo ao artesão/artista de estar também “no espaço das discussões públicas” (RANCIÈRE, 2005, p. 65).
Cabe, todavia a sinalização: o acesso democrático às informações pode também levar esse atores a se deslumbrarem com a rapidez momentânea e as inúmeras possibilidades de acesso nesse espaço social. Os discursos segundo Michel Foucault (2008, p.48) “é a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos, a propósito de tudo, (...).” que compartilhados se tornam dispositivos de poder, consequentemente reverberam, se proliferam e se faz em ação, corpo e dança. O que podemos fazer é estar atentos sobre essas vozes que estimulam e podem vir a criar protagonistas detentores de um saber absoluto. Ou se tornarem “súditos” como cita HAN (2020), de uma sociedade que nos convida a compartilhar, opiniões e desejos de contar nossa vida. Pensando nisso observei nosso momento nesse pouco espaço que estamos ocupando, como possibilidade de não nos tornarmos redundantes e com isso ampliar nosso campo de ação também afetivo com trocas e uma escuta como estado corporal.
Proposta lançada, apontei a necessidade de colaborar sobre o tema sugerido e sobre o que estávamos refletindo, contribuindo com informações, leituras, tessituras e escritas poéticas a partir dos desdobramentos experimentados, para que o processo ampliasse a produção estética de forma coletiva, favorecendo e tornando os corpos disponíveis para novas ações, interações e na produção final da mostra.
Simultaneamente, na medida em que vivemos, compreendemos como este estado de prontidão pode nos atravessar em outras instâncias do nosso viver ao nos propormos uma determinada escuta. Desta forma, examinando a experiência como um método de atenção/consciência, percebemos que existem muitas atividades d(n)o corpo que pressupõem este tipo de relação. A concentração exigida na prática criativa – escuta - gera estados de atenção que pretendem trazer a pessoa para mais perto de sua experiência. Neste sentido, apontamos a importância desta ação na relação com o autoconhecimento. Gerar este estado de prontidão a partir da escuta é disponibilizar o corpo para que ele não se isole.
(BASTOS, 2020, p.10)
Durante o processo no semestre, as ações eram sempre criadas em partilhas, pensando na escuta do grupo e quais possibilidades de interação nesse ambiente seriam pontuais naquele momento. Mostrei vídeodocumentários com palestras de Ailton Krenak, estimulando questões ligadas à preservação da natureza como mãe de todos nós e outros autores que tecessem ligações com o tema. Buscamos criar pequenos vídeos do cotidiano em suas casas, estimulamos plantações, escritas conjuntas, leituras de textos e livros temáticos, e a escrita de poesias em tessituras diferenciadas, como papeis, CD’s, nos corpos, nas paredes, etc. Pensando em ampliar a escuta coletiva, desenvolvi uma leitura também coletiva em voz alta, logo após uma escrita fluxo das impressões individuais sobre o que cada texto/livro ressoava em sensações, pois (...) gerar este estado de prontidão a partir da escuta é disponibilizar o corpo para que ele não se isole” (BASTOS, 2020, p.10).
Em seu livro As Estratégias Sensíveis: afeto, mídia e política (2006), Muniz Sodré relaciona política a vida, uma das questões e questionamentos que circulam as vidas, os desejos, os medos e se constituem corpo nesse processo de ação que se faz em configurações afetivas e perceptivas, um exercício que extrapola o contato físico.
É preciso, entretanto, a nosso modo de ver, deixar bem claro que “contato” não se reduz a ideia de mera conexão, devendo ser entendido como uma configuração perceptiva e afetiva que recobre uma nova forma de conhecimento, em que as capacidades de codificar e descodificar predominam sobre os puros e simples conteúdos (SODRÉ, 2006, p.20).
As redes sociais com sua capacidade de crescer por todos os lados e direções dissemina um tipo de imagem que organiza um protagonismo a partir de um poder que não assume uma forma de coerção. Sem o “dentro” e o “fora”, e com o sentir implicado no corpo, essa realidade apontada por Sodré (2013) se caracteriza pelo ambiente biosmidiático, no qual somos sujeitos atravessados por subjetividades dependentes de informações e tecnologias. Esse autor fala que vivemos uma forma de vida radicada nos negócios, em uma cultura referenciada pelo consumo imediato. Em tempos de neoliberalismo essa técnica de poder se faz a partir desse consumismo que assume de forma sutil, seu poder manipulador que tem no sujeito submisso sua forma de operar sem violência, agradando, satisfazendo, gerando subordinação e não oprimindo, mas criando parcerias, e deixando os sujeitos dependentes. De uma maneira sedutora, ele não vai contra seus parceiros, mas a favor, e se torna “curtidor” de todas as postagens gerando e estimulando uma fidelidade compulsiva.
Mesmo entendendo o quanto estamos inseridos nesse lugar no qual somos/estamos em uma rede interativa, multiplicadora de informações, é preciso lembrar também que a dinâmica da emergência e do desaparecimento faz parte desse mesmo ambiente, compondo com isso o processo de subjetividade (que se constitui a partir de uma ação de vínculos e de organização entre pessoas).
É particularmente visível a urgência de outra posição interpretativa para o campo da comunicação, capaz de liberar o agir comunicacional das concepções que o limitam ao nível de interação entre forças puramente mecânicas e de abarcar a diversidade da natureza das trocas, em que se fazem presentes os signos representativos ou intelectuais, mas principalmente os poderosos dispositivos dos afetos (SODRÉ, 2006, p.12).
Vemos a realidade de acordo com nossa cultura. Porém, surge uma questão: Os corpos nesse espaço atual podem ser/estar afetados por que tipo de ações? Cabe refletir sobre o que significa ser mídia de si mesmo no mundo digital hoje. Como propõe Katz e Greiner (2005), o corpo se constitui na sua relação com o ambiente e cada tipo de aprendizado traz ao corpo uma rede particular de conexões, de lutas, relações não excludentes e na capacidade de se reorganizar via contexto específico, em estado de total apreensão. Nesse caminho, compartilhar pensamentos, respeitar as diferenças, e aliar conhecimento e prudência na sua constituição se formam enquanto fundamentos diante do que podemos colocar no mundo.
A essa abertura de participação, faz-se interessante produzir e inventar modos de criar/existir em dança, nessa atualidade rompe-se com as sacralizações legitimadas pela condição secular da produção artística de forma presencial. Cabe a nós tornar acessíveis jeitos de interação nas telas e repensar esses espaços com outros modos de existir e de criar que diálogos com os atuais modos de viver que hoje proliferam de forma híbrida. Como Corposmídia, produzimos ações em dança a partir das articulações que foram sendo sugeridas durante o processo didático do semestre. Um processo que se caracterizou pela expansão, impressões e produção de um pensamento que se fez corpo. Em alguns momentos, voltávamos a pedir que eles abrissem as imagens nas telas e tentassem estar numa escuta coletiva, tentando reconhecer que tipo de pensamento estava sendo discutido e como poderíamos colaborar.
Diante da crise sanitária que vivemos, atuações descompassadas do atual governo, da precarização monetária que atravessamos e do medo da morte pelas perdas diárias os assuntos estavam sempre girando sobre o mesmo tema. Porém diante disso tudo aproximei autores para nossa conversa como o já citado Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque, Michel Foucault, que foi um filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, Helena Vieira, professora e escritora e ativista transfeminista e Helena Katz professora no Curso Comunicação das Artes do Corpo e no Programa em Comunicação e Semiótica, na PUC-SP, no qual concluiu o doutorado (1994), com a tese Um, Dois, Três. A Dança é o Pensamento do Corpo, publicada em 2005.
Além da complexidade do permanecer nesse espaço descentrado, cada clique que damos, pesquisamos, ou passos que tomamos ficam registrados, uma vida reproduzida com dados coletados e publicados. Segundo HAN (2020) nos tornamos um sujeito pan-óptico de si mesma, auto explorador, ao mesmo tempo em que nos tornamos sujeitos fiscalizadores que expõe, supervisiona e julga a si e aos outros.
Com a Teoria Corpomídia (KATZ&GREINER), buscamos refletir questões em foram surgindo durante o processo e que refletem posicionamentos diversos de cada corpo nas telas. Todo processo artístico se articula e opera na lógica de pensar o corpo produzindo sentidos e desencadeando aspectos e estados corporais a partir de seus diferentes contextos, gerando conexões em que a dança se faz multirreferenciada e que segundo Katz (2005), precisa estar sendo feita. Ao analisar o atual momento, se formos olhar o quanto estamos sendo bombardeados de tantas informações, com sucessão de notícias e de mortes, cada vez que olhamos alguém ou fazemos uma postagem sobre algo, essa visibilidade nos torna mídia dessas informações.
O corpo nesses espaços se transforma e transforma o ambiente a partir de sua coleção de informações que se modifica a cada instante, esse corpo que dança nas telas o faz por conta de seu atual estado, mas se encontra em transformação e transformando o ambiente, em fluxo de trocas. Uma troca que opera disseminando informações que o constituem, assim entende-se o quanto as imagens, falas e ações durante o processo se fazem corpo no processo colaborativo nas redes digitais.
Considerações finais
Processos de criação se fazem de modos diferenciados principalmente em tempos de crise, cada professor/orientador elabora do seu jeito, enquanto produção de conhecimento, sendo que, um processo artístico em que tudo se faz nas telas o nível de complexidade possibilita criar diferentes modos de organizações e, nesse caso apresentam-se diferenças do modo presencial. O processo e a proposta desses encontros nesse período aconteceram semanalmente e a partir disso foram criados além das outras ações, o vídeoimagem SEME (AM) ar e a vídeoperformance (CORPARtilhar). Essas materializações que se fizeram corpo nesse processo semestral foram importantes nesse exato momento de dúvidas, incertezas que serviram de provocações para as cenas.
SEME(AM)ar e CORPARtilhar foram desenvolvidos a partir de um pensamento que pudesse emergir danças e sensações como aspectos sensíveis a cada corpo. O olhar, a escuta e a busca a viver harmoniosamente faz-se necessário na atualidade e nos modos de conviver, que a cada dia parecem estar mais violento, desorganizado, poluído e desmedido em relação ao próximo. Além dos exemplos citados no decorrer da escrita desse artigo, podemos acompanhar o quanto protagonistas estão se tornando as atores nas redes sociais, cada um em suas “bolhas”, ou em seus “espaços” pan-ópticos.
Olhar o outro com empatia parece estar distante dos atuais usuários do facebook e instagram, e torna-se paradigmático entender o quanto ao mesmo tempo se fazem vigias do corpo alheio e se atualizam constantemente em relação a tudo e todos. Pensando nisso e no distanciamento atual, nos aproximamos das questões referentes à natureza, ao cotidiano nas casas, aos povos indígenas, às mortes pelo COVID-19, dos feminícidios, do racismo e dos tantos casos que convivemos diariamente.
Nessa teia de acontecimentos foi criada uma mostra artística em tempo real chamada “Tessituras em Espirais”, lembrando o quanto somos espiralados no nosso dia a dia, em colaboração com estudantes, artistas e co-autores do Curso de Licenciatura em Dança e Teatro da Universidade Estadual da Bahia - UESB, a partir de pesquisadores que estudam corpo, gênero, dispositivos e natureza.
O movimento em espiral está no mundo: desde os movimentos de alguns corpos celestes, na fumaça que surge de uma xícara quente de café, na formação muscular dos corpos humanos, na dupla hélice do DNA, nas impressões digitais e, porque não lembrar, do deslocamento em espiral, nas estratégias de locomoção espacial como formas de sobrevivência. Desses tateamentos espiralados, formalizo-os enquanto estratégias de continuar vivendo, e, desse modo, demonstro como o pensamento espiral habita o universo que compomos. Nesta reflexão, associo processamentos de tempos-espaços contaminados por ideias compreendidas no acoplamento entre experiência, escuta e hospitabilidade. Tudo se envolvendo por trajetórias espiraladas (BASTOS, 2020, p. 14).
A vídeoperformance CORPARtilhar se situa nos atravessamentos que se tornam corpo, na possibilidade de ser outros, um “outrar” que convoca todos a ouvir silêncios, respiros, natureza e sentir os cheiros, os ruídos, o sabor, o toque e o habitável que existe ao nosso redor. Em tempos de muitas mortes, e notícias ruins torna-se urgente estar ligado sensorial e afetivamente mesmo nas telas, assim, as imagens foram sendo tecidas a partir de cada parte do corpo. Um caminho no qual somos partes responsáveis em mantermos vivos na nossa terra e nele podermos habitar (KRENAK, 2020).
O constante uso das telas e que de algum modo é reproduzido nas formas dessa vida em dor e luta corpa—se em imagens e sensações, assim o vídeoimagem SEME(AM)ar começa com as perguntas: O que podemos aprender diante do quadro que se instaura nesse atual momento de crise? O que é possível fazer para não ficarmos prisioneiros de um estado que insiste em nos capturar com tanta polarização? Sem encontrar respostas e buscando referências novamente em Ailton Krenak, com sua proposta para adiar o fim do mundo, esse artigo propõe um caminho em consonância com a sugestão dele: “vamos cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu”. De partida, nosso processo se apresentou narrando nosso dia a dia com fragmentos autobiográficos, filmando nossas casas, acolhendo os colegas e suas dúvidas e principalmente os escutando, para movermos nos espaços que existem como potência em relação a sermos capaz de suspender o céu e nos mantermos em contato com a terra, cheios de esperança e saúde.
Uma espécie de reconstrução de memórias afetivas, marcada pelo estado atual e a busca pelo olhar sensível a uma vida harmoniosa nesse momento da crise sanitária e nos modos de conviver que a cada dia parecem estar mais desorganizados, poluídos e desmedidos em relação ao próximo.
REFERÊNCIAS:
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KATZ, Helena Tania. . Helena Katz comenta o corpo nas manifestações. 2013. Disponível em:http://idanca.net/como-e-que-a-gente-pode-participar-de-um-pais-que-quer-transformacoes/.Acesso em 23 jul. 2021.
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